Brasil e Paraguai: 150 anos depois da guerra, ferida ainda aberta

Guerra do Paraguai deixou mais de meio milhão de pessoas mortas (Wikicommons)

Filipe Figueiredo | Opera Mundi

Conflito deixou legado de cerca de meio milhão de mortos, entre soldados e civis; paraguaios desejam reafirmar nacionalidade

Em dezembro de 2014, celebra-se o 150° aniversário do maior conflito armado da América do Sul, conhecido no Brasil como Guerra do Paraguai, travada entre 1864 e 1870. Também chamado de Guerra da Tríplice Aliança ou Ñorairõ Guazú (“Guerra Grande”, em guarani), o conflito deixou um legado de cerca de meio milhão de mortos, entre soldados e civis. Um número preciso jamais será obtido, mas as estimativas das mortes civis paraguaias flutuam entre 300 mil e um milhão; em números relativos, algo entre 40% e 90% de sua população. O clichê diz que deve-se estudar a história para compreender o presente. Cento e cinquenta anos depois, em uma América Latina em desenvolvimento, com o Cone Sul do continente em ritmo de integração, uma ferida permanece aberta, originada na guerra.

A relação do Paraguai com o Brasil possui duas facetas. O país possui a quarta maior fronteira terrestre com o Brasil, foco de intenso intercâmbio econômico. Na última década, o comércio bilateral cresceu cerca de 300%, chegando ao patamar de US$ 4 bilhões em 2013. As exportações brasileiras para o país quintuplicaram. Hoje, o Brasil exporta cerca de US$ 3 bilhões anuais para o Paraguai, e os investimentos estrangeiros diretos brasileiros estão em segundo no ranking de capital estrangeiro no país. Mesmo no desenvolvimento interno paraguaio, o Brasil representa elemento essencial. Ano passado, foi inaugurada a linha de transmissão que leva energia da usina de Itaipu à região de Assunção, financiada pelo Brasil por meio de projeto do Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (Focem).

A Usina de Itaipu é talvez o principal marco das relações entre Brasil e Paraguai pós-guerra. A normalização dessa relação se deu apenas na década de 1940; as décadas anteriores, embora de relação amistosa, foram marcadas por repetidas remarcações fronteiriças e negociações dos termos da paz de 1872. Em 1941, Getúlio Vargas realiza a primeira visita de um Chefe de Estado brasileiro ao Paraguai, perdoa o restante das dívidas de guerra e inicia o processo de devolução de documentos e troféus do conflito. Em 1965, a inauguração da Ponte da Amizade consolida essa relação pacífica que culmina, em 1973, com o Tratado de Itaipu, que estabelece a construção da hidrelétrica binacional. Em 1991, o Tratado de Assunção, capital paraguaia, estabelece o Mercosul com a expectativa de marcar um novo momento nas relações políticas do Cone Sul.

A outra faceta demonstra distensão e também como o conflito não foi totalmente superado. Em 1980, o general João Baptista Figueiredo, então presidente, continua o processo de devolução de documentos históricos e de troféus de guerra, incluindo a espada de Solano López, líder paraguaio de 1862 até sua morte na batalha de Cerro Corá, em 1870. A restauração de troféus e documentos históricos da guerra ao Paraguai é matéria extremamente sensível na população e na política paraguaia. Hoje, o último grande troféu da guerra e razão de disputa é o canhão El Cristiano. O antigo canhão paraguaio, capturado pelas forças brasileiras, hoje é tombado como patrimônio histórico brasileiro e está no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. Seu nome, traduzido como O Cristão, é explicado pela sua origem: suas doze toneladas de bronze vieram dos sinos das igrejas paraguaias.

Em 2009, o Paraguai consultou o Brasil sobre mais essa devolução de um objeto histórico da Guerra do Paraguai. O então presidente Lula encaminhou o tema ao Ministério da Cultura, mas o tema nunca avançou mais do que o suficiente para gerar polêmica e debate entre historiadores, militares e a sociedade. A importância da peça fica clara em declarações de políticos paraguaios. Em março de 2013, disse o então presidente do Paraguai, Federico Franco: "Não haverá paz nem entre os soldados nem entre a sociedade paraguaia enquanto não for recuperado o canhão Cristiano'", em ocasião de cerimônia que homenageia os paraguaios mortos na guerra. Federico Franco assumiu a presidência paraguaia após o atribulado processo de impeachment, ou deposição, de Fernando Lugo, em junho de 2012 - o que está diretamente ligado ao segundo aspecto da relação entre Paraguai e Brasil.

Com sua economia extremamente ligada, até codependente, ao Brasil, o Paraguai não possui uma postura de confiança ou aliança com Brasília. Em 2005, os valores pagos pelos brasileiros a Assunção pelo seu excedente de energia elétrica produzida em Itaipu foram renegociados de forma agressiva, com setores da sociedade paraguaia afirmando que o Brasil “passava a perna” no Paraguai. O país, especialmente seu legislativo conservador dominado pelo Partido Colorado, também condenou, e condena, a postura brasileira durante a crise institucional vivenciada pelo país em 2012, especialmente pelo fato do Paraguai ter sido suspenso do Mercosul por supostamente violar sua cláusula democrática; com a ausência de Assunção no processo, a Venezuela foi alçada ao posto de membro pleno do bloco.

O tema ainda é motivo de protestos paraguaios, embora tenha sido oficialmente resolvido em agosto de 2013, com um reunião os presidentes Horácio Cartes, eleito no Paraguai naquele mês, Nicolás Maduro, da Venezuela, e Dilma Rousseff; o encontro foi realizado à margem da Cúpula da Unasul. Somam-se aos dois episódios citados a disputa social interna ao Paraguai, entre paraguaios e “brasiguaios”, brasileiros que residem na região fronteiriça. A disputa por terras já deixou vítimas fatais. A mesma extensa fronteira terrestre que favorece o comércio está também diretamente relacionada ao tráfico de drogas e de contrabando na região, outro problema social que afeta as relações entre os dois países.

A sociedade paraguaia também se queixa do que classifica de intervenções brasileiras na política interna paraguaia. O presidente do Paraguai deposto em 1999, Raúl Cubas Grau, o general Lino Oviedo, implicado na mesma crise política, e o ditador Alfredo Stroessner, que governou o Paraguai por 35 anos, todos se exilaram no Brasil. A perspectiva alimentada no Paraguai, sobre o Brasil, independente de ser ou não razoável, é a de um império vizinho, que faz comércio e desenvolve, mas também explora e intervêm. A semente dessa perspectiva contemporânea foi plantada na década de 1860, quando da derrota e destruição do Paraguai após ter iniciado o último grande conflito da Bacia do Prata. A demanda paraguaia pelo canhão El Cristiano, antes de ser apoiada ou não, deve ser compreendida. O interesse do Paraguai não é pelo objeto ou pelo seu bronze, é por um símbolo que reafirme sua nacionalidade, ferida 150 anos atrás.

(*) Filipe Figueiredo é redator do Xadrez Verbal

Opera Mundi

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