Palavrão, o grande excluído

Palavrão, o grande excluído

Nada exprime melhor um sentimento de indignação em relação a determinadas coisas, nem identifica com mais precisão certas pessoas do que um grande e sonoro palavrão.

Apesar disso, aprendemos cedo na vida familiar e principalmente na escola, que as boas normas do comportamento o excluem do nosso dia a dia, deixando-o para ele apenas um pequeno espaço naquela área escura e incontrolável que existe dentro de todos nós.

Mesmo assim, quando por um descuido nosso, ele explode com toda a sua força, mandam os bons hábitos de civilidade, que logo peçamos desculpas por deixá-lo vir à luz. 

Enquanto na literatura brasileira, uso do palavrão sempre foi corrente e as ligas da moral e dos bons costumes pouco se preocuparam com isso, talvez porque o hábito da leitura da população sempre foi pequeno ou porque nos livros ele está inserido num diálogo pessoal (o autor e o leitor), nos demais meios de comunicação, a censura nunca baixou sua guarda.

Mesmo hoje, em tempos de grande liberalidade, onde até o chamado beijo gay chegou a televisão, um simples "vai à merda" continua interditado. No rádio, a mesma coisa. Em jornais e revistas, a rica e a quase sempre bem-humorada linguagem popular, cheia de adjetivos para ilustrar o comportamento das pessoas, é substituída pela língua culta, pernóstica, excludente e adjetivada.

A publicidade, a mais vigiada das atividades de comunicação, sempre foi ousada e criativa no Brasil, mas raramente ultrapassou os normas da boa educação na sua linguagem oral. Outro dia, parodiando estes limites, os canais de televisão exibiram uma campanha muito inteligente da Tigre, usando frases sem sentido para substituir os palavrões que a situação mostrada exigiria.

Com a ajuda do Luiz Octavio Vieira, lembrei que toda árvore é frondosa, toda a chuva copiosa, as paixões são doentias e o mocotó suculento, sempre substantivos e adjetivos que podem ser anunciados em voz alta sem ferir nossos padrões comportamentais.

É claro que essa discriminação contra o falar popular é também uma questão de classe, uma forma de ajudar na diferenciação de ricos e pobres. Os jornais e revistas são feitos para os bens nascidos, que no passado tinham dicionários em casa (hoje tem o Google) e que sabem o significado das palavras.

Procela, por exemplo, você não ouve ninguém falando na rua, mas pode encontrar em algum texto pretencioso (a plebe diria, com mais propriedade, metido a sebo), inclusive na minha página no facebook.

O cinema americano só foi se liberar da rígida censura moral imposta pelo chamado Código Hays (referência ao seu criador, Will Hays, um pastor presbiteriano) na década de 60, depois de durante 30 anos, interferindo na criação cinematográfica.

Segundo esse código, certos assuntos eram classificados como Dont´s ((proibidos) e outros como Be Carefuls (exigiam muitos cuidados para serem exibidos). Exemplo de assunto Dont´s: não casados dormirem juntos.

Quando assustado com algo insólito, um ator de um filme normalmente diria  "que merda está acontecendo", o código mandava ele dizer: "macacos me mordam se isso é verdade".

O código, naquilo que em que ele era mais rígido - a alusão ao sexo entre não casados - começou a ruir com a famosa cena do beijo nas areias da praia, entre Burt Lancaster e Debora Kerr (ela, casada com o comandante da base militar onde Burt era um simples sargento) no filme A Um Passo da Eternidade (1953), de Fred Zinnnemann.

Outro tabu, as relações inter-raciais, foi quebrado no filme de 1957, Ilha dos Trópico, quando a branca Joan Fontaine beijou o negro, Harry Belafonte. Até então, mesmo nos filmes mais progressistas de Hollywood, brancos namoravam brancas e negros namoravam negras.

Hoje, liberado totalmente para fazer o que bem entende (obviamente um recurso mercadológico para enfrentar a televisão) o cinema americano está cheio de fucks you (ou fock you), ainda que você não consiga ler a sua tradução verdadeira nas legendas no Brasil.

Nos Estados Unidos, pode tudo, mas na Rússia, não pode mais nada. O Presidente Putin sancionou lei do Parlamento, proibindo o uso de palavrões em todos os meios de comunicação, da literatura ao cinema. Multa para quem transgredir a nova lei: 50 mil rublos, cerca de mil euros, ou 4 mil reais.

Enquanto a linguagem popular permanece banida dos principais meios de comunicação no Brasil, na literatura, ela não sofre restrições.

O professor Mário Souto Maior se deu ao trabalho de pesquisar o uso de palavrões pelo povo brasileiro e sua presença na nossa literatura.

Seu livro, O Dicionário de Palavrões e Termos Afins, colecionou 3 mil verbetes considerados chulos, mas sua edição em 1974 foi proibida pela censura militar e só chegou ao público em 1980.

Uma curiosidade revelada pelo livro é de que Jorge Amado é o escritor brasileiro que mais se socorre das palavras ditas obscenas em seus textos.

Para quem não leu o livro, vamos citar cinco delas, quase todas de uso corrente na terra de Amado, a Bahia, tentando traduzi-las com algum cuidado, para não ferir também aqui suscetibilidades.

Dar a Maricotinha - o doador de sexo anal

Fechar a cancela -  aposentar-se das práticas sexuais

Levanta cacete - mulher jovem e sensual

Papar - ter relações sexuais

Zebedeu -  o pênis.

Fica faltando um glossário rio-grandense para concorrer com o baiano, tarefa da qual o publicitário Roberto Pintaúde poderia se ocupar, já que há muito tempo vem divertindo seus admiradores com o uso sistemático da rica linguagem, dita chula, que nós gaúchos costumamos usar.

Para fechar de uma maneira elegante, mas não culta, esta página, vamos citar Antônio Carlos Jobim comentando sua experiência de viver no exterior, de uma forma pouco acadêmica.

"Viver no exterior é bom, mas é uma merda. Viver no Brasil é uma merda, mas é bom".

 Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS

 

Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter

Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey