A DUALIDADE IRANIANA: LAICISMO E TEOCRACIA

Desde 1997, com a eleição de Mohamed Khatami para presidente, o Irã tem passado por um conflito bastante representativo do mundo islâmico: a luta entre duas tendências, a da democracia laica contra a teocracia. Nenhum país de maioria muçulmana conseguiu superar este conflito, pois mesmo aqueles que têm regimes democráticos laicos possuem fortes movimentos favoráveis à teocracia. O mais interessante no caso do Irã é que, embora nele se tenha levado mais a sério a proposta teocrática, sua população é a que, dentre todos os povos islâmicos, mais apóia um regime laico.

Em 1979, a revolução do aiatolá Khomeini derrubou a monarquia absolutista do xá Reza Pahlevi, um dos principais aliados dos Estados Unidos na região. Foi a única revolução não inspirada nem pelos valores da revolução francesa de 1789, nem da russa de 1917, como notou o historiador Eric Hobsbawn: o aiatolá iniciou a mais completa tentativa de criação de um regime teocrático islâmico, governado por uma casta sacerdotal que implementaria uma sociedade corânica.

Embora sem dúvida um tal regime tenha levado a uma alta dose de fanatismo e apoio ao terrorismo internacional, é preciso reconhecer alguns avanços que Khomeini trouxe para o Irã, em relação à monarquia do xá. O Irã tornou-se um país quase democrático, onde há sufrágio universal para a eleição de todos os cargos políticos; o sistema educacional melhorou bastante; e embora tenha havido muitas restrições aos direitos das mulheres, nunca se chegou ao extremo do Talebã afegão, que as proibiu de estudar e trabalhar – no Irã, a maior parte dos estudantes de ensino superior e grande parte dos profissionais mais qualificados são mulheres. Minorias religiosas, como cristãos, judeus e até zoroastristas, têm direito a manter sua fé e até cadeiras reservadas no parlamento, para garantirem representação política. Por fim, há uma considerável liberdade de pensamento e de expressão, e uma imprensa razoavelmente livre de interferências estatais.

O grande problema do Irã é que existe uma esfera de poder acima da política, que é exatamente a teocrática. O aiatolá e um pequeno grupo de imãs, chamados "Guardiões da Revolução", detém o controle da política externa, das forças armadas, dos serviços de inteligência, do judiciário e da polícia. Tudo isso reduz bastante o poder político do executivo e do legislativo, eleitos pelo povo, deixando o mais importante nas mãos de sacerdotes não eleitos. Daí que se pode dizer que o Irã é um país dual, onde a democracia convive com a teocracia.

E a convivência desses dois tipos de regime não tem sido pacífica nos últimos anos: embora não tenha havido uma guerra civil, protestos da população pedindo reformas e a insatisfação contra o poder teocrático são muito comuns.

Isto é o mais curioso no caso iraniano: enquanto em vários países muçulmanos, inclusive nos democráticos (como a Turquia, por exemplo) grande parte da população clama por um regime teocrático, contrários à democracia tida como um produto ocidental decadente, é justamente no Irã, um dos modelos de regime teocrático, onde a população mais repudia tal forma de governo. Este é com certeza o país islâmico onde o povo está mais desejoso e preparado para a democracia, e a eleição do reformista Khatami em 1997, com mais de 80% dos votos, o prova.

Khatami é uma espécie de Gorbachev iraniano. Bem-educado e culto, ele tenta melhorar as relações de seu país com a Europa ocidental e os Estados Unidos, ao mesmo tempo em que, internamente, procura reformar um sistema que já não é mais apoiado pela população. Como o último líder soviético, Khatami também não deseja reformas radicais, eliminar por completo e subitamente a teocracia, mas ir mudando-a aos poucos, convencendo os próprios clérigos da necessidade de reformas.

Pode ser melhor fazer uma transição gradual, sem partir para uma revolução, algo que gera sempre grandes dificuldades, e muitas vezes até guerras civis. Mas como Gorbachev, Khatami corre o risco de liberar forças que ele não pode controlar: como aconteceu na URSS, a insatisfação popular pode aumentar, Khatami pode ser considerado um presidente fraco incapaz de realizar verdadeiras mudanças, e daí haver uma guerra aberta entre conservadores de um lado e revolucionários de outro. Ou, como aconteceu na URSS, surgir de última hora um oportunista que saiba manipular a opinião pública, mas seja completamente inepto, como Yeltsin.

A decisão do comitê Nobel de premiar a advogada iraniana Shirin Ebadi é sem dúvida uma tomada de posição em relação ao conflito entre conservadores teocráticos e reformistas laicos: estão querendo mostrar ao mundo e aos iranianos que esta renomada instituição apóia as reformas. Ebadi foi juíza nos tempos do xá, e removida de seu cargo quando da revolução de 1979, não só por ser mulher, mas principalmente porque no novo regime todos os juizes são necessariamente clérigos. Ela se engajou na luta por direitos humanos e das mulheres, e por maior democracia, e é uma das principais aliadas do presidente Khatami. Sem dúvida, os partidários deste receberam com alegria a nomeação, ao passo que os conservadores foram frios.

Enquanto os Estados Unidos ameaçam o Irã, considerando-o um dos países do "Eixo do Mal" e acusando-o de produzir armas nucleares e patrocinar o terrorismo, países como a Rússia, a França e a Alemanha, assim como o comitê Nobel, partiram para uma tática não apenas mais eficiente, como mais correta moralmente: negociam com Khatami e seu governo, procuram inserir o Irã na comunidade internacional, e apoiar a maioria da população que deseja reformas e mais democracia. No dia 21 deste mês, conseguiram convencer o Irã a assinar os protocolos que faltavam do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, eliminando completamente qualquer possibilidade de que o Irã venha a desenvolver armas atômicas. Não há necessidade de ameaças ao Irã: tudo indica que o país se encaminhará cada vez mais rumo à democracia, a tolerância e o laicismo, que o clero teocrático terá que aceitar, se não quiser perder toda legitimidade ou mergulhar o país numa guerra civil.

O presidente Khatami ainda tem um longo caminho pela frente, na consolidação da democracia e na realização de maiores reformas. De seu sucesso dependem não apenas o bem-estar da população iraniana, mas o avanço da democracia no mundo islâmico, onde esta ainda não é aceita por muitos. A melhor estratégia para os outros países ajudarem Khatami e os reformistas é apoiar seu governo e inseri-lo política e economicamente na comunidade internacional, da qual o Irã se encontra isolado desde 1979. Ameaças contra este país só irão aumentar a insatisfação de todos os muçulmanos e dar argumentos aos fundamentalistas, que identificam a democracia com a arrogância e o militarismo dos EUA.

O prêmio dado a Ebadi foi não só justo, mas também uma boa tática política. Seria ótimo se o próximo Nobel da paz fosse dado aos 27 pilotos da Força Aérea Israelense, que tiveram a coragem de desafiar o governo genocida de Ariel Sharon e denunciar publicamente os "assassinatos seletivos", que vitimaram centenas, talvez milhares, de civis palestinos. Se entre os israelenses e os palestinos houvessem mais pessoas como estes pilotos, sensatos e sinceramente preocupados com uma paz que não humilhe nem destrua o outro lado, este conflito seria bem mais fácil de ser resolvido. Carlo MOIANA Pravda.Ru MG Brasil

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