Moscovo considerava Chissano mais realista que Machel

Moscovo considerava Chissano mais realista que Machel

As relações entre Moçambique e a União Soviética, em particular a opção socialista do governo da Frelimo, a não admissão de Moçambique como país membro do Comecon, e a afirmação do Major General Jacinto de Veloso de que o Presidente Samora Machel era um “homem a abater porque tinha traído o campo soviético” foram alguns dos temas de uma entrevista que o Professor Dr. Vladimir Shubin do Instituto para os Estudos Africanos de Moscovo, concedeu a João Cabrita em exclusivo para o ZAMBEZE, durante a sua estada na África do Sul.

Entrevista com Prof. Dr. Vladimir Shubin, do Instituto para os Estudos Africanos de Moscovo, em entrevista a João Cabrita.

As relações entre Moçambique e a União Soviética, em particular a opção socialista do governo da Frelimo, a não admissão de Moçambique como país membro do Comecon, e a afirmação do Major General Jacinto de Veloso de que o Presidente Samora Machel era um “homem a abater porque tinha traído o campo soviético” foram alguns dos temas de uma entrevista que o Professor Dr. Vladimir Shubin do Instituto para os Estudos Africanos de Moscovo, concedeu a João Cabrita em exclusivo para o ZAMBEZE, durante a sua estada na África do Sul. O Professor Shubin foi recentemente galardoado com o título honoris causa pela Universidade do Cabo Ocidental em reconhecimento pelo seu contributo à luta do povo sul-africano contra o sistema do apartheid .

ZAMBEZE – As relações entre Moçambique e a antiga URSS eram vistas no contexto da Guerra Fria. Para os que viviam no Ocidente, havia a percepção de que Moçambique, sob a liderança de Samora Machel, era um “Estado fantoche” da União Soviética. Não obstante o empenho e a dedicação manifestados por determinados elementos dentro do Partido Frelimo em relação à URSS em particular e ao bloco socialista em geral, em que o conceito de “aliado natural” ganhava preponderância no seu discurso, há círculos que ainda hoje consideram que Samora Machel se situava acima dessa retórica e que, primeiro que tudo, ele era um nacionalista. Como é que caracterizaria as relações entre os dois países desde a independência de Moçambique em 1975?

SHUBIN – Para se caracterizarem essas relações, temos de recuar até ao período da luta anticolonial. Moscovo concedeu um apoio versátil a essa luta, abrangendo os sectores financeiro e militar. Mas o volume dessa ajuda nem sempre satisfez a liderança da Frelimo. Também houve ocasiões em que ambos discordaram. Por exemplo, após a revolução portuguesa [de Abril de 1974], Machel insistia na continuação da luta armada, ao passo que Moscovo favorecia um cessar-fogo.

O que eu queria enfatizar é que a escolha em prol do socialismo foi feita pelos próprios moçambicanos – não foi imposta a partir de Moscovo. As célebres palavras de Machel a respeito dos “aliados naturais” foram bem-acolhidas em Moscovo, mas não foi aí que elas tiveram origem.

ZAMBEZE – Portanto, em sua opinião, a ideia de que os laços entre os dois países se resumiam a uma relação do tipo cliente-patrão não tem qualquer fundamento?

SHUBIN –Creio que essa ideia foi promovida por aqueles que se consideram a eles próprios ou como clientes ou como patrões, e que não conseguem crer na igualdade.

ZAMBEZE – No entanto, num livro de memórias recentemente publicado, o antigo ministro moçambicano da segurança, Jacinto Veloso, afirmou que os serviços secretos da URSS e de outros países socialistas lhe haviam dificultado a vida devido à sua recusa em seguir a linha de orientação de Moscovo no que se refere a questões de segurança. Segundo Veloso, a partir de 1982/83 a União Soviética fez tudo para neutralizar as actividades da Socimo, uma empresa controlada pelo Snasp, o que acabou por melindrar as operações secretas de Moçambique.

SHUBIN – Ao invés do Senhor Veloso, não sou especialista em questões de espionagem, mas não creio que fosse desejo da URSS que se deveria seguir a sua linha de orientação para este ou aquele sector. Parece que as pessoas estão agora a tentar atirar as culpas sobre Moscovo pelos seus próprios erros e fracassos.

ZAMBEZE – E quanto à questão de Moçambique nunca ter sido admitido como membro pleno do Conselho de Ajuda Mútua Económica (Comecon), qual terá sido a razão?

SHUBIN – As expectativas da direcção da Frelimo eram demasiadamente grandes, especialmente após a assinatura do Tratado de Amizade e Cooperação em 1977. Infelizmente, certas pessoas em África e em outras partes do Terceiro Mundo acreditavam que uma vez proclamado o socialismo, Moscovo e os seus aliados seriam obrigados a ajudá-los sob todas as formas.

Em 1983, Yury Andropov fez uma avaliação sóbria da situação no Terceiro Mundo e que é relevante para Moçambique. Na altura ele afirmou que “uma coisa é proclamar o socialismo como um objectivo a alcançar, e uma outra bem diferente é edificar-se esse sistema. Por isso, é necessário que haja um certo nível de forças produtivas, de cultura e de consciencialização social. Os países socialistas expressam a sua solidariedade para com esses Estados progressistas, prestam-lhes assistência nas esferas política e cultural, e promovem o reforço da sua defesa. Contribuímos igualmente, de acordo com as nossas capacidades, para o seu desenvolvimento económico. Todavia, o desenvolvimento económico desses países, tal como o seu progresso social, só pode, obviamente, ser resultado do trabalho desenvolvido pelos respectivos povos e de políticas correctas dos seus dirigentes.”

Relativamente à aceitação de Moçambique como membro do Comecon, não Se tratava de um simples questão técnica. Veja o caso da própria União Europeia em que os candidatos a membros dessa instituição têm de cumprir com inúmeras condições, e esse é um processo que por vezes demora décadas a concluir. É verdade que Moscovo não tinha pressa em apoiar o pedido de admissão de Moçambique, mas daquilo que eu tenho conhecimento, os outros Estados membros do Comecon estavam até menos entusiasmados.

ZAMBEZE – Durante a era Reagan, o então secretário de Estado norte- americano, George Shultz, referia-se a Samora Machel como alguém que se sentia desejoso por abandonar o campo soviético e por trocar de alianças, passando-se para o lado do Ocidente. A visita de Machel aos Estados Unidos em 1983 é tida, por assim dizer, como o ponto de rotura com o campo soviético.

Independentemente da retórica, o facto é que até então Samora Machel afirmava pessoalmente que o campo socialista, do qual ele se sentia uma parte integrante, constituía a “zona libertada da humanidade”; que o Ocidente era uma sociedade em decadência, irremediavelmente condenado à autodestruição; que os Estados Unidos eram o principal Estado imperialista; e coisas do género. O que terá motivado essa troca de alianças? Será que Samora Machel havia procedido a uma reavaliação da situação?

SHUBIN – Nunca considerámos Moçambique como membro do “campo soviético”. De facto, essa terminologia militarista deixou de estar em uso em Moscovo a partir dos anos 60. E nem Machel “trocou” de alianças, passando a ser fiel ao Ocidente. Ele era um patriota moçambicano e a sua “aliança” era para com a própria Pátria moçambicana. Quanto à mudança de tom das suas afirmações, creio que era fundamentalmente táctica. De qualquer forma, essa troca – para recorrer à expressão por si utilizada – não ajudou a estabilizar a situação. Na realidade, foram alguns países africanos que prestaram uma assistência mais valiosa ao governo da Frelimo.

Mais tarde, após a visita de Chissano a Moscovo em 1987, Mikhail Gorbachev teve as seguintes palavras a respeito do novo presidente moçambicano, ao dirigir-se a uma reunião do Politburo: “Vamos apoiá-lo. É um homem dotado de grande erudição, e ao contrário de Machel, é mais realista. Chissano pediu que compreendêssemos a posição deles, caso chegassem a um compromisso com os imperialistas em questões económicas. Chissano afirmou que não iriam alterar a sua posição de princípios.”

ZAMBEZE – Dado que essa troca de alianças não ajudou a estabilizar a situação, qual acha que deveria ter sido o rumo a seguir por Samora Machel? E quando o senhor diz que o governo da Frelimo na realidade recebeu uma assistência mais valiosa por parte de alguns países africanos depois de Machel ter feito essa troca, está a querer dizer assistência económica e militar? Como deverá estar recordado, nessa fase os Estados Unidos repetiam amiúde que Moçambique era o maior recipiente de ajuda norte-americana em toda a África a sul da Sara. E a Inglaterra, para além de ajuda económica, prestava apoio militar ao governo da Frelimo.

SHUBIN – Tal como referi anteriormente, “troca” é uma expressão muito forte. Não estou a dizer que o rumo seguido por Machel estava errado, mas aparentemente as expectativas que ele nutria em relação ao Ocidente também eram demasiadamente grandes.

Qualquer que fosse a “ajuda” proveniente dos Estados Unidos e do Reino Unido, ela era contrabalançada pela cooperação que esses países desenvolviam com Pretória. Será que se pode dizer que essa “ajuda” na realidade melhorou a situação? A assistência militar proveniente de alguns países africanos, em particular do Zimbabué, foi muito mais eficaz.

TRATAMENTO DADO AO ANC NÃO PRESTIGIOU MOÇAMBIQUE

ZAMBEZE – Jacinto Veloso defende o ponto de vista de que Samora Machel havia traído o bloco soviético no contexto do conflito Este-Oeste por ter optado pela liberalização da economia moçambicana, e aderido ao sistema capitalista internacional, mormente ao Banco Mundial e ao FMI. Veloso afirma que foi Machel quem de facto se recusou a aderir ao Comecon. Segundo as suas próprias palavras, extraídas do livro de memórias, “ Machel estava condenado. Era um homem a abater porque tinha traído o campo soviético na confrontação bipolar...”. Veloso foi ao extremo de afirmar que foi um agente do bloco socialista, agindo em conivência com o regime do apartheid, quem planeou o desastre de Mbuzini.

SHUBIN – O livro de Veloso surpreendeu-me sobremaneira. Como é que um antigo dirigente da Frelimo e ex-ministro da Segurança poderia ter feito afirmações tão divertidas como essas? É verdade que por vezes Moscovo tinha uma atitude crítica em relação às medidas tomadas por Machel (embora essas críticas nunca tivessem sido tornado públicas), principalmente em relação à sua politica interna, que era bastante radical. Efectivamente, mais tarde Chissano admitiu a Gorbachev que a abordagem que a Frelimo fizera da experiência soviética havia sido “muito mecanicista”. Portanto, Moscovo não se importaria com a “liberalização da economia e da sociedade”, se bem que o mais provável é que preferisse um outro termo, como por exemplo, “democratização”.

Quanto à política externa seguida por Machel, Moscovo de certa forma sentia algum cepticismo em relação ao Acordo de Nkomati, e ficou provado que nós é que estávamos certos. Todavia, quaisquer que fossem as diferenças, essas eram entre amigos e camaradas. Ninguém considerava Machel como “traidor” e a direcção da União Soviética ficou chocada ao tomar conhecimento da sua trágica morte. E a propósito, refira-se que a primeira notícia que a direcção soviética recebeu de Maputo era errónea, pois dizia que o avião de Machel havia sido abatido. Isso está reflectido nas palavras de Gorbachev proferidas durante uma reunião do Politburo em que ele diz que “a última comunicação do nosso piloto foi de que haviam sido abatidos.” As palavras de Gorbachev constam da acta da reunião do Politburo, a qual se encontra disponível nos arquivos do partido.

ZAMBEZE – Porque é que Moscovo sentia um certo cepticismo em relação ao Acordo de Nkomati? Quer com isso dizer que Moscovo era a favor de uma solução interna entre o governo da Frelimo e a Renamo, em vez de um acordo entre o regime do apartheid e Moçambique? Ou será que Moscovo preocupava-se mais com o que poderia vir a acontecer ao ANC como consequência do Acordo de Nkomati?

SHUBIN - Não, estávamos cépticos pois não acreditávamos que esse acordo fosse melhorar a situação. Não acreditávamos que Pretória iria deixar de apoiar a Renamo, e de facto não parou com esse apoio. Além do mais, creio, a forma como se tratou o ANC após o Acordo de Nkomati foi em detrimento do prestígio de Moçambique.

Fonte: Zambeze

Nossos agradecimentos a João Cabrita

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey