O Legado de Blair e a Mão da História

Uma figura gigante no palco mundial vai deixar o lugar depois de uma década no seu posto. Enquanto o Labour pergunta “E agora?” fazemos um balanço dos dez anos de Blair como Primeiro Ministro do Reino Unido, postulando qual será o legado provável deste líder histórico. O que significa uma década de Blairismo para o seu país e para a comunidade internacional?

Há precisamente dez anos hoje, Tony Blair foi eleito pelo povo do Reino Unido para liderá-los como seu Primeiro Ministro na primeira de três eleições sucessivas (1997, 2001 e 2005), um feito histórico para o Partido Trabalhista, colocando-o na história do seu partido e da política britânica como o Primeiro Ministro trabalhista que mais tempo serviu. Por alguma razão terá sido.

Tony Blair não foi, contudo, eleito para policiar o palco mundial, para interferir no tecido complexo da política inter-étnica nos Balcãs ou para colocar seu país no lado de um dos erros mais crassos na história das relações internacionais, o ataque ilegal contra o Iraque. Até que ponto sua política externa assombra seu legado como líder e quão confortante será a mão da história no seu ombro?

Política doméstica

Para julgar o Tony Blair de forma justa, seria lógico fazer uma comparação entre o Reino Unido em 2007 e o de 1997, depois de 18 anos de monetarismo fanático e fundamentalista, seguido por Margaret Thatcher e seus seguidores, terem rasgado o tecido social do país. Os hospitais enfrentavam uma crise financeira depois de décadas de falta de investimento, o sistema de educação estava a cair aos bocados, as ruas eram violentas, os caminhos-de-ferro, outrora o orgulho do país, eram perigosos de utilizar.

Que os três governos de Tony Blair conseguiram reverter a tendência sem aumentar significantemente a carga fiscal (embora alguns apontariam para impostos indirectos – os preços de gasolina e gasóleo são os mais altos na U.E. por exemplo) constituiria já um sucesso, enquanto injectar biliões de libras esterlinas nos serviços públicos, modernizando o SNS e reabilitanto a acomodação escolar só pode ser um importante passo em frente.

Contudo, apesar de uma década de um incremento em financiamento público, permanece muito a fazer em termos de providenciar um serviço através das neblinas de burocracia incorridas na manipulação da imagem política, ferramenta muito utilizada pelo New Labour. O comportamento anti-social parece ter substituído o hooliganismo thatcherista como a Grande Sindroma Britânica, uma visita à estação dos caminhos-de-ferroo de qualquer aldeia pacata mais parece uma ida à pocilga local e muitos cidadãos de terceira idade temem sair de casa porque podem ser espancados, insultados, ou pior. O tratamento nos hospitais é frequentemente mais perigoso do que ficar em casa devido à proliferação de infecções multi-resistentes, o SNS continua a estar bem por trás de muitos sistemas na U.E. e o sistema de educação teima em produzir resultados muito aquém de aqueles no outro lado do Canal da Mancha.

Em termos políticos, o círculo próximo a Tony Blair continuou o trabalho de Neil Kinnock e John Smith, derrotando a Militant Tendency que negou aos Trabalhistas qualquer hipótese de serem eleitos e refrescou a imagem do partido, rotulando-o New Labour. As suas qualidades como orador brilhante colocaram Tony Blair a frente de todos os seus pares políticos durante sua década no posto e terá sido ele, sem sobra de dúvida, o responsável pelo retorno dos Trabalhistas ao Governo depois de duas décadas na sombra, puxando o seu partido para o centro político onde residem as corações e mentes da maior parte do povo britânico, formando definitivamente um eixo para o debate de ideias com os outros partidos e desta forma reforçando a democracia no Reino Unido, que tanto sofreu sob a intolerável arrogância de Margaret Thatcher. Foi inquestionavelmente um feito notável que ninguém lhe poderá retirar e servirá para coroar o seu legado.

Outro feito de relevo colocará Tony Blair no livro de história como o Primeiro Ministro britânico que finalmente conseguiu resolver a questão irlandesa, escolhendo o caminho de um atitude inteligente e construtivo, e não uma posição antagonista e com pouca visão que viu prolongar a crise. O Acordo de Sexta-feira Santa de 1998 virou uma página tortuosa nas relações anglo-irlandesas e terminou décadas de violência.

Em termos económicos e sob a liderança de Tony Blair, pela primeira vez, o Labour ficou identificado como o partido de sucesso económico, embora fica para ver o peso que a política de contrair empréstimos coloca sobre os governos no futuro. No entanto, o facto de poder identificar o Labour com crescimento económico e não estagnação é já uma contribuição importante para a sua credibilidade.

Política externa

A História dirá se Kosovo e Iraque serão duas nuvens que assombrarão Tony Blair até ao fim dos seus dias, dois pesos que seu legado terá eternamente à volta do pescoço e uma mancha indelével no seu lugar nos anais da história, por bem intencionadas que as suas decisões possam ter sido.

A nostalgia pela Guerra Fria entre o lobby dos armamentos (OTAN) pintou um quadro unilateral contra Slobodan Milosevic como o Assassino das Balcãs, ignorando o facto que muitos albaneses no Kosovo fugiam para o leste, às linhas sérvias e a fugir dos terroristas albaneses UÇK, que Blair e Clinton decidiram apoiar. O facto que o Reino Unido se juntou aos EUA nesse acto foi talvez devido ao medo que poderia acontecer outro massacre (depois de Ruanda e Bósnia) sem que a comunidade internacional levantasse um dedo. Contudo, ter apoiado os terroristas UÇK não é coerente com uma posição contra o terrorismo internacional e a decisão de criar uma Grande Albânia contra uma Sérvia Integrada foi uma que terá sequelas nos próximos anos, sendo algo que quinhentos anos de história tentou impedir.

Relativamente ao Iraque, Tony Blair entendeu que uma Europa divorciada dos EUA seria um passo perigoso em águas desconhecidas e preferiu juntar-se a Washington no período mais escuro das relações internacionais. As mentiras, os documentos forjados, o engano e manipulação da opinião pública antes deste acto de chacina – sem qualquer casus belli – nunca poderá ser justificado. Apesar dos soldados britânicos não serem associados com os actos depravados das forças armadas dos EUA, pouco faz para atenuar esse massivo erro em política externa, sendo o resultado daquilo que acontece quando os europeus esquecem a sua identidade colectiva e vão na busca de ideais quixotescas no outro lado do Atlântico, como descobriram os Reis Jorge II e III da Grã-Bretanha há dois séculos atrás.

Porém, o livro da política externa de Blair não se limita a dois capítulos. A invasão de Afeganistão foi, embora tecnicamente ilegal, justificada na opinião pública devido ao facto que o governo Taleban estava a dar abrigo a campos de treino para terroristas de Al Qaeda e o ataque de 9/11 deu carta branca para a campanha de retirar do poder Mohammed Omar e seu regime, uma mescla de costumes pashtune e secções seleccionadas dos ensinamentos mais radicais da lei islâmica.

Como foi o caso com outras invasões estrangeiras no Afeganistão, os Taleban reagruparam, a produção de heroína voltou a níveis recordes e não parece haver uma solução à vista para o governo afegão, restrito às grandes cidades enquanto o resto do país fica nas mãos de senhores de guerra (deixemos de lado o facto dos Taleban terem seu Génese nos Mujaheddin, criação da CIA). Por isso esta política está longe de ser um sucesso, porém foi entendido como justificado e necessário nas circunstâncias.

Além disso, há outro capítulo, raramente citado, na história da política externa de Tony Blair, e um continente inteiro irá lembrar o seu nome durante muitos anos - o continente africano. Foi Tony Blair o líder mundial que levantou a questão do cumprimento dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio e que lançou o debate sobre como os países mais desenvolvidos podem ajudar a África através de colaboração com a NEPAD e as instituições da União Africana. Embora fique claro que vai ser um processo longo, depois de séculos de colonialismo e o cultivo de corrupção para cimentar o caminho de sentido único para os recursos africanos (para fora), a pedra de toque foi colocada e seria grosseiramente injusto não ligar o nome de Tony Blair com esse processo.

A Mão da História

Tony Blair foi eleito em 1997 porque prometeu implementar uma mudança fundamental na maneira em que o país era governado, providenciando linhas-guia para a governação e uma direcção que iria levar o Reino Unido firmemente na senda de democracia social, com um empenho duradouro a serviços públicos revitalizados, colocando ao mesmo tempo um freio sobre a governação monetarista fundamentalista. Uma década é pouco tempo para poder medir o grau de implementação dos seus programas, mas o facto do empenho nesta direcção não ser contestado mesmo pelos partidos da oposição, fornece um sinal muito claro que o seu legado está para ficar durante muitos anos, o que só poderá ser encarado como um sucesso.

A História, contudo, tem duas mãos e enquanto uma ficará reconfortantemente no seu ombro, o outro apontará dois dedos aos seus erros de política em Kosovo e Iraque.

Fazer um balanço na véspera de ele entregar o seu lugar a Gordon Brown não é tarefa fácil, dado o miríade de factores envolvidos e a diversidade dos vectores que conduziram essa figura carismática ao longo destes dez anos. No entanto, globalmente, dado que existem mais sucessos do que falhanços, mesmo na política externa, a década Blairista deveria constituir um capítulo importante na história britânica e mundial. Consignar este legado ao caixote de lixo de Kosovo e Iraque será uma abordagem com pouca visão que não consegue avaliar de forma objectiva a globalidade do impacto das suas políticas.

Ter trazido o Partido Trabalhista para uma área onde poderia debater assuntos fundamentais e eternamente relevantes foi uma contribuição massiva à política nacional, resolver a questão irlandesa foi uma conquista importantíssima para a história britânica e seu prosseguimento de uma política externa ética, e ser campeão da causa do continente africano, estabeleceu os alicerces para uma comunidade internacional, livre das algemas do terrorismo neo-conservador de Washington, poder caminhar para uma nova era. Isso já não é pouco.

Timothy BANCROFT-HINCHEY

PRAVDA.Ru

Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter

Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey