Temos que derrubar a estátuas de Caxias?

Como em  Bristol,  temos que derrubar a estátuas de Caxias?

Mário Maestri*

            As estátuas de escravistas e assemelhados estão sendo derrubadas em diversos pontos do mundo. E, na Inglaterra, grupos e partidos de direita organizam-se para defendê-las. Trump se nega a renomear bases, navios, fortes batizados em homenagem a militares confederados.  Em alguns países, as autoridades recolhem estátuas e bustos mal-afamados preventivamente. O confronto se aquece e já se fala de uma verdadeira batalha das estátuas.

 

            Após o assassinato de George Floyd, em 25 de maio, por policial, em Minneapolis, nos Estados Unidos, sucederam-se manifestações multitudinárias através daquele país contra o racismo, sobretudo por populares negros mas também  por multidões de brancos. A explosão de indignação registra o desgosto histórico com o racismo institucional estadunidense, que se expressa comumente através de agressões policiais contra populares negros.

 

            A dura situação de amplos setores da população estadunidense é agravada pela inexistência de sistema pública de saúde. Um enfermo de covid-19 pode sair de um ventilador pulmonar com conta de dezenas de milhares de dólares. E trabalhadores afastados por doença comumente não são pagos. A atual catástrofe social cresce com o fim do salário desemprego aguardando milhões de desocupados nas  próximas semanas.

 

            Há amplo apoio entre a população estadunidense contra as manifestações anti-racistas. E, com o agravamento pelo Covid-19 das profundas contradições sociais nos USA, fora Donald Trump e seus seguidores, as autoridades estaduais e municipais do país primaram pelos pronunciamentos e decisões que procuram apaziguar a maré de indignação e descontentamento. A polícia municipal de Minneapolis foi dissolvida, para ser reconstruída despida de preconceitos racistas, promete-se. Em Washington, o Parlamento está banindo bustos de vultos racistas e chefes das forças armadas acenam no mesmo sentido, quanto a homenagens a militares confederados.

 

            Como habitual, as mobilizações anti-racistas nos USA repercutiram através do mundo, com destaque para os países europeus com emigrados de longa e recente datas. Foram importantes as manifestações na Inglaterra, na França, na Alemanha, na Itália, na Espanha. Países sem imigração estrangeira significativa como Coréia do Sul e Japão conheceram também protestos. Houve mobilizações em Pretória, na África do Sul, onde já fora feito limpeza de monumentos colonialistas há alguns anos, e em diversos outros países.

 

            Sinal dos tempos, Leopoldo II, da Bélgica, proprietário privados por longos anos do Congo, uma espécie de Himmler ou Heydrich coroado, responsável por milhões de centro-africanos massacrados, acaba de ter uma de suas muitas estátuas pintada de vermelho, derrubada e queimada em Antuérpia. Até agora, era no país figura quase intocável, apesar do pleno conhecimento de sua ação literalmente genocidária.

  

Das palavras aos atos

            Não apenas na Itália, as manifestações anti-racistas associaram-se comumente à reivindicação do direito de cidadania aos filhos de estrangeiros nascidos no país - «ius soli». Dezenas de adultos, jovens e crianças nascidos,  crescidos, estudando e trabalhando no Bel Paese, falando, gesticulando, comendo e comportando-se como napolitanos, genoveses, milaneses natos, não são italianos apenas por serem filhos de não-italianos. Entretanto, a nacionalidade italiana é concedida a  bisnetos e tataranetos de italianos imigrados, radicados no exterior, que comumente jamais estiveram na Itália, quase nada sabem do país e não falam italiano. Trata-se de registro indiscutível de racismo e da resistência atual de modernizar uma Constituição que nasceu da luta anti-fascista, tendo como referência o mundo do trabalho.

 

            As manifestações assumiram também forte sentido simbólico. Em Bristol, na Inglaterra, manifestantes anti-racistas jogaram ao rio a estátua de Edward Colston, que, no século 17, após enriquecer comerciando africanos escravizados, fez doações filantrópicas a Bristol, sua cidade natal. Aquele ato de ampla repercussão midiática não foi pioneiro. Há anos, igual limpeza tem sido feita em cidades sobretudo do sul dos Estados Unidos. Nova Orleans, na Luisiana, Estado terrivelmente escravista, antes da guerra da Secessão, em 1861-65, e terrivelmente racista, após ela, tem conhecido um verdadeiro massacre de estátuas de próceres racistas.

 

            Naquela cidade, demográfica e culturalmente negra, foi apeados do pedestal, entre outros,  Jefferson Davis, presidente da Confederação sulista. Melhor ainda, a estátua de bronze, de cinco metros, de Robert E. Lee, general confederado referencial, desceu de pedestal de vinte metros. A mesma sorte teve o coronel Frederick N. Ogden, comandante do ataque de milícia branca contra as forças policiais integradas da cidade, em 1874, após a guerra da Secessão. Cristóvão Colombo começou também a ser derrubado, acusado de descobrir a América e iniciar o  tráfico e a escravização dos autóctones. Em verdade, ele teria aprendido a navegar no Atlântico com os negreiros portugueses, em viagens à costa da África.

 

            No ano passado, caso mais célebre de desconstrução simbólica, com o mesmo sentido, mas abordando questão diversa, foi a pouco midiatizada retirada dos restos mortais do  generalíssimo Franco, da monumental basílica do chamado Vale dos Caídos, mandada por ele erguer, ainda em vida, para hospedar e homenagear os restos de José Primo de Rivera, fundador da Falange Espanhola, o fascismo castelhano. Ali estão também enterrados dezenas de milhares de soldados e vítimas franquistas. Ainda há valas coletivas de multidões de republicanos executados pelos falangistas que as autoridades espanholas resistem a exumar.

Não sabiam o que faziam

            Os sucessos de Bristol reabrem a discussão sobre a necessidade de combater o racismo, o colonialismo e a opressão das classes populares eliminando também os monumentos de todo o tipo a destacados escravistas, colonialistas e repressores desapiedados da população e de comunidades nacionais. Entretanto, vêm sendo abundantemente midiatizadas as opiniões contrárias a esses atos. A principal crítica ao defenestramento dos monumentos daqueles algozes é que ele descontextualiza comportamentos cometidos no passado. Não se poderia, portanto, acusar os próceres homenageados por atos infames, como o tráfico negreiro, o genocídio de nativos, o massacre dos sertanejos de Belo Monte etc., apoiados pelas instituições civis e religiosas da época. Deve-se deixar tudo como está, pois são apenas questão e registro históricos. No Brasil, defendem a posição conservacionista escritores midiáticos e historicamente pouco confiáveis como Laurentino Gomes.

 

            Esse argumento tem pernas bambas. Desde os primórdios, poucos mas brilhantes críticos denunciaram a desumanidade do tráfico, do colonialismo, do massacre de populares e de comunidades inteiras. E em geral foram reprimidos pelas instituições de Estado e pela Igreja por o fazerem.  Quem fez, então, algo de mal, sabia plenamente o que fazia, e o fazia para alcançar benefícios de todo tipo. Não eram inocentes: eram desapiedados e cínicos membros ou representantes de instituições despóticas. E se trata de um argumento seletivo, pois os mesmos que defendem a manutenção desses "marcos históricos" não combatem a eliminação de monumentos em homenagens a criminosos como Torquemada, Hitler, Himmler, Mussolini, Franco, Stálin, etc. das praças públicas, estádios, universidades, etc.

 

            Portanto, se grandes, médios e pequenos racistas, colonialistas e assemelhados gozaram em vida de seus crimes e, a seguir, foram homenageados por eles, não devem escapar ao julgamento da história. E sobretudo, a homenagem que receberam, no passado, distante ou próximo, ofende aos que eles ofenderam em vida, aos  descendentes destes últimos e a todos os homens e mulheres de bem de hoje. Sobretudo, os monumentos do passado à barbárie reafirmam a manutenção da barbárie no presente, apenas -e não sempre- travestida. Na Inglaterra, partidos  e torcidas de direita já se organizam para defender sobretudo as estátuas de Churchill, colonialista e racista de raiz. O mesmo faz Trump e os seus, nos USA, como vimos.

  

            Vamos atirar Caxias na baía da Guanabara

            E no Brasil? Devemos fazer o mesmo? E, se a resposta for positiva, por que não o fazemos? Algo se tem tentado. Não muito e com poucos resultados. Ainda que corajosos e pertinentes. Apesar dos longos anos de governos petistas federais, estaduais e municipais, as cidades brasileiras seguem povoadas com milhares de ruas batizadas com nomes de escravizadores, racistas, ditadores, de mãos e pés sujos com o sangue da população brasileira, passada e presente. Há algum tempo, o movimento aos Bandeirantes em São Paulo foi pichado de vermelho. A mídia, intelectuais pronunciaram-se contra aquele ato, definido como vandalismo. Em 2016, um insuspeito militante de esquerda escreveu artigo, contra a pintura em vermelho daquele elogio grotesco à escravização de nativos e da estátua de Borga Gato. Em "Sobre as selvagens pichações aos monumentos da cidade de São Paulo" defendoa que seriam intocáveis por serem qualquer coisa como obras de arte!

 

            O grande paradoxo do Brasil é que, se derrubarmos os grandes monumentos levantados a civis,  militares e religiosos escravistas e semelhantes, vão ficar muitos poucos em pé! A barbárie contra a população na Colônia, no Império e na República tem sido a norma, implementada direta e indiretamente pelos próceres da pátria. A reverência e respeito histórico , no presente, a tais comportamentos do passado, nos ajuda a compreender a solidez e consenso atual em torno do tratamento despótico e desapiedada de nossa população, pelas instituições nacionais e nossas mal ditas elites.

 

            Os grandes vultos históricos e instituições coloniais chafurdaram literalmente no sangue das comunidades originárias, africanas e caboclas. Os monumentos às bandeiras,  a Borba Gato e a outros bandeirantes paulistas são desatinos. São monumentos ao massacre multitudinário para construção da riqueza e poder das classes dominantes. As múltiplas homenagens aos padres Manoel da Nóbrega e José de Anchieta, também. O último apoiou, incentivou e homenageou como obra cristianíssima o massacre de milhares de nativos. Quem não acreditar, leia "Os feitos de Mem de Sá" impresso em 1563, em Coimbra. Houve entretanto, alguns poucos jesuítas que sentiam carinho e simpatia para com os nativos, que eles jamais chegaram a realmente compreender. Não há homenagens públicas a eles.

 

            A estátua a dom João 6, que limpou as burras do Banco do Brasil, em 1821, ao voltar a Portugal, e combateu a independência brasileira, em 1822, já é hilária. Qualquer coisa como o Internacional levantar monumento à vitória do Grêmio. Pedro I e seu filho construíram seus reinados sobre o suor, o sangue e a vida de centenas de milhares de escravizados. Pedro I propiciou o primeiro golpe militar no Brasil e afogou em sangue o movimento republicano pernambucano, massacrando suas lideranças sem julgamento. Seu filho, entre outras coisinhas,  manteve ferreamente a escravidão por mais de quatro décadas, foi responsável pela continuação da guerra contra o Paraguai, com a morte de milhares de paraguaios e brasileiros, quando o país estava já irremediavelmente derrotado.

  

Escravista desde sempre

            Duque de Caxias foi proprietário de escravos e escravista inveterado, envolvido em inúmeros atos de  repressão e massacres a cativos, nativos, caboclos, etc. rebelados, desde sua juventude, como tenente. Décadas mais tarde, organizou no Rio Grande do Sul o célebre massacre dos Lanceiros Negros farroupilhas. Tamandaré, senhor de escravos, comandante da destruição do governo constitucional uruguaio,  maior responsável pelo massacre de Paisandú e dos oficiais defensores uruguaios, já rendidos, possui inúmeras estátuas. No Rio Grande do Sul, Bento Gonçalves e Antonio de Souza Netto mantiveram a escravidão na República Farroupilha e morreram proprietários de escravos.

 

            Alguns dos nossos mais destacados literatos do século 19 vão ter que descer também do pedestal, como José de Alencar, político escravista de destaque. Na República, alguns dos mais lídimos intelectuais brasileiros foram ferrenhos racistas e eugenistas, como Gilberto Freyre, Oliveira Vianna, Monteiro Lobato, Roquette Pinto, Gustavo Barroso e mesmo Euclides da Cunha. São tradicionais nomes de escolas, ruas, praças, etc. No Rio de Janeiro, subsiste estátua do marechal Carlos Machado de Bittencourt, responsável pelo massacre da República sertaneja de Belo Monte e centenas de seus defensores já rendidos.

            São milhares de praças e ruas no Brasil batizadas com nomes de vultos históricos ou simples personagens republicanos que se destacaram pelos atos contra as classes populares de suas épocas. Hermes da Fonseca, Costa e Silva, Garrastazú Médici, Ernesto Geisel e por aí vai. Até Filinto Miller, o torcionário de Getúlio Vargas, sobre o qual David Nasser escreveu a obra célebre Falta alguém em Nuremberg, tem praças,  ruas e até escola com seu nome. Em São Carlos, São Paulo, Sérgio Paranhos Fleury, um dos mais sinistros torturadores da ditadura brasileira, chegou a ter rua denominada em sua homenagem.

  

Defendendo a opressão como princípio

            A defesa direta ou indireta da manutenção de monumentos e homenagens a figuras históricas execráveis é feita mais comumente por aqueles que defendem no presente, em forma direta ou nuançada, os valores por eles defendidos ou representados no passado, como visto. A batalha em torno da memória é combate político-ideológico com pés enterrados no presente, não no passado.  Trata-se de romper ou manter os grilhões que prendem centenas de milhões de pessoas na atualidade, facilitando ou impedindo que eles compreendam o sentido de honrar a memória daqueles que aguilhoaram as classes populares no passado. Trata-se de batalha que expressa a manutenção ou o surgimento de novas correlações entre as forças sociais, a ser travada em torno de cada sucesso histórico, vulto pátrio, monumento a dignatários das classes exploradoras. Derrear símbolos da tirania não deve ser movimento individual, mas atos coletivos, resultado do crescimento da consciência.

 

            Há muito a ser feito no Brasil para que as homenagens simbólicas deixem de ser feitas aos verdugos da população brasileira, no passado e no presente. Nesse sentido, para rejeitar os personagens militares que pisaram forte sobre a população brasileira do passado, as classes populares, do presente, devem assumir a consciência daqueles fatos e acumular força para enviar, hoje, os senhores generais de volta para os quartéis, de onde não deveriam jamais ter saído. Mas todo e qualquer ato nessa desconstrução simbólica certamente contribuirá para avançar verdadeira democracia no país, em todos os sentidos.

  

O que fazer com as estátuas e outros monumentos

            Sobre o nome de ruas, praças, escolas, etc., a decisão é fácil. Como já se tem feito algumas vezes, os nomes infamantes devem ser trocados se possível pelos daqueles que os combateram ou a eles se opuseram. Há anos, em Porto Alegre, se procura trocar o nome da avenida Castelo Branco por avenida da Liberdade, da Legalidade, de Leonel Brizola. Uma Câmara Municipal e uma Justiça sempre a favor dos poderosos tem dificultado esse esforço.

 

            Segue, porém, aberto o debate sobre o que fazer, sobretudo com as estátuas de personagens que feriram a civilização. É um direito das populações enraivecidas destruir os símbolos históricos das misérias que sofrem atualmente. Entretanto, o que fazer quando se trata de um defenestramento organizado, público, conquistado pela imposição da vontade das populações sobre seus administradores? O que devemos fazer com essas obras? Atirá-las ao lixo? Jogá-las no rio ou no mar? Fundi-las, quando em bronze e ferro, para que não deixem traços sobre a face da terra?

 

            Pessoalmente, creio que não, quando se tratam de objetos de destaque, com importante sentido histórico e algum valor artístico. São obras que expressam épocas, nem que sejam em um sentido negativo. Registram estágios da estatuária da época, da simbologia então em voga, do sentido apologético de suas narrativas. A escravidão, o fascismo, os massacres populares, etc. não devem ser negados, mas estudados e combatidos até suas raízes mais profundas, desde o ponto de vista dos ofendidos. Após retirados de onde se encontram, em situação de homenagem, parece-me mais correto reunir essas obras em museus especiais, ou em centros universitários e de pesquisa, abertos à população, que relatem  seus mal-feitos. Obras celebrativas de Hitler, Mussolini,  Stalin, Leopoldo 2°, Hirohito, Francisco Franco, Henri S. Truman, Churchill, Nixon, Bush e por aí vai  não perverterão a consciência de visitantes alertados por seus crimes, pela razão de terem sido derrubados dos pedestais e do sentido de terem sido preservados pela história, também como depoimento de seus malfeitos. (Duplo Expresso, 11/06/20202)

 

Mário Maestri, 71, historiador, é autor de Revolução e contra-revolução no Brasil: 1530-

2019. https://clubedeautores.com.br/livro/revolucao-e-contra-revolucao-no-brasil

           

 

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