Há novo governo no Líbano?

Há novo governo no Líbano?


Há novo governo no Líbano - embora ainda não tenha recebido o voto de confiança do Parlamento nem tenha feito, de fato uma Declaração Ministerial de política de governo. O novo governo tem 30 dias para construir um consenso dos seus objetivos e declará-los oficialmente (tarefa difícil, nos tempos atuais, tão polarizados), e obter o apoio do Parlamento - ou o governo será declarado 'vacante' (tecnicamente, o equivalente a governo que renunciou).

Depois de onze meses sem governo empossado e com poder (o governo administrativo tem capacidades mínimas), esse desenvolvimento positivo foi muito bem recebido aqui no Líbano. 
Conflicts Forum
Mas, isso posto, esse governo terá vida curta (e mesmo que obtenha o voto de confiança do Parlamento): em maio haverá eleições presidenciais no Líbano e ninguém sabe por aqui se será possível eleger algum presidente - questão muito discutível atualmente. Mas o importante é que qualquer sucesso, ainda que relativo, desse governo 'experimental', pode facilitar a eleição do presidente. Ao contrário, se fracassar, as perspectivas tornar-se-ão ainda mais turvas.

O novo governo é, realmente, um experimento. E há gente, aqui no Líbano, surpreendida (e aflita) pelos muitos riscos inerentes a esse experimento. Dito mais claramente, o novo governo deve ser entendido como um 'piloto', ou um barômetro, para algum 'entendimento' sobre a Síria. Ou, ampliando um pouco mais a ideia, uma medida para construir confiança com vistas a algum acordo regional ainda a ser desdobrado. 

O Líbano várias vezes fez esse papel de 'canário na mina' (para indicar se o ar é seguro e respirável, ou se há alta concentração de venenos na atmosfera). Esse governo 'canário na mina' fará, efetivamente, exatamente a mesma coisa.

Assim sendo, o que há de tão significativo sobre esse novo governo?[1] Em primeiro lugar e sobretudo, o novo governo inclui o Hizbullah (que deliberadamente não procurou obter qualquer pasta peso-pesado no Gabinete, no atual alinhamento). Não esqueçamos que, há bem pouco tempo, o ex-primeiro-ministro Saad Hariri havia vetado qualquer arranjo de governo que incluísse o Hizbullah. Essa flagrante virada não pode ter acontecido sem, pelo menos, a tácita aprovação de Riad. E em segundo lugar, os partidos do movimento 14 de Março - mas, muito especialmente, Seyed Hasan Nasrallah - concordou com inverter, completamente, a tradição política libanesa.[2]

Ao longo dos anos, o Hizbullah e seus aliados cuidaram de manter a capacidade para influir na esfera da segurança (considerada a sempre presente ameaça israelense), enquanto o campo do Movimento 8 e Março sempre se interessou por controlar as lucrativas alavancas econômicas e financeiras dos negócios e do Estado. Nesse mais recente arranjo de novo governo, isso tudo aparece invertido.

É interessante que o Hizbullah e seus aliados tenham-se focado agora mais nos ministérios da Energia e das Finanças, exatamente quando o Líbano está para implantar sua Zona Econômica Exclusiva [orig. Exclusive Economic Zone (EEZ)] em águas territoriais, para exploração de gás e petróleo, na expectativa de que o Líbano possa usufruir de fatia significativa do imenso potencial da Bacia do Levante no Mediterrâneo Leste [orig. East Mediterranean Levant Basin].

Interessante também que, no momento em que o Líbano está sob ameaça de sunitas extremistas, os postos chaves da segurança, como os ministérios do Interior e da Justiça, sejam entregue ao Movimento 14 de Março - não só ao Movimento, mas, também, a um empenhado ativista anti-Assad (como o ministro da Justiça). Não surpreende que alguns tenham estranhado que Hasan Nasrallah e o Hizbullah tivessem aceitado tal arranjo.

É um teste; um experimento. Dá aos sunitas libaneses (do partido de Hariri) a responsabilidade por enfrentar o extremismo sunita que emana da Síria: caberá a eles proteger o Líbano contra os suicidas-bomba takfiri que caem sobre o Líbano como praga. Em apenas dois anos, as vendas de varejo em Beirute caíram mais de 1/3, porque pouca gente se arrisca a andar pelas ruas. Os sunitas libaneses darão conta do recado?

Não é difícil compreender a significação mais ampla desse movimento: a Arábia Saudita afinal concordou com a formação de um governo de unidade.  Hassan Nasrallah e o general Aoun (que teve papel importante em tudo isso), estão agora respondendo ao gesto dos sauditas, reconhecendo os temores dos sunitas e a posição vulnerável em que são postos, por conta do envolvimento dos xiitas na Síria - o que não implicará em o Hizbullah ter de desistir do seu envolvimento na Síria.[3] O Hizbollah retribuiu, concordando em dar aos sunitas do Movimento Futuro controle efetivo sobre o próprio ambiente deles. É notável gesto de inteligência política para tranquilizar os sunitas do Líbano, mas também é medida para construir confiança, apostando que Riad pode vir a pensar sobre um acordo na Síria.

Claro, o risco é que o experimento pode ser mal usado - pode acontecer de não facilitar acordo nenhum na Síria, e, para piorar, pode levar a uma escalada da violência no Líbano. Mas, se esse 'canário' iraniano-saudita permanecer vivo e com boa saúde, pode servir para pavimentar a via para compreensão semelhante na Síria. Dão-se garantias de segurança aos sunitas sírios (aqui, falamos dos sunitas sírios não alinhados com o governo e que temem a influência dos xiitas; de fato, a maioria dos sunitas sírios não se sente vulnerável aos xiitas, nos quais, em alguns sentidos, veem aliados; eles só temem os extremistas takfiri). Nesse quadro, a evidência de que passa a caber à comunidade sunita dominante na região a tarefa de combater os jihadistas, pode bem ser o movimento que leve a um 'entendimento' político também na Síria. Teremos de esperar para ver o que acontece.

Há alguma possibilidade de tudo isso tornar o Líbano mais estável? Infelizmente, não.

Aqui, é importante entender como o jihadismo na Síria está evoluindo. 

Os salafistas estão no processo de uma definição radical da doutrina. É um desenvolvimento que, se se mantiver, os põe, diretamente, em confronto com a autoridade estabelecida - seja a autoridade do rei Abdallah ou qualquer outra autoridade sunita formal. Em resumo, aquele ramo dos jihadistas takfiri não dará importância alguma a nenhum acordo que por acaso possa ser construído entre Riad, Damasco e Moscou ou Teerã. Eles estão em guerra contra todos os símbolos de autoridade estabelecida na esfera sunita.

Esses movimentos estão-se movendo por uma linha 'revisionista' da história do "Estado Islâmico". Ele não teria surgido em virtude da liderança do Quraish nem pelos trabalhos do tradicionalismo árabe; nem pelos esforços de qualquer pessoa (um Salahidin, por exemplo). Historicamente, em vez disso, o Estado Islâmico teria surgido como pequenos grupos separados de muçulmanos lutando pelo Islã, que finalmente se teriam unido para formar o Estado Islâmico. Essa rede de 'imãs'-combatentes teria representado o legítimo Estado Islâmico, até que se fundiram, para formar uma Umma unificada.

O movimento Da'ish ou ISIS define-se, precisamente, como um estado - seu líder é o líder dos que creem. Combate contra outros movimentos islamistas, porque é um estado, vendo seus rivais potenciais como, simplesmente, uma rebelião contra um braço do Estado Islâmico. Os pilares tradicionais da autoridade saudita (a descida do Quraish, os guardiões de Meca; a mesquita estabelecida, ou al-Azhar) absolutamente nada significam para eles.  Não reconhecem a legitimidade de nenhum rei saudita, para falar em nome de "muçulmanos".

Paradoxalmente, com a Arábia Saudita a fazer guerra contra a Fraternidade Muçulmana por sua doutrina de que a soberania brota do povo, a real ameaça contra a autoridade saudita foi, de fato, incubada dentro do wahhabismo. A família Al-Saud já não controla 'sua' esfera, como antes. Aquela esfera está fora de qualquer controle. ****

 


[1] "Lebanon's government: A ticking time bomb with regional and international controls" (Governo do Líbano: bomba-relógio com controles regionais e internacionais), 17/2/2014, Al-Akbar, em http://english.al-akhbar.com/content/lebanon%E2%80%99s-government-ticking-time-bomb-regional-and-international-controls

[2] 18/2/2014, Al-Monitor, em http://www.al-monitor.com/pulse/originals/2014/02/lebanon-new-government-mutual-censorship.html##ixzz2uqjPzdmB

[3] 10/2/2014, "Nazrallah: Hezbollah tem o direito de fazer guerra preventiva na Síria", em Al-Monitor, http://www.al-monitor.com/pulse/originals/2014/02/nasrallah-hezbollah-syria-fighting-lebanon-government-forms.html

1/3/2014, Comentários, semana 14-21/2/2014
http://www.conflictsforum.org/2014/conflicts-forums-weekly-comment-14-%E2%80%93-21-february-2014/

 

Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter

Author`s name Pravda.Ru Jornal
X