No dia da língua espanhola o que devemos comemorar?

Por Amyra El Khalili especial para Pravda.ru e Rádio Cairo Internacional.

A dia 12 de outubro é comemorado pela comunidade falante da língua espanhola como “O Dia da língua espanhola”. A data coincide com o aniversário da descoberta da América por Cristóvão Colombo, em 1492.

No entanto, essa data é polêmica e questionável, uma que vez que se trata da colonização por europeus cristãos de povos nativos.

Há movimentos críticos a essa coincidência de datas, já que muitos consideram que “não há nada para se comemorar”.

Para discutir e aclarar as ideias sobre a influência e contribuição da cultura árabe e suas interações com os povos nativos do continente latino-americano e caribenho, bem como sobre a importância da língua espanhola e seu alcance e contribuição linguística na emancipação de povos e nações, a “Rádio Cairo Internacional”, por Mohamed Abd Elkamel, teve a honra de produzir este programa especial com as entrevistas dos historiadores Beatriz Bissio e Ahmad Schabib Hany.

Beatriz Bissio é Professora Associada do Departamento de Ciência Politica e do Programa de Pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro e também foi diretora da revista Cadernos do Terceiro Mundo.

Ahmad Schabib Hany é licenciado em História pela Universidade Católica Dom Bosco  e Mestrando em Comunicação na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Foi professor do curso de História da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e redator do "Diário de Corumbá".

Eis as entrevistas apresentadas por Amyra El Khalili, do Brasil e Domingo Antonio Acevedo, da República Dominicana.

Com a palavra, Beatriz Bissio:

A Assembleia Geral das Nações Unidas estabeleceu o dia 12 de outubro como o Dia da Língua Espanhola.  A iniciativa busca apoiar o desenvolvimento do multilinguismo e do multiculturalismo. E também manter a igualdade dos seis idiomas oficiais da organização: árabe, chinês, inglês, francês, russo, espanhol e francês – já que a Organização das Nações Unidas também definiu dias de celebração de cada um desses idiomas.

Em comemoração a essa data hoje vou falar um pouco sobre a língua espanhola, suas origens e sua presença no mundo, convidada por Mohamed Abd ElKamel e Amyra El Khalil da Rádio Cairo.

Meu nome é Beatriz Bissio, nasci em Montevidéu, no Uruguai, mas vivo no Brasil desde os anos 80 e tenho dupla nacionalidade. Durante muitos anos me dediquei ao jornalismo, em particular ao projeto da revista Cadernos do Terceiro Mundo, que circulou de 1974 a 2005 em espanhol, português e até mesmo em inglês, por um breve período. Fiz parte da equipe fundadora da revista; mais tarde fui a editora e depois a diretora da mesma.

Atualmente sou Vice-Diretora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, IFCS, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Professora do Departamento de Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da mesma universidade. E coordeno o Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre África, Ásia e as Relações Sul-Sul, também no IFCS/UFRJ.

A língua espanhola

O espanhol é definido pelos estudiosos como uma das "línguas românicas", ou seja, uma das línguas derivadas do latim vulgar. O português, o francês, o italiano, o catalão e o francês também se enquadram nesta categoria. A própria língua espanhola teria surgido durante os primeiros séculos do longo período que a historiografia chama de "Reconquista" - uma palavra hoje em dia bastante questionada. Em outras palavras, o espanhol teria sido forjado a partir do mosaico linguístico falado pelos cristãos na Península Ibérica entre os séculos VIII e X, quando os reinos cristãos se uniram para enfrentar os que chamavam de "mouros", os árabes e os berberes que dominaram praticamente todo aquele território a partir do século VIII. Naquela época não existia a "Espanha", pois a unificação desses reinos ocorreria séculos depois.  

Atualmente o espanhol é a língua nativa de mais de 460 milhões de pessoas e, como segunda língua, é falado em todos os continentes. De acordo com Melync Resnick e Robert Hammond em seu livro "Historia de la Lengua Española", é a quarta língua mais falada depois do Chinês-Mandarim, Inglês e Hindi.  Como língua estrangeira, é também amplamente estudada.

Nas Américas, o espanhol é o idioma oficial na maioria dos países

Na América do Norte, é a língua oficial do México e a segunda língua mais usada nos Estados Unidos, além de ser falada por cerca de 250.000 pessoas no Canadá.

Na América Central, é o idioma oficial de todos os países exceto Belize (onde o inglês é o idioma oficial, mas o espanhol é amplamente utilizado). Nas ilhas do Caribe, é a língua oficial de Cuba e da República Dominicana, e a mais falada em Porto Rico, onde é a língua co-oficial com o inglês.

Na América do Sul é o idioma oficial da Argentina, Bolívia, Colômbia, Chile, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. Apenas quatro países não têm o espanhol como língua oficial, Brasil (português), Guiana (inglês), Suriname (holandês) e Guiana Francesa (francês). Mas no Brasil, por exemplo, há mais de um milhão de falantes de espanhol e muitos milhões estudam o espanhol como meio de comunicação com seus vizinhos.

Na África, o espanhol é a língua oficial da Guiné Equatorial, país colonizado pela Espanha desde o início do século XX até 1968, quando proclamou sua independência. No norte da África, Marrocos tem mais de 200.000 falantes nativos de espanhol e cerca de 300.000 pessoas têm algum conhecimento dessa língua. O protetorado criado pela Espanha no sul do Marrocos, o Saara espanhol, foi abandonado pela metrópole em 1976. Desde então, o Saara Ocidental tem sido um território em disputa, sem governo reconhecido pelas Nações Unidas, mas no qual o espanhol é a segunda língua, depois do árabe. Na costa mediterrânea, Ceuta e Melilla são enclaves da Espanha, onde a língua oficial é o espanhol, como é o caso das Ilhas Canárias. Este arquipélago - uma região autônoma da Espanha, localizada a uns 100 km do continente africano - desempenhou um papel de destaque na conquista e domínio do chamado "novo continente", pois fica no meio do Oceano Atlântico, a meio caminho entre a Espanha e a América.

Na Ásia e Oceania, o espanhol também é falado, por exemplo em certas comunidades que vivem na Turquia, em Taiwan (que foi colônia espanhola no século XVII) e nas Filipinas (colônia espanhola até 1898).

É interessante ressaltar que o espanhol teve influências de vários outros idiomas, e mais particularmente do árabe. Considera-se que pelo menos cinco mil palavras espanholas têm origem árabe. O mesmo aconteceu com o português, idioma no qual há pelos menos umas mil palavras de origem árabes, como café, arroz, algodão, girafa, divã, berinjela, acelga, alfazema, javali, azul, álgebra, alfaiate, alambique, azeitona, damasco, tamarindo, limão.

Em relação à integração entre o espanhol e o português na América do Sul, posso comentar, como uruguaia e brasileira, que as regiões fronteiriças do Brasil com os países vizinhos de língua espanhola já falam "portuñol" ...Uma verdadeira integração linguistica.

Revista Cadernos do Terceiro Mundo*

A respeito da recepção da comunidade árabe à cobertura jornalística da revista Cadernos do Terceiro Mundo, posso dizer que muitos membros dessa comunidade eram assinantes da revista e que a nossa equipe editorial estava sempre muito próxima a eles; recebemos inclusive muitos convites para dar palestras sobre nossa cobertura do mundo árabe.

Durante décadas, membros da nossa equipe latino-americana cobriram a temática do mundo árabe em longas jornadas na região. E também publicávamos artigos de colaboradores do Oriente Médio e Norte da África, dando especial destaque à questão palestina. Eu entrevistei pessoalmente Yasser Arafat três vezes, juntamente com o diretor da revista, Neiva Moreira. Estivemos com Arafat no Líbano, na Argélia, durante a reunião do Parlamento Palestino no exílio em 1988, e na Tunísia. Também entrevistamos líderes palestinos dos territórios ocupados, poetas como Mahmoud Darwish, ou seja, Cadernos do Terceiro Mundo foi a única publicação latino-americana daquelas décadas que mostrou nas suas páginas a perspectiva árabe dos temas relativos à região, não a visão das agências de notícias dos países centrais.

Resta-me apenas agradecer o convite para compartilhar com vocês estas reflexões sobre a importância da língua espanhola e felicitar a equipe do programa brasileiro da Rádio Cairo! O programa tornou-se sem dúvida uma valiosa ponte para o intercâmbio de informações entre nossos povos irmãos. Muito obrigado por esta maravilhosa oportunidade de falar aos ouvintes no Cairo. 

*Fundada em 2011 por jornalistas, intelectuais e ativistas, a Diálogos do Sul é uma revista blilíngue, que nasce como herdeira da Revista Cadernos do Terceiro Mundo.

Com a palavra, Ahmad Schabib Hany:

Aos ouvintes da Rádio Cairo meus agradecimentos. Meu nome é Ahmad Schabib Hany.

Sou egresso do curso de História, a que me dedico simultaneamente com o Jornalismo desde a década de 1980. Atualmente realizo pesquisa entre o Jornalismo e a História no Mestrado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, no Brasil.

Em 12 de outubro de cada ano a comunidade hispanófona celebra o dia internacional do espanhol, considerado um dos idiomas mais falados no mundo.

A data nos remete ao início da colonização castelhana no território do continente mais tarde chamado de América. O espanhol, antes chamado castelhano, provém dos reinos católicos (Castela e Aragão) que sucederam à histórica presença árabe, de 800 anos, na Península Ibérica.

Isabel de Castela e Fernão de Aragão, primeiros reis católicos do território que hoje corresponde à Espanha, decidiram-se pela expansão de seus domínios pelo mundo entre o final das últimas Cruzadas (na verdade a Tomada de Constantinopla na metade do século XVI), o chamado Renascimento Ocidental (quando cessa o obscurantismo medieval e o temor pelo conhecimento, imposto pela feroz opressão religiosa na Europa e os reinos feudais) e a expansão do mercantilismo, base do capitalismo, que fez da Europa o centro do mundo.

A presença árabe na Península Ibérica (sobretudo no território que hoje corresponde à Espanha, de 800 anos), entre os séculos VIII e XV (de 711 a 1492), deu importantes contribuições a todo o Ocidente: ciências naturais, arquitetura, matemática, medicina, anatomia, química, física, história, literatura, geometria, astronomia, navegação, cartografia, geografia, jurisprudência, direito, linguística, filosofia, gastronomia (culinária), urbanismo e, ademais, aos idiomas neolatinos, que contêm etimologicamente ao redor de 30 por cento de suas palavras de origem árabe: açúcar, arroz, azeite, algodão, armazém, algibre, zênite, nadir, álgebra, algaroba, alfaiate, alfazema, zero, cifra etc.

Além disso, e no caso, o mais importante neste tema: a sistematização do castelhano (ou espanhol) e de sua própria gramática foi inspirada na gramática árabe. Os autores pioneiros a escrever em castelhano, como Miguel de Cervantes y Saavedra (célebre autor de “Dom Quixote da Mancha”), foram os primeiros a adotar a morfologia e a sintaxe árabe no castelhano.

Lamentavelmente, poucos são os pesquisadores contemporâneos que se dedicam a estudar e publicar estes dados, sobretudo a partir do pós-guerra de 1945 (quando o sionismo se encarregou de apagar da historia todo o imenso legado árabe, que, como em bandeja de ouro, ofereceu a toda a humanidade o legado cultural da Idade Antiga Clássica, em especial dos sábios gregos e latinos e toda a sua sabedoria: lógica, geometria, anatomia, história, geografia, astronomia, física, química e estudos da natureza).

Ao contrário da caricatura sobre a importante civilização árabe feita pelo Ocidente na segunda metade do século XX, o legado árabe (e muçulmano) é tão expressivo que, no Renascimento Ocidental, Espanha e Portugal foram os reinos que iniciaram as grandes navegações graças ao volume de conhecimento deixado pelos árabes durante os séculos de sua presença nesses territórios.

Finalmente, em 800 anos de ocupação (não ‘colonização’), os árabes não impuseram seu idioma nem sua religião, ao contrário, contribuíram para a formação sólida e consistente das ciências e da cultura. Enquanto portugueses e espanhóis em todos os lugares conquistados (América, Ásia e África) impuseram sua religião e seu idioma a ferro e fogo.

A História nos comprova tudo isto com exemplos eloquentes: Qual é a ex-colônia hispânica que não fala espanhol e não tem o catolicismo como religião majoritária? Não há nenhuma, a não ser que haja sido colonizada posteriormente pelo Reino Unido, França ou Estados Unidos.

Por sua vez, quem foram os célebres sábios Ibn Sina (Avicenas), Ibn Roshd (Averrois), Omar Khayam (Omar Caiam), Al-Ghazali (Algazel) e Jabir Ibn Hayan (Geber)? Exemplo de respeito à diversidade cultural e referência no que se conhece como tolerância às idiossincrasias, graças aos árabes foi possível, durante o Renascimento Ocidental, resgatar todo o legado da Idade Antiga Clássica, de cuja existência os árabes foram protetores e difusores para a humanidade.

Conhecer a História Árabe e seu importante legado cultural é fundamental para se ter uma base sólida da História Universal. Os renomados estudiosos Arnold J. Toynbee e Edward Said são imprescindíveis para se iniciar nesses estudos. O primeiro é um clássico da História Universal, ou Geral, e o segundo é um brilhante crítico do Orientalismo ocidental. Ambos são uma importante referência em qualquer estudo nessa direção. Conhecer um pouco sobre os árabes é conhecer as bases do castelhano e da História da Península Ibérica e, por extensão, da própria humanidade.

Agradeço aos ouvintes, à equipe da Rádio Cairo e em especial ao Mohamed Abd Elkamel e à Amyra El Khalili pela oportunidade desta integração entre povos e nações.

 

* Ouça Beatriz Bissio e Ahmad Schabib Hany:

Em espanhol: https://www.youtube.com/watch?v=9Cv28seb3fo

Em português: https://www.youtube.com/watch?v=_FzyJaEm4yE

 

 

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Author`s name Amyra El Khalili
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