88º aniversário da Revolução de Outubro

Um aniversário da Revolução Russa de Outubro de 1917 é algo que vale a pena comemorar. Não por rotina burocrática ou nostalgia pela União Soviética brejneviana. Mas como momento de afirmação, de reflexão, de luta. Procurarei assim contribuir para as comemorações do 88º aniversário da Revolução de Outubro tentando rebater algumas opiniões que o director do jornal Público, José Manuel Fernandes (JMF), costuma emitir acerca da história do comunismo. E que constituem, creio, como que um paradigma da ignorância e dos mal-entendidos que persistem acerca desta história. Consideremos, por exemplo, o editorial que JMF escreveu por ocasião do 10º aniversário da queda do Muro de Berlim. (1) Perante o inequívoco falhanço do que chama de «socialismo real» que existiu na Europa de Leste, JMF admira-se muito com a «persistência e a longevidade» do ideal comunista, considerando-as mesmo um paradoxo. Parece ignorar que o comunismo tem raízes profundas. Nasceu, como já assinalava Milovan Djilas - um dos seus mais acérrimos críticos -, «da cultura ocidental, do judaísmo, do cristianismo, (...) dos filósofos utopistas. (...) este sonho de liberdade, igualdade e fraternidade faz parte da natureza humana». (2) A sua persistência e longevidade são bastante naturais. Mas a admiração que despertam em JMF também. Afinal, pegando nas palavras do antigo dissidente soviético Boris Kagarlitski, «quanto mais vivas são as ideias de Marx, mais natural é o desejo de o enterrar. Ninguém se mexe para "enterrar" Hegel ou refutar Voltaire, porque é evidente, mesmo sem isso, que o hegelianismo e as ideias de Voltaire pertencem ao passado. As ideias dos filósofos antigos dissolveram-se nas teorias modernas. Isso não aconteceu com Marx. Nem pode acontecer, porque a sociedade que ele analisou, criticou e sonhou transformar ainda existe. O fim do marxismo só poderá ocorrer com o fim do capitalismo». (3) É certo que 120 anos depois de Marx, esse capitalismo evoluiu bastante, e permitiu grandes e inequívocos progressos. Mas não alterou a sua natureza geradora de profundas injustiças sociais, nem pôs fim à necessidade de as combater e superar. JMF admira-se também com a firmeza de convicções comunistas de milhões de pessoas, «mesmo quando já era impossível negar as práticas terríveis do socialismo real». Houve efectivamente «práticas terríveis», absolutamente indesculpáveis e que não devem ser esquecidas. É chocante que tenham sido cometidas em nome de um ideal tão justo e generoso. Mas para compreender como foram possíveis - condição elementar para evitar que se repita algo de semelhante e para avançar no sentido de uma sociedade mais justa - é fundamental conhecer e respeitar a verdade (e a experiência) histórica. Há que ter em conta portanto que o chamado «socialismo real» de modo algum se reduziu a «práticas terríveis». Ou será que realizações como a garantia de emprego, de educação, de cuidados de saúde gratuitos ou de habitação barata foram «práticas terríveis»? O «socialismo real» que existiu na Europa para lá do Muro de Berlim não foi socialismo nem comunismo. Foi uma experiência que, em determinadas condições históricas, e em alguns aspectos fundamentais - nomeadamente ao nível da democracia política, das liberdades individuais e da racionalidade económica - contrariou o ideal e projecto comunista. Para esse afastamento contribuiu de um modo decisivo um fenómeno que se convencionou designar por estalinismo. Foi um caso extremo de abuso do poder, embora também sejam relevantes outras características, como concepções dogmáticas e sectárias, aparentemente marxistas, mas na verdade bastante estranhas ao pensamento marxista. Foi em grande medida o problema de como facilmente o poder corrompe e se afasta do povo, de como é fácil abusar dele, e da falta de mecanismos democráticos para o prevenir e corrigir, que desviou de princípios essenciais e destruiu o «socialismo real». E isto num determinado contexto histórico, bastante propício a este tipo de situações, como era o colapso político, económico, social e militar da Rússia aquando da Revolução de Outubro. Ou como foi os constantes cerco e ameaça imperialista, desde a invasão nazi na 2ª Guerra Mundial à Guerra Fria. Os abusos de poder não são exclusivo de nenhuma ideologia, de nenhum sistema político, de nenhuma classe ou época. Têm ocorrido e continuam a ocorrer, ao longo dos séculos até aos dias de hoje, em nome do comunismo, do liberalismo, do cristianismo, do islamismo... O melhor remédio para os abusos de poder é a democracia. E a melhor forma de melhorar a prevenção de abusos de poder é melhorar a democracia. As «práticas terríveis» em nome do comunismo, referidas por JMF, acabam por ser um excelente exemplo, entre tantos outros, de como é pertinente o comunismo definido como "liberdade igualitária", assente numa concepção alargada dos direitos humanos fundamentais, da qual a liberdade é um elemento básico e central. Que aponta não só para a valorização e aprofundamento da democracia política, tanto na vertente representativa como na participativa, mas também da democracia económica, social e cultural: o poder económico tem que ser subordinado ao poder político - à cidadania -, tem que haver justiça social e igualdade de oportunidades, tem que ser para todos o direito ao emprego, à habitação, à educação, à saúde, à informação, e muitos mais. JMF coloca uma questão incontornável: «porque é que mesmo homens inteligentes, cultos e sensíveis se negaram a ver, durante décadas, os crimes cometidos em nome do comunismo?». Já agora coloco outra: porque é que tantas pessoas, inteligentes, cultas e sensíveis, se negam a ver há décadas a colossal diferença entre as «práticas terríveis» em nome do comunismo e o comunismo propriamente dito, enquanto ideal, projecto e vontade de uma sociedade mais justas, onde, nos termos de Marx e Engels, «o livre desenvolvimento de cada um» seja «a condição para o livre desenvolvimento de todos»? (4) Bem como a variedade de concepções e práticas entre os movimentos políticos de algum modo identificados com o comunismo, desde a tirania estalinista ao comunismo libertário anarquista? Sem dúvida que para isso contribuiu o contraste, e simultaneamente a confusão, entre o comunismo e a sua suposta realização prática no chamado «socialismo real». Confusão que muitos adeptos do comunismo ainda hoje alimentam, nomeadamente com nostalgias em relação à União Soviética brejneviana ou acritismo em relação ao regime de Fidel Castro em Cuba. Sem dúvida também que os comunistas têm de insistir no sentido de tornar claro que não é no dogmatismo, em concepções sectárias ou num projecto autoritário e de limitações das liberdades que se situa a essência das suas concepções. Quanto à questão levantada por JMF: foi de facto um erro grave, e até chocante, mas que poderá ser compreensível, se tivermos em conta toda a história, se não a deturparmos, se não a reduzirmos a apenas alguns aspectos ignorando outros. Será possível então entender como se confudiram desejos com realidades, como muita coisa não se sabia, como muita coisa não se quis saber ou não se quis acreditar (e como muita coisa se aceitou e se fez), por sectarismo, no meio de muitas propagandas e de lutas difíceis. É de sublinhar que a falta de objectividade ou mesmo a incapacidade de compreender a realidade do «socialismo real» de modo algum foi exclusivo dos comunistas - o que ficou bem espelhado na generalizada surpresa perante o seu desmoronamento tão rápido e relativamente pacífico. E posteriormente pela recuperação de popularidade e influência de antigos partidos ditos comunistas, profundamento renovados é certo. Muitos no sentido da social-democracia, outros nem por isso, como é, por exemplo, o caso do Partido Comunista da República Checa, que nas últimas eleições quase duplicou a sua votação, passando de 10% para 18,5% dos votos, ou do Partido Comunista da Moldávia, que regressou ao poder com maioria absoluta em 2001, maioria que renovou nas últimas eleições, no corrente ano. Atente-se por exemplo, na chamada "escola do totalitarismo", que dominou a "sovietologia" anglo-americana entre as décadas de 1940 e 60. Esta corrente científica, muito conveniente (e apoiada) entre a classe dominante no mundo ocidental, foi formada por historiadores, cientistas... pessoas certamente muito inteligentes, cultas e sensíveis. E que, com a sua visão deturpada e preconceituosa, influenciaram bastante a opinião pública. É um historiador norte-americano, Stephen Cohen, que a denuncia: - «obscureceu mais do que revelou» - «reduziu a análise histórica à tese de uma inevitável continuidade do regime soviético, desprezando aspectos essenciais da história real - como confrontos entre tradições, alternativas, pontos de viragem e uma multiplicidade de contigências, causas e influências». - «fixou a análise histórica na tese de um regime que impunha a sua natureza intrinsecamente totalitária a uma sociedade impotente e vitimizada, desvalorizando aspectos essenciais da política real - como a interacção de factores governamentais, históricos, sociais, culturais e económicos; como o confronto entre classes, instituições, grupos, gerações ideias e personalidades». (5) JMF referiu ainda de modo caricatural, a confiança dos comunistas na História. O que é certo é que a História mostra a humanidade em constante movimento e transformação; que muita coisa que parecia eterna - como agora poderá parecer o capitalismo ou a hegemonia dos Estados Unidos da América - deixou de existir; que muita coisa que aprecia impossível afinal aconteceu. E é também certo que, como dizia o saudoso Luís Sá, «tudo está em aberto enquanto a solução dos problemas essenciais de um povo, dos povos europeus, da humanidade, estiverem em aberto. Há momentos em que a fase ascendente do ciclo capitalista e outros factores parecem deixar a maioria passiva, mesmo quando as desigualdades, os problemas ambientais e tantos outros, continuam escaldantes» , mas «os povos acabam sempre por explodir em luta nas ruas, nas empresas, nas escolas, um pouco por toda a parte». (6) Viva a Revolução de Outubro, até hoje o maior abalo ao poder dominante no mundo! Viva Lénine e Trotsky, seus lideres! (1) - Público, 09/11/1999 (2) - Diário de Notícias, ??/??/1983 (3) - "Revenir à la tradition marxiste", in Le Manifeste Communiste Aujourd'hui, Les Editions de l'Atelier/Éditions Ouvières, Paris, 1998, pág. 288 (4) - Manifesto do Partido Comunista, Edições Avante, Lisboa, 1997, pág. 58 (5) - Rethinking the Soviet Experience, Oxford University Press, New York, 1986, pág. 7 (6) - Vida Mundial, Abril 1999

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