Entre as várias surpresas que a vida nos Estados Unidos reserva aos brasileiros imigrantes, a da nossa transformação em ''latinos'' é, sem dúvida, uma das que mais incitam a reflexão sobre o que somos e em que podemos nos transformar circunstancialmente.
Descobri a minha identidade ''latina'' logo após o início do doutorado na Universidade da Califórnia, Riverside, em 1995: um amigo americano (branco) perguntou-me como estava me sentindo como uma mulher de cor nos Estados Unidos. Surpreendi-me com a pergunta porque minha cor jamais havia sido posta em questão no Brasil. Achando que ele estava brincando, respondi-lhe com outra pergunta: ''O que você quer dizer com mulher de cor? Que cor é a minha?''. Ele respondeu: ''Por mim, você pode até passar por branca, mas não lhe disseram ainda que você é latina?''.
Eu era branca, mas não podia reivindicar isto porque era também latina? Não entendi imediatamente o que estava em jogo com a sua questão. Um ano depois, quando iniciei minha pesquisa de campo sobre brasileiros imigrantes em Los Angeles, ouvi de Telma, primeira entrevistada, a seguinte explicação: ''Após todos esses anos aqui, acabei aprendendo a ver as pessoas como os americanos: defino rapidamente o que elas são, a raça. Fico até meio envergonhada de dizer isto - e até nem acho que sou racista - mas não gosto quando as pessoas falam comigo em espanhol porque não quero que pensem que sou mexicana, ou da Guatemala, porque essas são raças que os americanos denigrem... Elas são... Como é que eu posso explicar? Os latinos são como uma classe inferior para os americanos''.
As observações de Telma sobre a sua integração em Los Angeles levaram-me a também pensar sobre a minha. Eu jamais havia me sentido constrangida a esconder a minha latino-americanidade. Mas também não havia parado para pensar mais profundamente sobre o assunto: tinha certa consciência do racismo e colonialismo estruturando a vida e criando hierarquias de classe, cor, gênero e nação no mundo inteiro, mas, como estudante de pós-graduação, sentia-me beneficiada por ser da América Latina, especialmente no sentido da camaradagem com estudantes e professores oriundos ou interessados na região.
Mas Telma nem estava usando a palavra ''latino'' como abreviação de latino-americano, como entendi a princípio, e nem no sentido mais comum no Brasil, de acordo com o qual latino inclui tudo que alude às conseqüências do imperialismo romano e refere-se tanto à América Latina como aos seus colonizadores europeus. Ela estava, ao contrário, evocando outro significado, o de posição social, racismo e discriminação.
Por outro lado, ela não incluiu todas as nacionalidades latino-americanas na categoria latino. Especificou mexicanos e guatemaltecos como os latinos de quem ela queria se distinguir e explicou por que: Eles são como uma classe inferior para os americanos. Ora, eu também tinha colegas mexicanos na Universidade e não os relacionava com classe inferior. Por que, então, isto acontecia tão automaticamente na experiência dela?
Quarenta e seis anos, morena escura, Telma imigrou para Los Angeles em 1975 e sempre trabalhou em empregos domésticos. Mas além de um emprego típico de imigrantes latinos, ela é fisicamente mais próxima do estereótipo do camponês mexicano do que do americano branco ou negro. Assim, quando ela afirma que os latinos são considerados uma classe inferior pelos americanos, ela está claramente afirmando que, na sua integração em Los Angeles, ser classificada como latina serve apenas para reforçar as desvantagens da sua posição social.
Noutras palavras, ela está encarcerada na conotação negativa do rótulo: imigrantes pobres, trabalho desqualificado e status inferior. No meu caso, acho que o rótulo evoca o pertencimento geográfico primeiro, ou seja, quando afirmo que sou brasileira, os estadunidenses não me conectam imediatamente a um destino social nos Estados Unidos. Sou cidadã do Terceiro Mundo, o que, em termos gerais, também não é grande coisa, mas não sou latina em função da aparência e lugar no mercado de trabalho.
É claro que por trás dos dois sentidos paira a crença colonialista e racista da superioridade dos Estados Unidos sobre os outros países e, conseqüentemente, do homem branco sobre outras expressões de humanidade. E, no final das contas, da perspectiva da geografia neo-colonial, o estereótipo de latino está irremediavelmente ligado à posição e status da América Latina na divisão internacional de trabalho. É exatamente esse status que é transferido aos imigrantes e que permitiu ao meu amigo me questionar sobre como eu estava experimentando a vida como uma mulher de cor nos Estados Unidos. Do ponto de vista do colonizador, portanto, pouco importa a nacionalidade de cada ''latino''. Brasileiro, argentino, chileno, mexicano e dominicano são todos iguais.
O problema, porém, é que a utilização dos critérios da aparência e lugar no mercado de trabalho na hierarquização social não é uma exclusividade da sociedade estadunidense. Ao contrário, esses critérios funcionam com a mesma eficácia em todas as sociedades atingidas pela expansão ocidental. E aqui, ao invés de buscar exemplos longínquos, aproveito para iluminar um pouco a nossa própria realidade: a discriminação contra o nordestino no Sul e Sudeste ou contra o sertanejo nas cidades litorâneas são expressões do mesmo racismo que é tão facilmente observável nos Estados Unidos contra os latinos.
Em todos esses casos, como propõem Castles & Kosack (Immigrant Workers and Class Structure in Western Europe. London: Oxford University Press 1973), a discriminação racista contra o imigrante deve ser interpretada como uma conseqüência da função que ele geralmente ocupa na estrutura social e não o contrário. Assim, cor e etnia não podem ser fatores determinantes da posição social do imigrante porque esta já é definida a priori, uma vez que a imigração é motivada para suprir demandas específicas de trabalho. Ou seja, a discriminação generalizada contra os imigrantes é comparável àquela contra as classes trabalhadoras e funciona como mais um elemento na hierarquia da exploração do trabalho.
Porém, uma vez que o estereótipo é construído tendo como base certo grupo étnico ou racial, todos os indivíduos identificados com ele serão tratados semelhantemente, com exceção daqueles que possuem atributos que lhes permitem ''provar'' que são exemplares distintos do conjunto. Exemplo, os latinos cuja aparência permite vinculá-los a outros grupos raciais ou étnicos podem se utilizar deste atributo para negociar a sua ''latinidade'' em outras bases, ou mesmo passar por branco, negro ou o que for possível.
Por outro lado, embora com uma aparência que os vincule ao estereótipo, os latinos pertencentes às elites também conseguem negociar a sua identidade mais favoravelmente. Moral da história: os povos, as regiões, as raças e os países são mais ou menos valorizados em função da distância em que se situam em relação aos modelos propostos pelos centros de poder. Desse modo, seja como latino, nos Estados Unidos, ou nordestino, em São Paulo, a vida é sempre mais fácil para os que têm pele mais clara e mais dinheiro.
Bernadete Beserra é Ph.D. em Antropologia pela Universidade da Califórnia, professora da Universidade Federal do Ceará e integrante do Observatório das Nacionalidades.
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