por Fernando Soares Campos
Nas primeiras décadas do século 20, Freud despertou para um fato até então desconhecido, concluiu que a mente humana (o psiquismo), apesar de vir a ser um ente imaterial, portanto, intangível, apresenta uma formação sistematizada, equivalente aos equipamentos de um “aparelho” ou de instrumentos físicos. Nesse caso, constituído basicamente pelos seguintes elementos estruturais: consciente, pré-consciente e inconsciente. Essa primeira divisão foi denominada Primeira Tópica. Aqui o emprego da palavra “tópica”, de origem grega (topikós), refere-se a “lugar”. No nosso vernáculo, trata-se de palavra derivada de “topografia”, empregada no sentido de especificar e descrever determinado lugar em certo espaço, seja real (concreto), subjetivo (abstrato, existente apenas na mente, imaginado), ou virtual (eletronicamente simulado).
As partes correspondentes ao consciente e ao pré-consciente interagem permanentemente. São instâncias psíquicas que atuam juntas, de forma simbiótica, enquanto o indivíduo, acreditando que estaria assimilando uma realidade “coletiva” em tempo real, age de forma que pode gerar eventos memoráveis ou, pelo contrário, acontecimentos tidos como indignos, recalcáveis, cujos esforços para mantê-los afastados da dimensão “consciente” exigem o emprego de muita energia psíquica para afastar lembranças indesejáveis que insistentemente se fazem presentes na área dimensionada como consciente, provocando angustiante sensação de que aquilo está se realizando novamente, naquele exato momento da recordação.
O Inconsciente, segundo Freud
Já ouvi alguém dizer que, no setting analítico, o Inconsciente está para o analista assim como a caixa-preta de uma aeronave está para a equipe técnica que investiga as causas de determinado acidente aéreo. O inconsciente, nesse caso, viria a ser a caixa-preta do indivíduo (o “avião acidentado”) que busca conhecer as causas do acidente, para, a partir daí, evitar a ocorrência de acidentes ainda mais graves. Nos livros “A Interpretação dos sonhos” (1899) e “Psicopatologia da vida cotidiana” (1901), Freud aborda questões referentes ao inconsciente, suas estruturas, funções e mecanismos operacionais. O inconsciente representa a maior parte do nosso aparelho psíquico. Nele registramos cada instante de nossas vivências, considerando-se as experiências pessoais, conhecimentos, prática, habilidades, saber etc.
O inconsciente funciona como um sistema autônomo, com as suas próprias regras e hábitos. Por intermédio do inconsciente, manifestamos os fenômenos psíquicos tidos como “pulsões”, sejam ânsias, ousadias, desejos, proezas, furores, rompantes, entre outros comportamentos expressos em forma de tristeza, euforia, preocupação, nojo, medo, desejo, surpresa ou raiva. Trata-se de um sistema que avalia os conteúdos psíquicos interditados ao consciente. Entretanto, atos falhos e lapsos de memória são descuidos, expressões e manifestações acidentais cujas ocorrências podem ser atribuídas a certa desatenção dos nossos mecanismos de defesa.
Para conseguirmos fazer com que, em dado momento, determinado conteúdo reprimido no inconsciente torne-se acessível à consciência, faz-se necessário censurar alguns outros conteúdos ou modificar a forma como os expressamos. Quer dizer, precisamos aparar arestas, minimizando a gravidade daquilo que nos parece indecoroso. Geralmente censuramo-nos, ou buscamos justificativa para aquele ato, a fim de que, com isso, possamos expressar aquela questão que consideramos de maior gravidade. Através de expressões amenas, buscando elaborar uma narrativa eufemística, em que fica implícito que cometemos determinado erro pelo fato de que este teria ocorrido em vista de certo descuido de nossa parte ou devido a influências externas. Também tentamos justificar nossos erros considerando que, à época dos acontecimentos, éramos ainda muito imaturos.
A derrota do Superego no embate ideológico com o Id
“Michel Foucault, em seu texto "A história da Loucura", aponta que a loucura (posteriormente identificada com a psicose) poderia ser entendida como uma aberração da conduta em relação aos padrões ou valores dominantes numa certa sociedade.” (Providello & Yasui: “A Loucura em Foucault” – Curso de Psicanálise Clínica – IBPC - Mód. VI).
Acredito que o conflito ideológico entre os conteúdos morais propostos pelo Superego, em sinal de advertência contra os incentivos amorais e mesmo aquilo que é considerado imoral, procedentes do Id, podem, em alguns casos e por motivos diversos, gerar avultado desequilíbrio na estrutura psíquica do sujeito. Dessa forma, o Ego (a consciência, o Eu formador e norteador da personalidade do indivíduo) corre o risco de tornar-se debilitado, extremamente inseguro, incapaz de exercer benéfica influência através de imediatos “sentimentos argumentativos”, como, por exemplo, o medo, seja real ou imaginário; ou simplesmente adotar uma postura prudente, o suficiente para evitar a exposição daquilo que possa ser entendido como fonte de erro e que venha gerar danos pessoais a si ou a outrem. Se tais manifestações ganhassem status daquilo que denominam “inteligência emocional” ou “moral” (ética), tais demonstrações tomariam imediatas formas de respostas do Ego, mesmo que se manifestassem apenas por intuição. Tal condição seria suficiente para superar um conflito, mesmo quando está propenso a sucumbir aos apelos do corruptor ideológico, o Id, a instância psíquica que estimula o Ego a atender nossos instintos e pulsões em busca de satisfação ilimitada, culto ao prazer desregrado, em que são geradas sintomáticas síndromes em forma de angustiantes abalos morais.
O conflito entre os estímulos impulsivos do Id e as advertências do Superego podem, por exemplo, originar-se através da incidência de prováveis impulsos sexuais intensos, potentes, descomedidos, do tipo que provoca rigidez peniana sob a intenção de praticar perversão sexual antes recalcadas e, agora, sugeridas pelas energias do invasivo Id. Assim, é possível que o Ego se revele incapaz de se proteger com argumentos lógicos, socialmente corretos, de forma que tal reflexão possa ajudar o elemento a superar o conflito e, dessa forma, evitar manifestação de ansiedade neurótica. Nesse caso, se o sujeito não conta com apoio emocional e moral para evitar o ato pretendido, é aconselhável que busque outras fontes de inspiração, tente, com o auxílio da imaginação, imbuir-se de fantasiosa e habitual inspiração, utilizando-se de modelos socialmente aceitáveis, mesmo que censurados por significante parcela conservadora dessa mesma sociedade.
Caso o indivíduo não empregue defesas contra aquilo cuja prática ainda é considerada simplesmente censurável por parte de pessoas conservadoras, ou mesmo condenável nos termos das legislações criminais vigentes, e decida cometer algum ato que possa vir a envergonhá-lo, esse elemento sujeita-se a desenvolver um quadro de grave transtorno mental, a caminho de um comportamento psicótico, o que se configuraria como uma derrota do Superego no embate ideológico com o Id.
A Confissão na Igreja Católica
“É impossível enfrentar a realidade, o tempo todo, sem nenhum mecanismo de fuga.” (Sigmund Freud)
Conforme a doutrina católica, a confissão dos pecados é um sacramento instituído por Jesus Cristo, tendo por objetivo beneficiar o confessante com a Graça Divina, que, para os católicos, vem a ser o perdão pelo cometimento de pecado.
A confissão católica é também conhecida como Sacramento da Reconciliação. Tal concepção fundamenta-se na passagem evangélica segundo São João, 20:22-23, através de que se recomenda o seguinte procedimento: “Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem vocês perdoarem os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos”.
A Igreja Católica, fundamentando-se no Novo Testamento, que vem a ser a segunda parte da Bíblia Cristã, conjunto de livros em que se apresentam os ensinamentos e a pessoa de Jesus, concedeu a si própria o “poder divino” de absolver qualquer de seus fiéis seguidores de suposta infração moral. Padres, bispos e até mesmo o Papa se confessam, atendendo ao seguinte ensinamento evangélico: “Confessai os vossos pecados uns aos outros” (Tiago 5:16). Enquanto isso, o psicanalista se entrega à análise e supervisão de outro psicanalista.
A fundamentação para que se justifique tal prerrogativa da Igreja Católica, a que autoriza seus clérigos a atuarem na condição de pontífice, seria o exposto em Mateus 18:18: “Em verdade vos digo: tudo o que ligardes sobre a terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes sobre a terra será também desligado no céu”. Tal preceito cristão evoca um dos tópicos registrados na Tábua de Esmeralda, escritos atribuídos a Hermes Trismegisto, mítico personagem que teria vivido no Antigo Egito por volta de 1300 a.C. Trismegisto teria registrado o seguinte princípio: “Lei da Correspondência: O que está em cima é como o que está embaixo. O que está dentro é como o que está fora". Mais adiante, o suposto autor praticamente ratifica esta lei, determinando: “Sobe da terra para o Céu e desce novamente à Terra e recolhe a força das coisas superiores e inferiores”.
No confessionário
Para fazer uma boa confissão, o confessante deve atender a determinadas condições:
a) Realizar um honesto exame de consciência diante do confessor;
b) Demonstrar-se sinceramente arrependido pelo cometimento do pecado;
c) Ter firme propósito de não reincidir naqueles erros, esforçando-se para mudar de comportamento e se converter, atendendo às orientações do Evangelho Cristão;
d) Fazer uma confissão objetiva, com clareza suficiente para que o sacerdote avalie a gravidade do ato confessado; e
e) O confessante deve cumprir, rigorosamente, determinada penitência prescrita pelo confessor; trata-se de simbólica expiação e, com ela, o consequente perdão pelos pecados cometidos.
De início, o confessante deve expor os seus pecados, indo direto aos relatos de suas insistentes reincidências, aquelas faltas que parecem ter-se tornado práticas corriqueiras, priorizando o relato da execução dos feitos mais “graves” (mortais). Em seguida, trata dos pecados mais “leves” (venais).
Quando o confessante, inadvertidamente, fala de algum pecado alheio, sem que ele próprio tivesse qualquer participação direta ou indireta no cometimento daquele ato, fazendo tal acusação com um claro propósito de desviar a atenção sobre os seus próprios malfeitos, projetando-os sobre outro membro daquela comunidade religiosa; em casos dessa natureza, o sacerdote confessor chama a atenção do confessante, fazendo-o concentrar-se em seu próprio comportamento.
Insensibilidade
De acordo com a Doutrina Católica, não sentir peso na consciência (remorso) não significa que tal pessoa não tenha cometido pecado. Para a Igreja Católica, aquele que não se arrepende de seus pecados nem sente qualquer abalo moral pelo seu cometimento revela-se um indivíduo morbidamente insensível, uma consciência pétrea, desprovida de pensamentos, ideias e conceitos evangelizantes, um ser extremamente apático.
Certamente, o sentimento de culpa e consequente arrependimento, seguidos de angustiante sensação de mal-estar, podem ser atribuídos ao cometimento de grave infração moral, aquilo que, de acordo com os ditames doutrinários católicos, é considerado “pecado mortal”.
Por que confessar nossas faltas a alguém tão humano quanto nós mesmos? Não seria mais prático e certamente mais proveitoso confessá-las, em reclusão, diretamente a Deus, falando a partir de nossa própria consciência para si mesma?
Para o religioso católico, a confissão teria o poder de nos redimir de nossos pecados, mesmo aqueles que possamos ter esquecido que os cometemos ou que não os consideremos atos pecaminosos.
O cumprimento da penitência estabelecida pelo confessor viria a ser a consagração do processo expiatório, que proporcionaria tranquilidade de consciência e consequente conforto espiritual. Além disso, aumentaria nossos méritos e créditos frente às exigências, normas e padrões estabelecidos pelo Espírito Santo (o Superego). Diminuiria a influência do demônio (o Id) em nossas vidas. A penitência tem o propósito de fazer o confessante (o Ego) criar gosto pelas coisas do Altíssimo, exercitando-se para exercer autocontrole e praticar virtudes em geral, buscando a evolução espiritual.
Eu, Pecador
Ainda na minha infância, por volta dos cinco anos de idade, me foi ensinada a oração católica “Eu, pecador”. Esta era uma das orações que, eventualmente, ou seja, dependendo das travessuras cometidas durante o dia, eu deveria proferir, ajoelhado ao lado da cama, na hora de dormir.
Oração Eu, Pecador, versão dos tempos da minha infância:
“Eu, pecador, me confesso a Deus todo poderoso, à bem-aventurada sempre Virgem Maria, ao bem-aventurado São Miguel Arcanjo, ao bem-aventurado São João Batista, aos santos apóstolos São Pedro e São Paulo, a todos os santos e a vós, padre, porque pequei muitas vezes por pensamentos, palavras e obras, por minha culpa (batendo no peito), minha culpa (segunda batida no peito), minha máxima culpa (a terceira batida no peito deveria ser a mais forte). Portanto, peço e rogo à bem-aventurada sempre Virgem Maria, ao bem-aventurado São Miguel Arcanjo, ao bem-aventurado São João Batista, aos santos apóstolos São Pedro e São Paulo, a todos os Santos e a vós, padre, que rogueis por mim a Deus, Nosso Senhor. Amém!”
No desenvolvimento de minha infância até a pré-adolescência, o Eu, Pecador, era, para mim, uma oração infinita, inconclusiva. Tal questão se deve ao fato de que eu, ao assumir tão contundente sentimento de auto culpabilização, não conseguia concluir aquela reza, pois, ao final da segunda passagem de súplica aos bem-aventurados, “e a vós, padre”, eu retomava a prece em “porque pequei muitas vezes por pensamentos, palavras e obras, por minha culpa...”, e haja pancada no peito. Ficava fechado nesse circuito, voltando sempre ao mesmo ponto, sem conseguir concluir a oração. Durante muitos anos desta minha existência, aquilo me angustiou. Hoje, já nem tanto.
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Fernando Soares Campos é escritor, autor, em parceria com o seu irmão Sérgio Soares de Campos, de obra biográfica, retratando a vida de “Adeildo Nepomuceno Marques: um carismático líder sertanejo”; atualmente, aos 74 anos, cursando Psicanálise Clínica (via modalidade EaD em ambiente virtual), pelo - IBPC - Instituto Brasileiro de Psicanálise Clínica - Campinas (SP).
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