Essa tradição implica que os ex-presidentes praticamente se eximem de emitir avaliações sobre seus sucessores, deixam de participar das querelas políticas e se tornam uma espécie de "instituição" neutra da nação.
Tal tradução não vigorou no Brasil. De modo geral, aqui os ex-presidentes voltam ao exercício da atividade política e, ao assim procederem, perdem aquela condição majestática da condição singular e ímpar que a História lhes havia conferido. Ao voltar à atividade política, um ex-presidente se submete a todo tipo de risco a ela inerente. Acreditava-se que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso pudesse inaugurar uma tradição assemelhada à tradição norte-americana dos ex-presidentes. No entanto, sua intensa participação em articulações políticas e no debate político aponta para o sentido contrário. Evidentemente, a escolha do ex-presidente é legítima e precisa ser respeitada.
As opiniões que Fernando Henrique Cardoso tem emitido sobre o governo Lula precisam ser levadas em conta, principalmente, por virem de alguém que ficou oito anos no posto de presidente. O ex-presidente não deixa de ter razão quando observa que os Estados e os governos, no contexto da globalização, não têm mais aquela condição de agentes, executores e fautores no mesmo grau que tinham há 20 ou 30 anos. Existem várias razões que concorrem para essa perda de capacidade para exercer a governança exclusiva pelo governo. Um grupo de razões está ligado à globalização, ao aumento da interdependência, às implicações das novas tecnologias, à emergência dos mercados e das sociedades como atores da governança, etc.
Mas existem também razões de natureza ideológica. O liberalismo radical, ao perceber a inefetividade das formas antigas de atuação do Estado e dos governos, em vez de buscar novas formas de atuação, passou a sustentar a tese de sua irrelevância. Com isso as instituições políticas não foram reformuladas e renovadas. Foram, em parte, liquidadas. Em boa medida, o governo Lula herdou essa terra arrasada de parte significativa do Estado.
Felizmente, hoje a teoria democrática está revalorizando novas funções do Estado.
Imbricada com o problema mais de fundo da capacidade de ação dos Estados e dos governos está também a questão do desenvolvimento. É certo que o Brasil vive uma crise de paradigmas e uma crise efetiva nessa questão: o País não cresce de forma substantiva há mais de duas décadas, incluindo aqui os oito anos de governo Fernando Henrique. O grande feito do governo anterior consistiu em garantir a estabilidade econômica, condição necessária para o desenvolvimento. Essa conquista foi incorporada como um valor pela sociedade e como continuidade pelo governo Lula. Mas a prática tem provado que a estabilidade não é uma condição suficiente para o desenvolvimento. Também não há nenhum indício de que estabilidade e desenvolvimento sejam sucedâneos um da outra. A estabilidade pode persistir sem que haja desenvolvimento, situação que, provavelmente, terminaria por levá-la à ruína.
É forçoso constatar que o governo Fernando Henrique não enfrentou a questão do desenvolvimento. Isso é dito não apenas por petistas, mas por ex-integrantes de seu governo. Eleito para promover o crescimento e a geração de empregos, o governo Lula está enfrentando com ousadia o desafio do desenvolvimento. Os primeiros elementos desse novo modelo de desenvolvimento estão aparecendo: a nova política industrial, tecnológica e de comércio exterior; as Parcerias Público-Privadas (PPPs); a redefinição do modelo do setor elétrico, etc. Esse novo modelo precisa enfrentar problemas no marco regulatório. Nesse âmbito, trata-se de superar o modelo herdado do governo anterior, que legou agências capturadas pelos setores e empresas que deveriam ser regulados. Garantir um modelo econômico de maior competitividade, atacar as práticas oligopolizadas, fornecer mais garantias jurídicas e financiamento para os investidores e empreendedores também são medidas que fazem parte do novo modelo econômico. Isso tudo não será feito da noite para o dia e os resultados levam um certo tempo para maturarem. O que importa é que o governo está enfrentando todos esses gargalos.
O atual governo, como qualquer governo, certamente comete erros e apresenta insuficiências de desempenho. Mas é preciso lembrar que o governo Lula herdou o País em grave crise, circunstância que ameaçava até mesmo a conquista da estabilidade econômica. Os principais indicadores macroeconômicos ameaçavam fugir do controle: inflação elevada, altas taxas de juros (Selic e juros reais), risco Brasil em 2.500 pontos e câmbio a R$ 3,50. O elevado endividamento público processado nos oito anos anteriores e a péssima qualidade desse endividamento, configurada nos altos prêmios de risco, na parcela elevada da dívida cambial e atrelada ao dólar e nos prazos curtos de vencimento, fizeram com que o atual governo operasse em estreita margem de manobra em 2003.
Embora as condições macroeconômicas tenham melhorado substantivamente, a herança ainda impõe graves limitações. Havia também uma pesa agenda legislativa a vencer, relativa às reformas tributária e da Previdência, Lei de Falências, transgênicos, Estatuto do Desarmamento e reforma do Judiciário. Tudo isso consumiu tempo e energia. O ex-presidente Fernando Henrique tem todo o direito de formular suas críticas. Mas deveria olhar com mais condescendência para as precárias condições em que Lula assumiu o governo.
José Genoino presidente do PT
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