PARAESTADO: O CASO DE MEDELLÍN

Medellín, capital do Departamento de Antioquia, está situada no noroeste da Colômbia. É a segunda maior cidade do país, com uma população de mais de dois milhões, sendo importante centro comercial e industrial. Na década de 1980, Medellín foi sinônimo do comercio mundial de cocaína. A cidade tem também um histórico de tentativas dos paramilitares e narcotraficantes para captar bandas criminosas que atuavam nos bairros pobres.

Isto, junto à presença de milícias guerrilheiras, fez de Medellín a cidade com a maior taxa de assassinatos do mundo. Contudo, o sucesso na consolidação do paramilitarismo e a neutralização da guerrilha fez diminuir essa taxa a níveis históricos e motivou o cenário para a primeira desmobilização em grande escala dos paramilitares.

Uma cerimônia nessa cidade marcou a primeira de uma série de desmobilizações nas quais o governo de Uribe afirma ter afastado do conflito armado a mais de 8.000 paramilitares, de um total que se calcula entre 10.000 a 20.000.

A organização não governamental Anistia Internacional publicou em setembro deste ano o documento intitulado “Os paramilitares em Medellín: desmobilização ou legalização?”, com importantes críticas ao processo*. O presente artigo faz um resumo desse informe.

A violação sistemática dos direitos humanos e do direito internacional humanitário tem sido a trágica característica do conflito armado na Colômbia. Nos últimos 20 anos, esse conflito tem cobrado a vida de pelo menos 70.000 pessoas, a grande maioria civis assassinados fora de combate, enquanto que quase 4 milhões de pessoas têm sido obrigadas a se deslocar internamente (“desplazados”) desde 1985, sendo quase 300 mil apenas em 2004. A grande maioria dos homicídios, “desaparições” e torturas de não combatentes por motivos políticos têm sido obra de paramilitares respaldados pelo exército.

As forças de segurança colombianas têm adotado uma estratégia de contrainsurgência centrada no que consideram o respaldo da população civil à guerrilha, que considera os civis das zonas de conflito não como vítimas dos grupos em guerra mas como parte do inimigo. Isto tem levado a submeter a abusos sistemáticos e à estigmatização dos grupos considerados “simpatizantes” da guerrilha, como os defensores dos direitos humanos, os dirigentes camponeses, os sindicalistas, os ativistas sociais e as comunidades civis que vivem em zonas de presença guerrilheira.

Durante décadas, os latifundiários utilizaram os paramilitares para enxotar os camponeses de terras que pretendiam explorar. Também têm resultado úteis para resolver conflitos trabalhistas mediante táticas de terror contra sindicalistas. Os políticos locais utilizam os paramilitares para eliminar opositores políticos e controlar protestos sociais atacando ativistas e dirigentes. Antes dos ataques paramilitares, os serviços de inteligência do exército, em seus relatórios, e os altos mandos das forças de segurança, costumam rotular os ativistas ou suas organizações de subversivos.

Os grupos armados ilegais têm um longo histórico de tentativas de organizar e recrutar bandas criminosas que atuam nos bairros pobres de Medellín, que têm sido de grande utilidade pois conhecem a zona, sabem quem mora lá, estão em situação ideal para atacar e eliminar civis que possam se opor a sua presença, e podem impedir a infiltração do “inimigo”. No ano de 2000 calculava-se que haveria em Medellín 8.000 jovens vinculados a bandas criminosas.

As primeiras milícias guerrilheiras surgiram em Medellín na década de 1980. Entre elas se encontrava a do M-19, seguida nos anos posteriores pelas Milícias Populares do Povo e para o Povo, as Milícias Independentes do Vale do Aburrá e as Milícias Metropolitanas. As milícias das FARC, conhecidas como Milícias Bolivarianas, se estabeleceram no oeste da cidade, e as do ELN no nordeste. Em meados de 1990 surgiu outra milícia no bairro Vinte de Julho: os Comandos Armados Populares (CAP), na qual havia membros dissidentes do ELN e das Milícias Populares do Povo e para o Povo.

Em 1994, houve uma aliança entre as FARC, o ELN e várias milícias independentes que levou à criação do Bloco Popular Miliciano, consolidando a presença das forças guerrilheiras em Medellín. Essa milícias, compostas majoritariamente por jovens, foram responsáveis por aplicar “justiça” nos bairros pobres em operações de “limpeza social” contra pequenos delinqüentes, viciados em drogas e bandas criminosas. Também cobravam “impostos” a empresas locais em troca de “proteção” e seqüestravam empresários para financiar suas atividades.

O Bloco Metro (BM) surgiu como a primeira presença paramilitar em Medellín a partir de 1998, depois que Carlos Castaño, líder das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), principal força paramilitar, manifestasse seu interesse em controlar a cidade. Já no ano 2000, o BM havia captado a maioria das bandas criminosas de Medellín e em 2001 era o grupo paramilitar dominante da cidade. A imprensa afirmava que em 2002 controlava 70% da cidade.

O Bloco Cacique Nutibara (BCN), liderado por “Don Berna”, surgiu pouco depois como a segunda força paramilitar em Medellín. O BCN tinha uma organização criminosa conhecida como “La Oficina”, que tomou as rédeas do negócio do narcotráfico de Pablo Escobar após a sua morte. “Don Berna” também era o líder do grupo “La Terraza”, uma das bandas criminosas mais temidas de Medellín, com vínculos com os paramilitares. Houve um violento confronto entre o BCN e o BM pelo controle de Medellín que terminou com muitas baixas e com o domínio quase total do BCN.

Em fim de 2001, os paramilitares haviam consolidado sua presença em várias partes de Medellín. Contudo, uma forte presença das milícias no oeste e no nordeste da cidade, impedia os paramilitares de ficar com o controle total. As milícias do ELN (nordeste) davam acesso à cidade das guerrilhas do ELN no Leste do Departamento de Antioquia, enquanto que as milícias das FARC (oeste) davam acesso à cidade das guerrilhas das FARC do Noroeste do país. Operações militares do Exército lançadas em 2002 deram fim ao controle da guerrilha nessas zonas e permitiram aos paramilitares preencher o espaço deixado pelas milícias. As operações foram chamadas de Mariscal (21 de maio de 2002) e Orion (16 de outubro de 2002), nas quais foram utilizados helicópteros, tanques e artilharia pesada.

Depois da Operação Orion, pelo menos 46 pessoas “desapareceram” e em agosto de 2003 havia informes sobre a existência de várias fossas comuns na periferia de Medellín. Anistia Internacional recebeu informação de que em novembro de 2003 foram descobertos 11 cadáveres de pessoas que foram seqüestradas por paramilitares. A partir de então, os paramilitares têm ameaçado, enxotado e matado dirigentes comunitários e pessoas acusadas de ter vínculos com grupos de milícias. Também foram atacadas testemunhas de violações dos direitos humanos cometidas pelas forças de segurança, bem como contra parentes das vítimas e contra pessoas que se negaram a colaborar com os paramilitares.

O sucesso da consolidação do paramilitarismo em 2003 nos bairros pobres de Medellín, fez da cidade o cenário ideal para a primeira desmobilização em larga escala dos paramilitares vinculados às AUC, pois ajudava a dar credibilidade ao processo nacional de desmobilização paramilitar, promovida pelo governo Uribe. Mais de 860 combatentes do BCN sob o mando de “Don Berna”, começaram a desmobilizar-se em cerimônia televisada em 25 de novembro de 2003.

Antes de sua desmobilização, calculava-se que o BCN contava com mais de 2.000 combatentes, mas apenas se desmobilizaram 860. Acredita-se que a maioria permaneça operando em zonas rurais. Portanto, desde o início ficou claro que a desmobilização não afetaria a capacidade militar do BCN. Após a desmobilização, as estruturas paramilitares permaneceram praticamente intactas, e continuam sendo recebidas informações de violações aos direitos humanos cometidas por paramilitares. Na segunda metade de 2004, o controle paramilitar dos bairros pobres de Medellín era cada vez mais encoberto. O controle é mais sutil: não existe mais patrulhamento com passa-montanhas nem armas de grosso calibre. É um controle invisível, com ameaças, com armas camufladas de pequeno calibre, com expulsões dos bairros.

Em uma parte da cidade, residentes locais afirmam que foi concedido a uma banda vinculada a paramilitares o contrato de segurança de uma escola. O desenvolvimento destas estruturas de segurança confirma a preocupação manifestada por Anistia Internacional em novembro de 2003: que os paramilitares estão se “reciclando” no conflito mediante sua incorporação a empresas de segurança privadas.

Um grupo de paramilitares desmobilizados criou uma rede de centros de reunião dos paramilitares a partir de uma ONG chamada “Corporação Democracia”. Entre os desmobilizados havia comandantes do BCN que evitaram o processo penal por violações aos direitos humanos e reapareceram na vida pública como dirigentes da Corporação Democracia. Esta organização está dirigida por Giovanny Marín, líder político do BCN, desmobilizado em novembro de 2003. Em abril de 2005 foi revelado que Giovanny Marín seria candidato às eleições ao Congresso de março de 2006.

Medellín é o doloroso exemplo do fracasso da estratégia de desmobilização do governo Uribe. À maioria dos paramilitares foi concedida anistia por crimes de lesa humanidade, enquanto continuam na ativa exercendo controle sobre muitas áreas da cidade. Civis, defensores dos direitos humanos e ativistas comunitários, seguem recebendo ameaças e sendo objeto de agressões. A taxa de homicídios em Medellín caiu, mas o Estado de direito não está garantido, pois qualquer tentativa de questionar ou desafiar o controle das forças paramilitares tem como resposta a violência política.

O paramilitarismo, tanto em Medellín como em outros lugares da Colômbia, não foi desmontado, mas “reinventado”. Uma vez que foi retirado das guerrilhas o controle de muitas zonas da Colômbia, e nelas foi estabelecido um férreo controle paramilitar, não há mais necessidade de contar com grandes contingentes de paramilitares uniformizados e fortemente armados. Em vez disso, os paramilitares começam a contribuir como “civis” na estratégia de contrainsurgência das forças de segurança dentro de estruturas legais, como empresas privadas de segurança e “redes de informantes”, mais aceitas pela opinião pública nacional e internacional. Nesta última fase, os paramilitares permanecem “na sombra”, cuidando de novos ataques da guerrilha, continuando com ameaças, homicídios e “desaparições” contra “opositores” civis.

Em Medellín, Anistia Internacional observou este processo que reflete claramente uma “fase de legitimação”, que inclui a transformação das forças paramilitares em corpos de segurança privados ou estruturas civis de informantes similares aos grupos “Convivir”, que surgiram na década de 1990, quando Uribe era governador de Antioquia. Assim, o paramilitarismo não é simplesmente uma estratégia de contrainsurgência, mas também um fenômeno que engloba mecanismos de controle político e social e a promoção de um modelo econômico baseado na concentração da terra e em projetos agrícolas, mineiros e de infraestrutura em grande escala. Esta política tem sido montada sobre violações generalizadas e sistemáticas dos direitos humanos, incluídos os deslocamentos em massa de civis, para facilitar a expropriação ilegal de terras, mediante a qual os paramilitares lavam os dinheiros do narcotráfico.

Em contraste com as conversações anteriores mantidas no governo de Andrés Pastrana com a guerrilha das FARC entre 1998 a 2002, a participação da sociedade civil colombiana e a comunidade internacional, salvo a OEA, nas negociações com os paramilitares tem sido nula. Isto reflete o ceticismo e a preocupação que a sociedade civil e a maioria dos governos estrangeiros sentem pelo processo. A desmobilização não porá fim aos abusos contra os direitos humanos se não forem introduzidas medidas efetivas para garantir que os combatentes são realmente desmobilizados. Nesse sentido, a experiência de Medellín pretende ser “exportada” a outras regiões da Colômbia, convertendo assim este país em um paraestado.

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