Tomo por empréstimo o titulo de famoso conto de Machado de Assis, inserto no volume "Histórias sem data" das obras completas do maior escritor brasileiro, usando da ficção do notável prosador para comentários acerca da política nacional vivida no ano de 2005. No conto machadiano o diabo teve a idéia de fundar uma igreja.
Vai a Deus comunicar-lhe sua intenção de construir na terra algo que pudesse colocar em ordem séculos e séculos de desorganização e angariar poder suficiente para combater outras religiões e destruí-las. Uma igreja para si, recolhendo pelo mundo os milhões de pecadores de toda natureza, convocando-os à sua missa, substituindo a expressão metafórica vinha do senhor pela vinha do Diabo, rezando em seu breviário, com regras claras e inequívocas.
Do alto de sua sabedoria eterna, Deus tão somente aplicou-lhe um certo olhar de desdém e um malicioso sorriso de certeza do insucesso da tarefa a que se propunha seu mais terrível adversário. Como dizia o velho Machado no intrigante conto, "as turbas corriam atrás dele, entusiasmadas" com seu discurso aliciador.
Assim aconteceu no Brasil, especialmente no ano ora findo de 2005, em que as turbas correram desabaladamente para obter a primazia de sua inscrição na igreja do diabo. O lúcifer já havia feito inúmeras tentativas no curso da história pátria.
Apesar de vê-las frustradas, o resultado de cooptação de vários devotos representou ganhos para o Mefistófeles caboclo, resultado perfeito da união de três raças tristes. Não vem ao caso agora fazer o esboço histórico das diversas oportunidades de fundação da igreja do diabo entre nós. Houve muitos períodos que muito contribuíram para criar as condições favoráveis ao surgimento do templo demoníaco. Em determinados governos no Brasil, fartou-se o demônio em sua tarefa sinistra de seduzir quadros para sua grei.
Os resultados foram catastróficos para uma nação que saíra sorridente e feliz do período em que Juscelino Kubitschek promoveu a mais alucinada e democrática revolução do progresso.
Depois de muitos anos, sem frestas que lhe assegurassem penetração para voltar à tentativa de edificar sua igreja, a capacidade de resistência dos nacionais ganhava cada vez mais fortaleza e crença na superioridade de certos valores, contra os quais o diabo não obtinha qualquer parcela de vantagens.
Eis que surge o ano de 2002 e com ele o aparecimento de turbas cada vez mais agitadas e entusiasmadas, antes dedicadas a combater possíveis adversários com aleivosias cruéis, denunciações caluniosas, colocando à vista do povo suas entranhas aparentemente purificadas em anos de sofrimento longe do poder.
Como ninguém é mais perito no conhecimento da alma humana, seus desvios e fraquezas, o diabo esfregou as mãos de contente por ver surgir a grande oportunidade de recuperação do tempo perdido. Encheram-se seus templos espalhados pelo país. A cada dia, corruptos surgiam. Fraudadores apareciam. Venais fervilhavam.
A cada novo negócio em que se envolvia o poder público, mais concussionários eram divisados entre as franjas das cortinas colocadas para dar opacidade às tramas do assalto ao erário. Dava gargalhadas estentóricas o diabo, feliz da vida por ver os fundamentos de sua igreja ganhando consistência cada vez maior. Foi assim este período demoníaco, cheio de desfaçatez, com o templo de satanás cada vez mais lotado de estranhos fiéis de seu breviário da corrupção. A ficção quase sempre reflete a realidade.
Machado de Assis ao escrever o celebrado conto estava retratando pela veia irônica de sua genialidade um quadro presente no Brasil daquela época. Tal como hoje, em que ganha cada vez mais solidez a igreja do diabo numa nação que ainda está longe de caracterizar-se como tal, pela incúria dos governos e o mau exemplo de seus políticos.
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