Aborto, eutanásia e os interesses religiosos

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Adilson Roberto Gonçalves

A descriminalização do aborto (corretamente assim descrita, e não como “legalização”) voltou à discussão com novas abordagens, em função da proteção do sigilo médico envolvido quando da suposta obrigação de um profissional da saúde comunicar a autoridades quando for realizado um procedimento de interrupção da gravidez. Parece uma filigrana, mas é um novo elemento para evidenciar a situação de mulheres vulneráveis que envolve a quebra do sigilo profissional. Fosse um advogado o primeiro a recepcionar a moça, com certeza não teria sido dado aquele desfecho, pois ele saberia como salvaguardar os direitos. Vemos que, ainda que tenha havido derrota para os conservadores, a luta pela “estatização do útero” continua forte. Há avanços no entendimento da população para necessidade de descriminalizar o aborto (não legalizar, repito, como costumam deturpar o pleito), tratando-o como questão de saúde pública e direito da mulher, mas os porcentuais de apoio ainda dão alento a retrocessos.

Eutanásia

No caso da eutanásia, foi um colunista da área esportivo que deu o tom da discussão. Juca Kfouri expressou a dor de muitos em seu artigo “É hora de falar de eutanásia” (Folha de S. Paulo, 5/7) em que relata a dificuldade de um familiar conseguir tal direito. A proibição da eutanásia sem qualquer exceção é um misto de hipocrisia e egoísmo dos que não permitem uma morte digna a quem dela necessita. Quando um religioso diz que não se pode interferir nos desígnios da vida, omite que sem aqueles tubos, medicamentos e equipamentos o doente estaria morto. Com Parlamento retrógrado e sociedade inerte, há pouca chance da questão prosperar no Brasil, mas com o emocionado e sincero texto de uma pessoa importante talvez algo aconteça.

Se o Parlamento brasileiro não enfrenta tais questões, é no Supremo Tribunal Federal que elas chegam. Para tanto, houve a publicação de um arrazoado de decisões na forma de compilado para fundamentar as decisões. A obra do STF soa como uma tentativa de dar jurisprudência àquilo que se revela muito personalista: a decisão do magistrado. Não sabemos se a iniciativa é de todo o colegiado, mas há muita divergência em assuntos já consolidados. Por outro lado, o direito é dinâmico e precisa haver instrumentos eficazes de atualização da forma como a sociedade entende a si própria.

Laicidade do Estado

Isso porque estamos longe de uma laicidade do Estado. Pelo contrário, são os princípios religiosos que impedem uma discussão séria de aborto e eutanásia. Recentemente no jornal Folha de S. Paulo (22/5), para além do inusitado uso de exemplos estrangeiros para falar de liberdade religiosa em nosso país, Valéria Cristina Vilhena beirou o sofisma ao tentar atrelar ateus a uma suposta falta de respeito a tal preceito constitucional, afirmando que “laico não é ateu”. A questão muçulmana retratada por ela aqui tem abrangência menor do que na Europa, mas deve ficar registrado que a intolerância religiosa contra manifestações de crenças de matriz africana em nosso país é protagonizada por cristãos, não por ateus. E vamos avaliar o quanto de fisiologismo partidário, negacionismo científico e avanço da extrema direita estão associados à ascensão dos evangélicos ao poder.

 

 

Adilson Roberto Gonçalves, pesquisador da Unesp, membro da Academia Campineira de Letras e Artes, da Academia de Letras de Lorena, do Instituto de Estudos Valeparaibanos e do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas.

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