Manifesto defensivo e contraditório

A “Carta ao Povo Brasileiro”, assinada por 43 entidades – algumas representativas, outras de menor expressão e uma grande parte influenciada pelas direções nacionais do PT e do PCdoB –, derrapa numa contradição estrutural: apóia a apuração das denúncias que vêm sendo investigadas no Congresso Nacional e a punição dos que venham a ser identificados como responsáveis, mas quer preservar o governo Lula de qualquer enfraquecimento e instabilização. Os dois objetivos não podem ser alcançados ao mesmo tempo, como já indicou o afastamento do ex-ministro José Dirceu. Ou se privilegia a apuração das denúncias, reconhecendo que não existem, nos regimes democráticos e republicanos, autoridades inimputáveis; ou se destaca o apoio incondicional ao governo Lula, prejulgando as denúncias como vazias ou irrelevantes.

Dessa contradição básica decorrem todas as inconsistências que prejudicam o documento e sua tentativa de dar a volta por cima. Dá uma volta por baixo. Não existem, por exemplo, indícios de que a atual enxurrada de denúncias tenha brotado de articulações “golpistas”, ou de maquinações das “elites”, cujos interesses fundamentais tenham sido supostamente contrariados ou estejam sendo ameaçados pelo governo Lula. A crise atual nasceu de disputas por cargos e verbas na base do governo e de denúncias e represálias de aliados. Não surgiu de iniciativas da oposição de centro-direita, nem muito menos da oposição popular e de esquerda.

Foi o governo Lula, com os partidos que o integram e sustentam, que adubou sua própria crise, ao optar por políticas e contra-reformas de inspiração e cunho neoliberal, frustrando as esperanças da maioria da população e afastando-se do movimento popular e democrático-avançado; e ao costurar, para sustentar essas políticas e contra-reformas e a eventual reeleição do presidente, um arco de alianças que passou por setores de esquerda limitados e subalternos, se estendeu a setores de centro e chegou a setores da direita, tanto da direita “ideológica”, quanto da “fisiológica” – daquela que se formou desde o “Centrão” na Constituinte e na luta pela prorrogação do mandato do ex-presidente Sarney, em torno do bordão “é dando que se recebe”, que se ampliou nos governos Collor e Fernando Henrique e que, para espanto generalizado, ressurgiu e cresceu mais ainda no governo atual. Nas condições brasileiras, para enfrentar a resistência popular, o neoliberalismo se entrelaçou com o fisiologismo, tornando-se impossível combater um separado do outro.

Assim, para enfrentar a grave crise do governo social-liberal do presidente Lula, que continua se desenvolvendo e que pode converter-se numa crise institucional, os setores autenticamente de esquerda e as entidades populares e democráticas só têm uma saída, nesta ordem de importância, como os fatos estão assinalando: 1) preservar sua autonomia e revigorar sua democracia interna, para sintonizar-se com a indignação e a expectativa da maioria da população; 2) exigir, sem ressalvas e sem meias palavras, a apuração de todas as denúncias e a punição de todos os responsáveis, sejam de direita, de centro ou de esquerda; 3) aprofundar a luta pela ruptura com o projeto neoliberal em todas as suas dimensões – econômica e social, institucional e cultural, interna e externa –, mostrando que ele é a raiz do recrudescimento recente da corrupção administrativa e parlamentar; e 4) aglutinar forças em defesa da legalidade e das liberdades democráticas contra qualquer tentativa de golpe propriamente dito que venha a surgir à medida que o movimento popular e democrático-avançado voltar a manifestar-se e a exigir mudanças nas políticas e contra-reformas de inspiração e cunho neoliberal. Pois o neoliberalismo pode evoluir do fisiologismo para o golpismo.

Quanto ao governo Lula e aos partidos considerados de esquerda que o integram e apóiam, para recuperarem a credibilidade e a iniciativa e para se reaproximarem dos setores populares e democrático-avançados e da oposição de esquerda, precisariam ter a coragem de uma autocrítica séria, tanto dos objetivos quanto dos métodos que seguiram nesses dois anos e meio, assumindo, é claro, as conseqüências inevitáveis. Se persistirem nas táticas diversionistas, na falta de esclarecimentos satisfatórios, nas declarações altissonantes, na busca de alianças discutíveis e no aprofundamento do modelo capitalista neoliberal, como vem ocorrendo até agora, a crise política se aprofundará e propagará, fortalecendo as alternativas de direita mais puras e tradicionais.

Se isso acontecer, os setores de esquerda e as entidades populares e democráticas que preservarem sua independência e sua identidade e mantiverem sua coerência política e ética, é que estarão melhor posicionados para prosseguirem na luta contra a corrupção administrativa e parlamentar, pela ruptura com o projeto neoliberal e por políticas e reformas democratizadoras e socializantes.

Duarte Pereira jornalista

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