O "jeitinho" das elites hediondas do Brasil

Editorial ed. 302

Cena 1: o carcereiro joga o garoto, um pré-adolescente, na solitária. Algum tempo depois, "alguém" ateará fogo ao seu corpo. Os outros garotos internados, ao verem a fumaça saindo pela janelinha da sela, começam a gritar, em desespero. O carcereiro atende, mas, por alguma razão misteriosa, "não consegue" achar a chave. O garoto morre torrado. Isso não aconteceu em alguma prisão da Alemanha nazista, nem em Israel, Iraque ou Guantánamo. Aconteceu em São Paulo, na antiga Febem, em 2003. Ninguém jamais foi punido.

Cena 2: a polícia militar invade um morro do Rio de Janeiro, com o suposto objetivo de caçar narcotraficantes. Porta um mandado de busca coletivo, que lhe autoriza a entrar em qualquer barraco situado naquela área. Independente das habituais atrocidades cometidas pela polícia em "missões" desse tipo – que incluem o assassinato de perigosos bandidos de oito anos de idade e o uso do sinistro "caveirão", um tanque blindado inspirado nos veículos utilizados pelo exército israelense para reprimir a população palestina -, o próprio mandado coletivo é uma aberração jurídica.

Ele elimina o direito constitucional à inviolabilidade do lar e coloca todos sob suspeita, simplesmente por residir em determinada região. Os favelados são coletivamente punidos, apenas por serem favelados. Caso residissem nos Jardins de São Paulo ou na Zona Sul do Rio de Janeiro, suas chances seriam infinitamente maiores de verem os seus direitos minimamente respeitados.

Histórias assim poderiam ser reproduzidas numa lista quase infinita de ignomínias e tragédias, como se comprovou ao longo de três longos, infinitos dias, entre 4 e 5 de dezembro, nas sessões do Tribunal Popular que julgou os crimes praticados pelo Estado brasileiro. Mães de vítimas inocentes colocaram para fora o seu grito de revolta, jovens relataram os crimes praticados pelos homens de farda, trabalhadores mostraram em seus próprios corpos os sinais da violência autorizada por governadores e coronéis.

Ao final dos trabalhos, impôs-se uma constatação terrível, da qual devem ser extraídas todas as conseqüências, por mais que a consciência resista a admitir o horror: está em curso no Brasil uma política deliberada de extermínio da população pobre, de trabalhadores jovens e honestos cujo imperdoável crime é portar a "cor errada" de pele, viver no "lado errado" das grandes cidades e ter uma baixa ou quase inexistente capacidade de consumo. Trata-se de uma população que, aos olhos das elites, é excessiva (existem milhões e milhões de desempregados), onerosa (pois consomem e demandam serviços públicos, se é que realmente exista algo que realmente mereça esse nome no Brasil), ameaçadora (que outro sentimento a Casa Grande poderia nutrir em relação à Senzala?).

A política de extermínio é calculada. Trata-se de uma guerra implacável, diária, permanente, sem tréguas. Os números não enganam: são 50 mil mortes por ano, mais de 100 por dia, segundos dados oficiais, como resultado de tiroteios e confrontos violentos com a polícia. A ONU considera que um país está em guerra civil quando o número de mortos por violência atinge a cifra anual de 15 mil.

Quando se considera que há uma política deliberada de extermínio, a extrema violência policial ganha novo significado. Ela não é gratuita, nem é provocada por meros impulsos de sadismo (embora, obviamente, não falte esse componente). Trata-se, muito mais, de uma prática voltada para a desmoralização do "inimigo" (no caso, os milhões de jovens e trabalhadores pobres), para o alastramento do clima do terror, para gerar a sensação de impotência diante da força bruta. "Para que, afinal, servem as leis?", pergunta, perplexa, uma jovem quilombola de Ubatuba (SP). Sua angustiada pergunta resume, dramaticamente, o quadro criado pela tática terrorista das elites: as vítimas não têm a quem recorrer. A lei, as instituições não servem como proteção do arbítrio, da punição coletiva, do assassinato em massa. Sobram o terror e o desamparo.

Mas nem nisso as elites brasileiras são originais ou criativas. Os sucessivos governos da Colômbia, em particular o atual, encabeçado por Álvaro Uribe, há décadas pratica política semelhante, sob o pretexto de combater o narcotráfico. Na Colômbia foram criadas empresas de saneamento público (sic), destinadas a tirar os "desechables" (o lixo humano, os pobres, os pedintes, os camponeses e indígenas expulsos do campo pelo latifúndio e pela guerra civil) das ruas das grandes cidades.

A política de extermínio tornou-se, no Brasil, uma política de Estado – esta foi, provavelmente, a principal conclusão do tribunal. Não há como separar a administração pública da violência policial generalizada. A maneira encontrada pelas elites para lidar com o desemprego, a pobreza, a demanda de serviços públicos foi criminalizar os desempregados, a juventude e os trabalhadores pobre e os movimentos sociais que os representam. Exatamente por isso, a única maneira efetiva de acabar com a violência é destruir esse Estado repressor as elites que a criaram.

A guerra não cessará, até que caiam todos os generais do inimigo.


Fernando Soares Campos
Dados biográficos
http://www.paralerepensar.com.br/fernandosc.htm

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey