"Dado que os reacionários europeus querem castigar o povo grego, ele tem todo o direito de buscar apoios externos, para diminuir ou impedir os efeitos daquele castigo. A Grécia pode e deve voltar-se na direção da Rússia, dos países dos Bálcãs, da China, do Brasil.
É urgente internacionalizar a causa do povo grego. Só a anulação total da dívida aplicará um "golpe ideológico" no sistema europeu atual.
Transformar a causa grega em causa internacional tem valor simbólico muito potente. É necessário e, portanto, é um dever."
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1. O "não" massivo do povo grego não significa recusar a Europa. Significa recusar a Europa dos banqueiros, da dívida infinita e do capitalismo globalizado.
2. Uma parte da opinião nacionalista, a saber, da extrema direita, votou "não" às exigências das instituições financeiras? Ao diktat dos governos reacionários europeus? Ora, todos sabemos que qualquer voto exclusivamente negativo é em parte confuso. A extrema direita, e desde sempre, é capaz de recusar coisas que a extrema esquerda também recusa. Só a afirmação do que se deseja é afirmação clara. E todo o mundo sabe que o que Syriza quer é oposto ao que querem os nacionalistas e os fascistas. O voto não é voto obscuro contra exigências antipopulares do capitalismo globalizado e de seus serviçais europeus. É um voto que, por hora, é voto de confiança no governo Tsipras.
3. O que se passa na Grécia e não se passa, como seria normal, em todos os pontos da Europa, indica que a "esquerda" europeia está em estado de coma profundo. François Hollande? A social-democracia alemã? O PSOE espanhol? O Pasok grego? Os trabalhistas ingleses? Todos esses partidos são hoje, descaradamente, gerentes do capitalismo globalizado. Não há, não há mais "esquerda" europeia. Há uma pequena esperança, ainda pouco clara, do lado de formações políticas de fato novas, ligadas ao movimento de massa contra a dívida e a austeridade, a saber "Podemos" na Espanha e "Syriza" na Grécia. Os primeiros, até aqui, recusam a distinção entre "esquerda" e "direita". Também a recuso. É divisão que pertence ao velho mundo da política parlamentar, que tem de ser destruído.
4. A vitória tática do governo Tsipras é um encorajamento para todas as propostas novas no campo político. O sistema parlamentar e seus partidos de governo estão em crise endêmica há décadas, desde os anos 80s. Que o Syriza seja bem-sucedido na Grécia, mesmo que sejam sucessos provisórios, faz parte na Europa do que chamei de "o despertar da História". É coisa que só pode ajudar o Podemos e tudo que virá, na sequência e adiante, sobre as ruínas da democracia parlamentar clássica.
5. Enquanto isso, a situação na Grécia continua, em minha opinião, muito difícil, muito frágil. Agora é que começam as verdadeiras dificuldades. Pode ser, à vista do sucesso tático do referendum, que já os pôs na posição de réus da história, que os Merkel, Hollande e outros naufragados sob o poder do capital europeu modifiquem suas exigências. Mas é preciso agir sem dar a eles muita atenção. O ponto crucial, doravante, é saber se o voto "não" vai-se prolongar em potente movimento popular, mantendo e/ou pressionando vivamente o próprio governo.
6. Assim sendo, como julgar hoje o governo Tsipras? Decidiu, há cinco meses, iniciar a negociação. Quis ganhar tempo. Quis poder dizer que fez todo o possível para alcançar um acordo. Eu teria preferido que começasse de outro modo: por apelo imediato a uma mobilização popular massiva, prolongada, com engajamento de milhões de pessoas, sob a palavra de ordem de extinção total da dívida. E também por luta intensa contra especuladores, corrupção, ricos que não pagam impostos, armadores, a Igreja... Mas não sou grego e não quero dar lições a ninguém. Não sei se uma ação assim tão centrada na mobilização popular, ação em vários sentidos mais ditatorial, era possível. No momento, depois de cinco meses de governo Tsipras, houve esse referendum vitorioso, e a situação permanece completamente aberta. Já é muito.
7. Continuo a pensar que o golpe ideológico mais duro que se pode aplicar contra o sistema europeu atual expressa-se pela palavra de ordem de anulação total da dívida grega, dívida especulativa, da qual o povo é perfeitamente inocente. Objetivamente, esse cancelamento é possível: muitos economistas que absolutamente não são revolucionários também entendem que a Europa deve anular a dívida grega. Mas a política é subjetiva, e nisso é diferente da economia pura. Nesse momento, os governos querem impedir total e absolutamente qualquer vitória do Syriza. Depois dessa vitória, virá o Podemos, depois talvez outras ações populares vigorosas nos grandes países europeus.
Os governos também, por pressão dos lobbys financeiros, querem punir o Syriza, querem punir o povo grego, muito mais que resolver o problema da dívida. Para punir os que querem essas punições, o calote da dívida é sempre o melhor procedimento, sejam quais forem os riscos. A Argentina, há alguns anos deixou de pagar dívidas sujas. Não morreu. Longe disso.
8. Agita-se, por todos os lugares, sobre a Grécia, a questão de uma "saída" da Europa. Mas na verdade, são sempre os reacionários europeus que levantam essa questão. São eles que fazem do "Grexit" uma ameaça iminente. Querem assim apavorar as pessoas.
A linha justa, que até aqui é a do Syriza e também do Podemos, é dizer: "Nós estamos e aqui ficamos, na Europa. Queremos apenas, como é direito nosso, mudar as regras dessa Europa. Queremos que ela deixe de ser correia de transmissão entre o capitalismo liberal globalizado e a manutenção do sofrimento dos povos. Queremos uma Europa realmente livre e popular."
Os reacionários que digam o que lhes parece essa nossa posição. Se quiserem expulsar a Grécia, eles que tentem! E a partir daí a bola está no campo deles.
9. Em segundo plano, sentem-se medos geopolíticos. E se a Grécia procurar outros, que não sejam os bichos papões europeus? Pois lhes digo o seguinte: todos os governos europeus têm política externa independente. Cultivam amizades absolutamente acanalhadas, como Hollande, com a Arábia Saudita. Contra as pressões que pesam sobre ela, a Grécia pode e deve ter política externa também livre. Dado que os reacionários europeus querem castigar o povo grego, ele tem todo o direito de buscar apoios externos, para diminuir ou impedir os efeitos daquele castigo. A Grécia pode e deve voltar-se na direção da Rússia, dos países dos Bálcãs, da China, do Brasil, até do velho inimigo histórico, a Turquia.
10. Mas sejam quais forem os recursos que procurem, a situação da Grécia será decidida pelos próprios gregos. O princípio do primado das causas internas aplica-se aqui. Ou os riscos serão tão mais graves, se Syriza só estiver formalmente no poder. As velhas forças políticas - já se sabe, já se fareja - intrigam nos bastidores. Dado que o poder do Estado, ganho em condições regulares, não revolucionárias, é muito rapidamente corruptor, é preciso, evidentemente propor as questões clássicas: o Syriza controla completamente a Polícia, o Exército, o Judiciário, a oligarquia econômica e financeira? Com certeza não. O inimigo interno ainda existe, está quase intacto, continua potente e é mantido nas sombras pelos inimigos externos, inclusive pela burocracia europeia e os governos reacionários. O movimento popular e suas organizações de base devem vigiar constantemente os atos do governo. Mais uma vez: o "não" do referendum só será força verdadeira, se for prolongado por fortes manifestações independentes.
11. Uma ajuda internacional popular, manifestante, mediatizada, incessante, deve apoiar com todas as forças o possível levante grego. Hoje lembro que 10% da população mundial possui 86% das riquezas disponíveis. A oligarquia capitalista mundial é muito restrita, muito concentrada, muito organizada. Diante dela, os povos dispersos, sem unidade política, fechados em fronteiras nacionais, continuarão fracos e quase impotentes. Hoje, tudo se disputa no plano mundial. Transformar a causa grega em causa internacional tem valor simbólico muito potente. É necessário e, portanto, é um dever. *****
8/7/2015, Alain BADIOU, Libération
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