O DESTINO DO QUE A GENTE ESCREVE

Um amigo me telefona e me diz que viu num Sebo um romance que escrevi. Sebo, para quem não sabe, é uma livraria onde se vendem livros usados. No caso desse meu romance, ele foi visto na verdade num lugar que é menos que um Sebo e algo mais alto que o lixo. Meu querido romance estava sobre uma calçada, no chão, próximo ao Cine Trianon, que não mais existe. E o vendedor, o livreiro, gritava: - Vamo comprá, vamo comprá, aqui só tem filé !

Até parece bom, esclareça-se, ainda que seja um produto do espírito, é bom produzir uma obra a que chamam Filé. Em nossa terra de muita fome, onde a carne quando presente é de terceira categoria, quando não vísceras desprezadas de galinha, chega a ser uma honra ter um livro elevado à categoria de uma carne mais nobre. Mas esse é o tipo de honra que não consola. Primeiro porque o vendedor, como todo bom vendedor, está mentindo. Aquilo a que ele chama filé é tão bom que de graça ele não levaria para a sua casa. Segundo porque, convenhamos, está cada vez mais assente em nossa alma que a nossa imaginação não sai do boi ou de um açougue. Então resignemo-nos: o vendedor da calçada do Trianon é um homem ignorante, coitado, pois ao querer levantar o valor do que vende transforma-o em um retalho de boi. Ignorante e santa gente, que assim arquivada, deixa em paz o nosso espírito.

Deveríamos ficar, se não fôssemos o autor do que a mentira deseja confundir com filé. Os escritores são uma gente muito estranha. Para quem não sabe, a sua maior honra é o que ele escreve. Chamem-no de ladrão, canalha, tarado de cadelas ou pederasta de cães vadios, insultem-no até onde resida a capacidade de insultar do ser humano. Ele, a pessoa física do escritor, certamente não ficará jubiloso. Ele, a sua pessoa em carne e osso, ficará por certo amargo e infeliz. Mas passará pelo tormento, como todos passamos por muitos insultos ao longo de uma vida. Passará, mesmo que lhe dê uma vontade louca de matar e destruir quem o insulta. Se não transformar esse impulso num poema, num conto, mais cedo ou mais tarde ele o guardará em uma esquecida banda esquerda. Mas não lhe insultem a obra, grande ou pequena. Este é o grão, esta é a semente, o núcleo da sua alma. Daí não passem. Quem o fizer, saiba, será um inesquecível inimigo. Inimigo a ser destruído, com requintes de paciente ansiedade, se me expresso bem.

Um romance da gente desprezado seria como o nosso eu nu, na calçada, próximo à sarjeta, sendo oferecido com mofa aos transeuntes: - “Leve pra casa, madame, é só filé”. E o nosso eu ali encolhido, acocorado, transido de frio na mercancia infame. Ao receber a notícia do meu romance na calçada, pedi à minha esposa que fosse aos restos do Trianon e visse a quem eu dedicara o livro. Que anotasse o nome da pessoa e a própria dedicatória, essa gentileza que eu desarmado num belo e enganoso dia fizera. Notem, tamanho era o insulto que eu, covardemente, me sentia com medo de ser visto a folhear uma rejeição. Flagrado, era o meu medo que dissessem, flagrado o criador e sua porcaria. “Que estranha mimese, vejam a droga, é a sua cara”. Isto senti na hora, mas a distância eu digo: um livro, e sua dedicatória, vendido ao sebo, com a dedicatória, é mais grave que um livro deixado para outras mãos: é um livro desprezado com escárnio, por força da presença das palavras de oferecimento. (Mas por que eu o imaginava com dedicatória? perguntam-me. Ao que eu respondo: se imaginamos uma desgraça, pensemos logo no pior, quem sabe ao fim consigamos algum lucro.) O certo é que, por sorte, o exemplar possivelmente dedicado, cheirando a papel novo, já não mais se encontrava ao léu. Fora vendido, informou o novo açougueiro.

Tão rápido saiu da calçada, fiquei a me dizer. “Talvez o livro não fosse tão ruim assim. Deve ter chegado lá um leitor pobre, um estudante Raskolnikov, viu a orelha, viu a abertura dos capítulos e levou-o”, imaginei. Talvez, o que certamente é mais provável, um amigo comum, o muçulmano Paulo Fradique, sabendo da notícia pelo amigo cristão Roberto Motta, procurou me poupar do dissabor dessa rejeição, e comprou o rejeitado para doá-lo a um vegetariano sensível, que por ser vegetariano recusa a carne e gosta mais de legumes e do espírito. Talvez. As amizades da gente, quando verdadeiras, são generosas. Isto consola como o consolo dos meninos que não têm mãe e se agarram à compensação que a imitam. Pois essa rejeição que nos foi suavizada por amigos não lhe tira o caráter anterior, substantivo, de rejeição. E assim, a gente se pergunta: para quê escrever? Que destino esperamos das coisas que escrevemos?

Os nossos inimigos diriam: quem escreve tem a esperança de ser publicado, gravado em jornal cuja finalidade é embrulhar peixe. Os inimigos mais ferozes (e como possui inimigos um escritor) seriam ainda mais baixos: de um modo geral, diriam, toda escrita é matéria-prima de papel a ser reciclado. Das palavras e sua tinta faz-se uma pasta, que gera um papel liso, para a nobre utilidade de limpar excrementos. E aí, para essa imagem e inimigos, pouco importa o que artistas e intelectuais lhes respondam. Que a escrita é civilização. Que a escrita é identidade do homem. Que a escrita funda uma língua. Que a escrita funda um povo, uma nação. Que Dante, que Cervantes, que Shakespeare, que Goethe, que Camões ... Pouco importa o que o gênio humano lhes responda. Pois enquanto temos os olhos voltados para a história, pois enquanto erguemos a vista para o futuro, os nossos inimigos têm o fogo farto do mundo imediato, eles se nutrem das mais pragmáticas compensações do cotidiano dos dias presentes. E nesse passo acutilam: a bomba de Hiroxima é muito mais potente, prática e destruidora que todos os poemas e romances que se lhe fizeram contra. E continuam: que importa o mundo das Palavras se voltar contra George Bush, se Bush tem a palavra do mundo que importa? A saber: se Bush tem máquinas, mísseis, porta-aviões, fogo, bombas, que são afinal a palavra do mundo que transforma e põe de joelhos e mata povos, crianças, jornalistas e sua escrita que se lhe opõe?

Então nos encolhemos, pois mais agudas que essa diatribe seriam as estocadas pessoais, microscópicas, que nos ferem talvez mais que a bomba construtora de planícies nuas. Estocadas do gênero: de que vale a vaidade oca de quem escreve, se um escritor vale menos, para o mundo, para a fama, para o consumo das multidões, que um simples ator de telenovela? Pior: se o mais sutil e fino poeta vale nada frente a um destaque ocasional, passageiro, do Big Brother? Para quê tanto empenho e suor e dias e anos roubados à família, ao sol morno da praia, para quê tantas horas furtadas ao prazer comum, se com a escrita, em 99,99...... % dos casos, não se compram casas, roupas, champanhe, vinho, sexo e suas imitações de amor? Para quê esse úmido nos olhos, para quê esse coração de criança, se exatamente agora canta um pássaro em nosso quintal com o mesmo canto que cantará no dia em que nosso corpo, somente corpo mais nada, baixar ao cemitério? De que adianta, e aqui os nossos inimigos tornam-se autênticos soldados de Bush, de que adianta a glória do Dom Quixote, se o seu criador levou a vida como escravo, marido traído, prisioneiro por dívida e membro de família desonrada? Para esse pobre homem mais valia se tivesse posto o engenho para moer moinhos verdadeiros, moinhos de pedras preciosas no mercado, moinhos de roubos, assaltos, canalhices e safadezas gerais. Já vemos pela direção tomada pelos, não sei se inimigos, não sei, pois esses zombadores nos tomam por pequenos demais para que atinjamos a alta condição de inimigo (um igual, um igual oposto)...... já se vê pelo rumo seguido pelos homens práticos em seus “argumentos” (socos, pontapés e cabeçadas), já se vê que o destino do que a gente escreve é o destino da gente que escreve. O destino da coisa, da escrita, se torna o destino de quem escreve. Ainda que a insensibilidade reinante não nos veja assim. A começar por estranhos mais próximos à escrita, a começar por alguns editores de livros. O pobre do escritor que lhes mendigar à porta .... Não nos referimos a todos editores de livros em suas relações com o escritor, mas não sei se a relação entre o traficante e o viciado é mais digna. Pois enquanto o primeiro tem o poder do gozo, o segundo tem a angústia desse gozo. Pois enquanto o primeiro tem o poder de materializar a alma, o segundo tem somente ela, a própria alma. Reflitam e vejam em qual frase anterior se enquadram melhor os pares traficante/viciado e editor/escritor. Eu confesso que não sei. Não sei, mesmo se acrescentasse que o escritor, para alguns editores, é apenas o que gera dinheiro, enquanto o viciado, para o traficante, é aquele que tem dinheiro. Reflitam portanto e vejam quem recebe melhor tratamento nesse concerto de troca. O drogado já traz em si a capacidade do ouro, o escritor traz somente a possibilidade de algum dia..... de quê? De transformar palavras em ouro, como O Alquimista. Este é o verdadeiro escritor. Os outros são ... duvidosos, na maioria dos casos nem escritores são. Daí o trato desconfiado, aborrecido, de alguns editores para com esses remendados, nos fundos e na escrita, que lhes batem à porta.

De passagem anotemos que o editor ideal, para alguns editores, seria aquele que tratasse a pontapés o escritor que não lhes gerasse lucro certo. O ideal seria uma placa de aviso sobre o muro alto da Casa: “CUIDADO, EDITOR FEROZ”. E para não serem mordidos, os fundilhos rasgados e seus manuscritos sujos manteriam distância dos dentes da fera. Entendam, se me expresso assim, não pensem por favor que isto são imagens de exagero leviano. Não é o gosto do paradoxo que nos faz dizer: alguns editores não gostam do livro. Eles gostam é do que o livro lhes dá. O diabo é que cercados de tantos livros, de possibilidades perdidas, de livros que não se venderam, eles passam a odiá-lo. Vá lá, aqui cometemos algum exagero. Corrijamos: eles passam a se sentir mal com os criminosos, esses autores das pesadas perdas que lhes enchem os depósitos. Daí os obstáculos que criam, para melhor distância dos delinqüentes: “Não recebemos originais” (Não insistam! Já lhes dissemos!!!). E chegam até mesmo a essa fórmula cortês, ao fim de um tempo em que perderam tempo a ler originais: “Avisamos aos senhor escritor que o seu livro será queimado”. Queimado! que civilizado tratamento a uma obra amorosa. Os nazistas queimavam livros por ódio a determinados escritores, alguns editores queimam-nos por desprezo. Acaso não se queima a imundície?

Num mundo ideal, esses editores procurariam o escritor, que lhes faria esperar meses diante de uma caixa postal, sem lhes responder às torturadas propostas (“O genial e magnífico Homero aceitaria que editássemos a sua Ilíada?”), para ao fim de tudo, com absoluto zelo burocrático, declarar-lhes: “Senhor editor, tendo em vista a sua proposta, 1o – o senhor será buscado para ter o corpo transformado em páginas; 2o – enfeixado em volume o senhor será queimado. Atenciosamente....”.

Reconhecemos que para atingir esse mundo, teríamos antes de passar pelo difícil estágio do socialismo da alma, aquele em que estaria superado o gosto pervertido do público. Pois é dessa massa que saem esses maus editores, que a ela voltam com seus livros vulgares. (Vulgar, divulgar, vendas, vendas.) Pois o mesmo público que não perde o Big Brother, o mesmíssimo público que mantém excrementos de imprensa nas bancas de revistas, o mesmo público que “lê” fotos de cadáveres decapitados, é aquele que engole matéria decomposta sem se dar conta do que engole, sem saber da consistência delicada e do sabor que tem a alma grande. É o público que escolhe um artigo, um livro, já não digo pelo tema, que a sofisticação não chega a tanto, mas pelo título. Agora mesmo, se estas palavras que lêem trouxessem o título “O Estupro na Sarjeta”, ou mesmo “O Sexo e o Gozo dos Artistas”, ou então “A Bunda de Vênus”, ou, suprema genialidade, realizasse a fórmula geral de um título que unisse Bunda, Sexo, Estupro, Gozo e Sangue, ah, estaríamos entre os autores mais lidos de toda a Web. É desses recursos fáceis, são tais recursos usados à náusea e com igual freqüência e semelhança que não permitem a sobrevivência da humanidade do que a gente escreve. Acreditem, “Páginas de Sexo e Luxúria censuradas no Dom Quixote” seria a obra mais lida de Cervantes. Você mesmo, leitor, eu próprio, confesso, que nos supomos sujeitos cultos, seríamos capazes de fugir à armadilha de um livro cujo título fosse Os Amores Homossexuais de Franz Kafka? Ou de uma reportagem que fosse anunciada por um “Médico revela os Testículos Artificiais de George Bush”?

É nesse contexto de rejeição, de desprezo ao que não for grossa animalidade, que os escritores naufragam. É nessa paisagem que escrevem com ardor, com afeto a seu melhor eu e à pessoa de um leitor ideal e vêem a obra jogada ao chão. Chega a ser irônico que mandem, com sentida dedicatória, os livros à calçada de um cinema que um dia foi cinema. É esse o contexto em que editores tocam fogo em originais e o declaram com total patada e truculência. É esse o contexto em que às vezes penso, quando vejo músicos que tocam num restaurante de um shopping. É espantoso como eles se aplicam, como afinam os instrumentos, como escolhem o repertório, como se concentram com todo espírito, é extraordinário o respeito que se dão, enquanto o público grita, gargalha, nega-lhes ouvidos, dá-lhes as costas. Para quem tocam esses loucos? – Para eles mesmos, para se dizerem vivos, para se dizerem que não temem valer menos que um traço de pizza e uma cerveja. Então eu penso nos escritores que executam a obra sozinhos, que não sabem se serão publicados, e se o forem não sabem onde irão cair.

Então eu sei, agora eu sei. O destino do que a gente escreve não é só o destino da gente que escreve. Esse destino é algo tão incerto quanto a possibilidade de ser lido um bilhete que enfiamos numa garrafa e jogamos ao mar. Talvez quem sabe um dia em outro continente, em outro tempo. Quando nós próprios já tivermos afundado ao sabor de ondas mais densas.

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