PRESCRIÇÃO MÉDICA DE CANNABIS
Exposição de Motivos:
Muito comum num passado não muito distante, a utilização medicinal da cannabis deixou de ser considerada pela medicina ocidental a partir do século XX, sucumbindo ao aparecimento de terapias alternativas e à pressão sociopolítica do contexto proibicionista a que a planta se encontrou associada.
A existência de registos com várias centenas de anos que atestam a utilização medicinal desta planta, nas mesmas condições e em épocas tão distintas, transcendendo culturas e costumes, ao mesmo tempo que a ciência moderna sugere a sua aplicação no tratamento da dores crónicas associada a diversos sintomas médicos, devia-nos fazer olhar com mais atenção para esses usos e costumes.
Recentes pesquisas, contudo, sugerem que cannabinóides endógenos, e que fazem sentir os seus efeitos através dos mesmos sistemas que os constituintes da cannabis, podem ter efeitos terapêuticos benéficos, nomeadamente no sistema neuroprotector. Na edição de Maio de 2003 da revista The Lancet Neurology, David Baker e outros autores apresentam uma visão global da biologia da cannabis e cannabinóides e dos, estudos clínicos sobre o futuro da utilização terapêutica da cannabis.
Apesar do futuro imediato poder depender da utilização medicinal da planta, e assim que entendermos melhor a biologia das desordens associadas, o futuro para a sua utilização terapêutica deverá repousar seguramente em produtos farmacêuticos, seja como simples agentes ou em combinações terapêuticas com outros agentes. Já existem actualmente indicações que cannabinóides podem ser usados numa sinergia de combinações com opiáceos e na diminuição dos sintomas de dor. Graças a essas combinações, poder-se-á reduzir as dosagens, com a vantagem de também assim se reduzir os efeitos secundários.
A pressão internacional para a aceitação médica das capacidades terapêuticas da cannabis tem crescido nos últimos anos em virtude da pressão dos pacientes que, por sua iniciativa, começaram a consumir marijuana como forma de minorar e aliviar os efeitos secundários dos tratamentos de cancro, SIDA e outras enfermidades.
Não nos devemos esquecer que, na prática, várias pessoas já recorrem a esta terapêutica para minorar os efeitos secundários dos tratamentos para o cancro, SIDA e outros sintomas associados a dores crónicas e de longa duração. Sendo naturalmente impossíveis de quantificar estes números, nada nos leva a duvidar da sua existência no nosso país, visto não ser crível que Portugal seja muito diferente das dezenas de países em que crescem exponencialmente as associações de apoio aos doentes terminais que recorrem à utilização da cannabis com fins paliativos.
Em virtude da impossibilidade da sua prescrição legal, estes cidadãos arriscam multas e registo criminal, gastando dinheiro e tempo para contactarem com o mundo ilegal do tráfico de estupefacientes para obterem um produto que não lhes fornece as mínimas garantias de eficácia, qualidade e pureza.
A experiência internacional
Neste momento, embora com algumas diferenças de metodologia, o uso medicinal da cannabis já se encontra definido e regulamentado em vários países. A 17 de Março de 1999 o Instituto de Medicina dos Estados Unidos apresentou um relatório declarando que a cannabis tem efeitos benéficos para os doentes em estado terminal, em conclusão de um estudo pedido pelo Office of National Drug Control Policy da Casa Branca. Em seis Estados dos EUA, o uso medicinal de marijuana é autorizado por decisão de referendos e, recentemente, a Food and Drug Administration aprovou a prescrição de dronabinol, um dos derivados da cannabis, aos doentes infectados com HIV.
Depois do Supremo Tribunal de Ontário, em 30 de Agosto de 2000, ter decidido que o governo devia clarificar as regras sobre drogas, permitindo assim o seu uso terapêutico, o Governo do Canadá autorizou a utilização de medicinal da marijuana para, por exemplo, controlar a epilepsia. Em Setembro de 2003, 642 pacientes encontravam-se autorizados a possuir marijuana para fins medicinais, 500 das quais tinham uma autorização para a produção da planta para fins individuais. Também no Canadá decorre um estudo em comunidades de pessoas infectadas por HIV.
Na Holanda, desde o dia 1 de Setembro de 2003, o Governo decidiu autorizar a venda de cannabis, mediante prescrição médica, nas farmácias. Através de um instituto especializado, a Oficina para o Haxixe Medicinal, o Estado controla o processo de produção e distribuição, assim garantindo a qualidade do produto.
Em Novembro de 1998, a Câmara dos Lordes do Reino Unido publicou um relatório defendendo a utilização medicinal da cannabis . Depois de consultar vários especialistas, e analisados os estudos existentes sobre a utilização terapêutica desta substância para tratamento de dores crónicas e terminais, o Comité da Ciência e Tecnologia da Câmara dos Lordes recomendou a realização de testes clínicos com carácter de urgência, requisitando a reclassificação legislativa necessária para permitir a prescrição médica da cannabis e canabinóides - por outras vias que não a inalação.
Na sequência desse documento, a 11 de Julho de 1998, o Governo do Reino Unido autorizou uma empresa a realizar testes científicos sobre as possibilidades medicinais da cannabis, tendo em vista a produção de um novo produto farmacêutico. A companhia em questão, a GW Pharmaceuticals Plc (http://www.gwpharm.co.uk), tem feito notar que existem fortes indícios sobre os efeitos benéficos da cannabis num conjunto significativo de sintomas e solicitou, em Março de 2003, autorização para comercializar um novo medicamento, Sativex, uma extracção medicinal da planta de cannabis contendo como principais componentes tetrahydrocannabinol (THC) e cannabidiol (CBD).
Este pedido, que deverá obter uma resposta em Novembro de 2003, foi entregue depois de concluídos positivamente todos os três estágios dos estudos clínicos, nomeadamente os testes comparativos com outros componentes activos actualmente utilizados, os quais incidiram sobre 350 pacientes com esclerose múltipla e dores neuropáticas. Os resultados indicam avanços significativos no combate a alguns dos principais sintomas, como é o caso mais evidente dos distúrbios de sono e espasmos.
O projecto do Bloco de Esquerda
Qualquer que seja a opinião sobre a malignidade do consumo recreativo da cannabis da qual se encontra enraizada na nossa sociedade uma ideia fortemente exagerada, e sem suporte científico válido tudo devemos fazer para que esta não comprometa a posição a tomar sobre a eventual eficácia da utilização medicinal da cannabis. Os autores deste projecto de lei entendem que se trata de duas questões totalmente distintas e, esta iniciativa, em nada modifica o actual regime legal de produção e consumo de drogas para efeito recreativo. O que se defende com este projecto é a possibilidade da utilização terapêutica da cannabis, numa base limitada e circunscrita a um determinado número de patologias suportadas pelos estudos científicos existentes.
O Capítulo VII do Relatório do Senado Canadiano Cannabis: Our Position For A Canadian Public Policy é peremptório ao afirmar que os efeitos a longo prazo do consumo da cannabis, mesmo que efectuado numa base regular, são limitados e que, os efeitos mais sérios, como o cancro da garganta, estão ainda por demonstrar claramente. Da mesma forma, convém recordar que os possíveis efeitos nas funções cognitivas predominam estatisticamente em pessoas já, por si, atreitas a essas disfunções, nomeadamente pelo início do consumo desde muito novos ou pela existência de predisposições psicóticas.
Esta política é sustentada pelos estudos científicos que estão disponíveis. Em 11 de Novembro de 1995 a revista The Lancet publicou um editorial em que afirmava que, face aos estudos realizados, O consumo de cannabis, mesmo no longo prazo, não é prejudicial à saúde. Três anos mais tarde, reavaliando a tempestade de debates provocados por esta afirmação, a mesma revista voltava a publicar um editorial em que analisava os resultados de um seminário sobre os efeitos de cannabis na saúde pública.
Os médicos e cientistas reunidos nesse seminário estudaram efeitos da ingestão de derivados da cannabis, como a irritação dos brônquios, e avaliaram o risco de acidentes em resultado da intoxicação, discutindo ainda a dependência e possível afecção das capacidades cognitivas com o uso intenso a longo prazo.
O editorial desta revista argumentou então, face a tal evidência científica, que, De acordo com a evidência científica resumida por Hall e Solowij, será razoável considerar a cannabis como menos ameaçadora para a saúde do que o tabaco e o álcool, produtos que em muitos países são não só tolerados e publicitados mas que são também uma fonte útil de rendimentos fiscais.
Por outro lado, a própria homogeneidade dos consumidores de cannabis, normalmente jovens e fumadores de tabaco, torna bastante difícil isolar um grupo suficientemente numeroso para estudar quem, por exemplo, fume cannabis mas não fume tabaco, razão pela qual dificilmente se perceberá se o cancro da garganta é devido ao consumo de marijuana ou do tabaco.
Em todo o caso, não escamoteamos que o consumo prolongado da cannabis possa produzir efeitos secundários à saúde de alguns consumidores, razão pela qual o projecto defende que todas as prescrições médicas se deverão limitar aos casos em que os benefícios para o paciente suplantam os possíveis efeitos secundários.
Sendo hoje consensual dentro da comunidade científica a necessidade de se continuar a estudar as potencialidades terapêuticas da cannabis, o projecto defende a actualização, pelo INFARMED, da tabela de patologias abrangida pelo diploma e insta o Estado a estimular e a apoiar financeiramente as pesquisas científicas nacionais realizadas neste campo.
Em declarações ao jornal Público de 21 de Setembro de 2003, Zeferino Bastos, médico no Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto e membro da direcção da Associação Portuguesa do Estudo da Dor (APED) afirma que 40 por cento da população global tem ou já teve episódios de dor crónica, e, desses, entre 65 a 85 por cento desenvolvem dor oncológica, [pelo que] é preciso desmistificar o uso de opióides. Concordando com os recentes passos processos legislativos internacionais, defende que poderia ser mais um medicamento a ser introduzido no tratamento da dor, desde que bem aplicado e com regras. É esta também a posição do Bloco de Esquerda: a prescrição médica, sujeita a forte escrutínio e acompanhamento pelas autoridades competentes, e restrita aos casos de doença crónica e terminal.
Assim, nos termos constitucionais e regimentais aplicáveis, os Deputados do Bloco de Esquerda apresentam o seguinte projecto de lei:
Artigo 1.º (Objecto) O presente projecto de lei estabelece o quadro legal para a prescrição médica da cannabis e seus princípios activos, para efeitos de cuidados paliativos nos casos de doença crónica grave e doença terminal.
Artigo 2.º (Âmbito) A prescrição médica da cannabis, e seus princípios activos, aplica-se a todos aqueles que sofrem de doença crónica grave ou doença terminal e que já tentaram, ou pelo menos consideraram, todos os tratamentos convencionais para a respectiva sintomatologia, e através de prescrição e acompanhamento médico, comprovem necessitar deste método terapêutico para minorar os sintomas clínicos previstos no presente diploma.
Artigo 3.º (Prescrição Médica) 1 - Nos casos em que o paciente sofre de uma doença terminal, deverão constar da fundamentação da prescrição médica: a) a condição médica do paciente, e quais os sintomas apresentados para que se justifique a prescrição medicinal de cannabis; b) todos os tratamentos convencionais para o quadro sintomatológico que foram tentados, ou, pelo menos, considerados; c) a confirmação de que a utilização prescrita de cannabis deverá mitigar os sintomas apresentados pelo paciente; d) a afirmação da convicção de que os benefícios da utilização terapêutica de cannabis pelo paciente suplantam os riscos associados à sua utilização; e) o período pelo qual o tratamento é aconselhado, se inferior a 12 meses; f) a dosagem diária recomendada, em gramas, e a forma de administração recomendada pelo médico; 2 Nos casos em que o paciente sofre das patologias descritas no artigo 5º, deverão constar da fundamentação da prescrição médica as seguintes informações; a) a patologia que afecta o paciente, e quais os sintomas apresentados para que se justifique a prescrição medicinal de cannabis; b) todos os tratamentos convencionais para o quadro sintomatológico foram tentados, ou, pelo menos, foram considerados, revelando-se todos eles terapeuticamente insuficientes porque; I - o tratamento revelou-se ineficaz; II - o paciente desencadeou uma reacção adversa ao medicamento utilizado como tratamento; III - existe o risco de que o paciente venha a desencadear uma reacção adversa ao medicamento utilizado como tratamento, depois de, em tratamentos anteriores, lhe terem sido detectadas reacções semelhantes a um medicamento da mesma classe; IV - o medicamento usado como tratamento resultou numa interacção indesejável com outras medicações tomadas pelo paciente, ou existe este risco; V - a medicação utilizada como tratamento é contra-indicada ao paciente; VI - o medicamento recomendado como tratamento tem a mesma estrutura química e actividade farmacológica que outro medicamento que se revelou ineficaz ao paciente. c) a utilização prescrita de cannabis deverá mitigar os sintomas apresentados pelo paciente; d) os benefícios da utilização terapêutica de cannabis pelo paciente suplantam os riscos associados à sua utilização; e) a dosagem diária recomendada, em gramas, e a forma de administração recomendada pelo médico. 3 - Se a dosagem diária recomendada exceder as cinco gramas, a fundamentação da prescrição médica deverá também indicar: a) que foram considerados os riscos inerentes a uma dose elevada de cannabis, incluindo a possibilidade de existência de problemas cardiovasculares e pulmonares para o paciente; b) os benefícios da utilização terapêutica da cannabis para o paciente, de acordo com a dosagem recomendada, suplantam os possíveis efeitos secundários. 4 - Para além dos requisitos previstos nos pontos anteriores, a receita médica deverá estar de acordo com o disposto n.º 3 do artigo 15.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, alterado pela Lei n.º 45/96, de 3 de Setembro, pelo Decreto-Lei n.º 214/2000 de 2 de Setembro, pela Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, pelo Decreto-Lei nº 69/2001, de 24 de Fevereiro, pelo Decreto-Lei n.º323/2001, de 17 de Dezembro, pela Lei n.º 3/2003, de 15 de Janeiro, e pela Lei 47/2003 de 22 de Agosto.
Artigo 4.º (Autorização médica) 1 Todos os pacientes que pretendam usar terapeuticamente a cannabis deverão solicitar a autorização médica correspondente ao Ministério da Saúde. 2 Deverá constar da declaração entregue pelo paciente: a) a receita médica do seu médico de família, e respectiva fundamentação, de acordo com o disposto no artigo anterior; b) documento comprovando que o paciente discutiu com o seu médico de família os possíveis riscos associados ao uso terapêutico da cannabis, e o seu assentimento no tratamento prescrito; 3 No caso do paciente se encontrar em situação de dependência física de terceiro, deverá no pedido de autorização médica, identificar a pessoa que ficará autorizada a praticar todos os actos inerentes à obtenção da cannabis nas farmácias hospitalares e a administrá-la ao paciente. 4 Se todos os requisitos forem cumpridos, o Ministério da Saúde, no prazo de 10 dias, deverá emitir ao paciente uma autorização de posse para os propósitos terapêuticos mencionados, notificando o médico que assinou a prescrição médica entregue com a declaração que o tratamento prescrito está autorizado.
Artigo 5.º (Limites da utilização terapêutica da cannabis) 1 - A utilização terapêutica da cannabis encontra-se limitada às seguintes patologias e sintomas: a) doença terminal; b) dores crónicas e graves, náuseas graves, caquexia, anorexia, sub-nutrição e perda de peso, em caso de Cancro, Sida ou infecção com HIV; c) dores musculares crónicas e espasmos, dores crónicas e graves em caso de Esclerose múltipla, lesões ou doença da medula espinal; e) acessos de Epilepsia; f) dores crónicas e graves em caso de formas extremas de artrite. 2 É da competência do Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento, em conformidade com os avanços na pesquisa científica realizada sobre as capacidades terapêuticas da cannabis, actualizar o leque de possibilidades de utilização previsto no ponto anterior.
Artigo 6.º (Autorização de posse) 1 O detentor de uma autorização médica para recorrer à utilização medicinal de cannabis, ou seus princípios activos, para fins terapêuticos está autorizado a possuir, de acordo com os propósitos terapêuticos invocados, cannabis ou os seus princípios activos. 2 A quantidade máxima de cannabis detida pelo paciente, ou alguém que tenha o paciente a seu cargo, não poderá exceder em mais de 30 vezes a dosagem diária prescrita pelo médico. 3 O Ministério da Saúde fornece a todos os pacientes detentores de uma autorização médica, um cartão próprio indicando a autorização de posse, o qual deverá ser renovado anualmente.
Artigo 7.º (Doença Terminal) Para efeitos da aplicação da presente lei, adopta-se a definição de doente terminal da OMS, que classifica como tal todo o paciente cujo prognóstico de vida não exceda os doze meses.
Artigo 8.º (Acesso) 1 - Compete ao Ministério da Saúde garantir que todas as farmácias hospitalares têm disponível cannabis e os seus princípios activos para os doentes que, possuidores de uma autorização, o solicitem. 2 O Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento e o Ministério da Saúde deverão criar um sistema de cruzamento de informações, por forma a controlar a existência e circulação dos stocks.
Artigo 9.º (Investigação Científica) 1 - O Ministério da Saúde deverá estimular, apoiar e suportar financeiramente a realização de estudos científicos sobre as potencialidades terapêuticas da cannabis, e seus princípios activos, realizados por Laboratórios Clínicos, Laboratórios Associados ou Unidades de Investigação Científica do Ensino Superior nacionais que o solicitem. 2 O Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento deverá, de uma forma seleccionada e sob a sua supervisão, emitir licenças limitadas de produção às entidades referidas no ponto anterior que assim o solicitem.
Artigo 10.º (Avaliação) Três anos após a entrada em vigor da presente lei, deverá a sua tutela apresentar à Assembleia da República um relatório da sua avaliação, sendo nessa altura reavaliada a sua aplicação.
Artigo 11.º (Regulamentação) O presente diploma será regulamentado pelo governo no prazo de 120 dias.
Artigo 12.º (Entrada em vigor) O pressente diploma entra em vigor após a aprovação do Orçamento de Estado subsequente à sua publicação em Diário da República.
Assembleia da República, 16 de Outubro de 2003 Os deputados do Bloco de Esquerda
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