Quatro e cinqüenta e sete da tarde

Quatro e cinqüenta e sete da tarde de um verão, em junho. (No Rio, o verão começa em junho e acaba em maio do ano seguinte). Chega no escritório do Pereira um fax. É da Presidência. Ele já sabe: emergência. Pereira é um experiente redator, já viveu mais presidentes do que aniversários que seu filho adolescente comemorou. Sempre trabalhou em política, no jornalismo, mas decidiu largar tudo para fazer poesia. "É tudo questão de linguagem", repete.

O pedido é pesado: a economia do país tá na merda e os homens lá de cima já tentaram de tudo. Até mesmo vender o país. Nada deu certo. Daqui a dois dias o presidente vai discursar em praça pública, para milhões, em pleno domingo. Vai falar sobre economia, mas, como os últimos quarenta e oito dirigentes nacionais que ocuparam o cargo máximo da "nação" (Pereira parece ser atingido na perna por um tiro quando alguém se refere à palavra 'nação'), o presidente não entende nada sobre o assunto.

Pereira dá seu sorriso-anzol e deixa o texto para o dia seguinte. Não era a primeira vez que fazia o trabalho sujo, mas impressionava a calma com que tratava o tema. "Parei de ficar nervoso em situações-limite desde que meu sogro fugiu com minha mulher", recorda. No dia seguinte, antes do café (só café mesmo, porque sempre pagaram pouco pro Pereira), ele começa a escrever:

Companheiros. Companheiras. Brasileiros. Brasileiras. Latino-americanos. Latino-americanas. [respire, olhe para o infinito, mas não muito para não parecer maluco, como quem olha para as crianças construindo um futuro ] Eu estou aqui neste domingo, neste tão belo domingo para aqueles que ainda são alcançados pelo sol, para rebater a crítica de alguns segmentos da sociedade que não raras vezes omitem nossas realizações.

[o ar deve ser de total respeito aos críticos, como se você realmente acreditasse que eles são melhores. Fale exatamente o que eles pensam, como se fosse você]

São muitos os que nos atacam falando que a economia não está bem. Que a economia não está avançando. Que a economia não se sustentará por muito tempo.

[atenção: mudarei de assunto, mas você deve manter o mesmo tom, como se fosse a mesma coisa]

Estou aqui, minha gente, para falar a essas pessoas sobre o quão grande é o nosso país. Este é um país cheio de diversidade, seja na sua tão brava gente, seja na sua tão admirada riqueza natural. Estou aqui para falar a eles que, em 30 anos de vida pública, nunca fui de correr da briga. Nunca fui de correr da luta. Quem já sofreu como eu sofri sabe que tudo que é bom e correto nessa vida deve ter muito sacrifício. Que nada é de graça. Que nós, trabalhadores e trabalhadoras, estamos dispostos a lutar muito para conquistar o que é nosso.

[atenção novamente: o mesmo tom]

É por isso, meu povo, que os críticos que tentam atacar as bases sólidas deste governo popular, todos eles protegidos e confortáveis em seus escritórios e mansões, não podem vencer esse debate tão importante, como é o debate sobre a economia no Brasil.

[pausa, como quem sofre para beber água e se alivia profundamente, feliz com um líquido sagrado, que você aproveita gole a gole]

Então me respondam, companheiros e companheiras. Eu pergunto a vocês, brasileiros e brasileiras. Amigos e amigas deste Brasil de [colocar um líder histórico de sua preferência] e de tantos outros heróis. Por acaso o companheiro [ líder da História recente de sua preferência], ao se ver restrito a poucas possibilidades e perseguido cruelmente por seus adversários, recuou da luta?

[pausa para que pensem que ele não recuou ]

Sim, amigos e amigas. Ele recuou. Recuou por se saber humano e por conter dentro de si o dom da humildade.

[a partir de "conter" vá ficando mais calmo, até culminar em um "humildade" leve e sutil, como quem tem um misto de respeito e medo da palavra]

Quando o nosso mestre [nome de cantor ou ator conhecido, que tenha uma filha pequena e que foi perseguido pela ditadura] ficou durante trinta dias preso nos anos 70, sem poder se comunicar com sua filha [ nome da filha] e sua família, o que ele fez?

[pausa]

Desistiu?

[pausa]

Não. Ele não desistiu. Como tantos outros milhares de brasileiros e brasileiros, [ator/cantor, agora com um nome mais carinhoso] tinha uma missão a cumprir. [ pausa] Tinha uma família a honrar. [pausa] Tinha uma vida a viver.

[se puder, chore. Se não conseguir, hoje há ótimos produtos no mercado que não deixam pistas sobre a honestidade das lágrimas ]

Desculpem-me. Não é sobre isso que viemos falar. Esse capítulo da História felizmente ficou no passado. Viemos aqui, meus queridos companheiros, falar sobre a economia. Viemos aqui, neste domingo onde o sol começa a surgir para aqueles que estão na sombra, para dizer que os indicadores da economia brasileira são os melhores dos últimos 10 anos. [ ao final dessa frase, comece a balançar levemente a cabeça para cima e para baixo em 'indicadores', feche os olhos como quem está sutilmente gozando em "melhores" e dê uma serena risada de satisfação depois de "10 anos" ]

[aumente o tom para dizer as próximas duas frases]

É para dizer que o crescimento do PIB foi além das expectativas mais otimistas. Que o investimento cresceu e a inflação está sob controle.

[aumenta mais ainda o tom]

Estamos aqui, companheiros e companheiras, não para falar de números que os trabalhadores e trabalhadoras deste país não entendem, mas sim para falar que o resultado dessa política é a maior retomada do emprego desde 1992.

[ fale "1992" pausadamente, citando letra por letra]

[atenção para a próxima parte: treine antes para falar errado, dando a impressão de que o discurso é espontâneo. Continue aumentando pouco a pouco o tom, de acordo com os aplausos ]

Que é mais emprego para o povo. Que tem mais oportunidade pra dona de casa, pros jovem desse país, pra gente que não agüenta mais sofrer.

[grite, de forma educada]

Eu não vim aqui falar pros economista sentado nos arranha-céu da Avenida Paulista, minha gente, eu vim falar pra vocês, e vim falar que este país tem jeito e que nós vamos dar um conserto neste país de qualquer maneira, queira ou não queira a oposição.

[se acalme. Limpe a testa. Olhe para os olhos do povo, como se estivesse procurando alguém. Agora fique com cara de sério e continue]

Os empresários vão a Brasília reclamar dos juros [use um certo tom com juros, dando ênfase no "ju"], companheiros. Toda semana, eles estão em Brasília, reclamando dos juros [use o mesmo tom]. Eles têm fixação com os juros [repita o tom]. Eu vou falar uma coisa para vocês. Quando você tá num time de craques, como é o nosso governo popular, você não tem coragem de mexer. Era fácil, pra gente, fazer o que eles queriam que nós fizéssemos. Tira o fulano, o sicrano, o beltrano.

Mas eu não recebi [ número de exato de votos] votos do povo para fazer o que eles querem. Eu recebi [repete o número de votos, mas arredonda dessa vez para "(...) e tantos mil", para pensarem que foi espontâneo] votos do povo para armar um time de craques, e não é porque tem gente lá em cima insatisfeita que eu vou ceder, que eu vou tirar quem eu preciso perto de mim.

[finja pensar, faça o truque das crianças construindo o futuro]

Este é um país que sofreu com o saque externo de mais de 500 anos, com a ganância de gente inescrupulosa que não queria o nosso bem. Era um avião sem rumo, que tava caindo. Quando a gente pegou esse país, muita gente queria mudar tudo de uma vez. Queria fazer a faxina toda da casa de uma vez só. Eu conversei pessoalmente com cada companheiro e companheira que eu chamei pra trabalhar comigo e falei pra eles:

companheiros, a gente tem que levantar esse avião. Tem que colocar ele no rumo, de pouquinho em pouquinho. Não pode 'saí' dando cavalo de pau com o avião, querendo fazer tudo de uma vez só.

[finja que está se lembrando do momento dessa suposta conversa com os ministros, como se estivesse lá. Dê uma risadinha, como quem lembra da reação de um deles ]

Eu falei isso pra eles, e eles entenderam que esse país é muito grande pra não ter projeto. É muito brasileiro e muita brasileira, um coração maior do que o outro, querendo que isso aqui vire uma nação, que vire uma terra de todos os cidadãos, que não tenha mais mãe e pai pedindo dinheiro pra comer, pra dá de comer aos filhos. São 175 milhões... [ pausa para pensar, tática das crianças, aumente o tom inesperadamente]... é muita gente querendo que esse país dê certo, e ninguém vai impedir, eu juro, ninguém vai impedir a gente de se tornar uma nação mais digna e mais humana. Muito obrigado. [ com o tom certo, de forma inesperada, termina com aplausos. O presidente deve sair antes dos aplausos terminarem]

_____________________ Texto produzido por Gustavo Barreto, da Redação Consciência.Net, em 19/11/2005.

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