A conversão de Santiago

"Hoje em dia qualquer elemento

pode autodenominar-se 'bispo'

e fica por isso mesmo.

Como bispo? Quem sagrou?

Com que legitimidade?"

(Fritz Utzeri — OPASQUIM21, Nº 16)

por Fernando Soares Campos(*)

Santiago não estava simplesmente duro, ele era a própria dureza personificada. Naquele dia havia chegado ao fundo do poço, não tinha sequer um centavo para a sua fezinha diária no bicho. Liso, micho, no perrengue, há mais de uma semana... Há um mês... dois... três ou quatro, talvez. Para ser mais "preciso", já fazia mais ou menos certo tempo que ele não tinha um relacionamento, digamos, mais íntimo com o vil metal. Eu disse “vil”? Disse-o mal, pois Santiago nunca entendeu como uma coisa tão digna, tão nobre, tão pudica, tão decente, tão generosa, enfim, tão cheia de significantes méritos, fosse classificada como vil. “Coisa de comunista!” — sempre achou.


Era um homem de limitados dotes intelectuais, mas nem por isso se podia afirmar que se tratava de uma toupeira. Talvez lhe tenha faltado oportunidade para revelar-se naturalmente, para expressar seus verdadeiros talentos e conquistar um proveitoso sucesso. Ou não percebeu as mais legítimas chances que se fizeram presentes em dados momentos de sua insulsa existência. Eu disse “insulsa”? Bem, acho que isso ainda vai soar como um verdadeiro insulto.


Apesar da dureza, Santiago trabalhava... Quer dizer, Santiago trabalhava, por isso mesmo, a dureza. É isso, porque ele mesmo vivia repetindo o clichê: “Quem trabalha não tem tempo pra ganhar dinheiro”.


Aquela pindaíba crônica, um miserê que se arrastava há anos, parecia maldição de mandinga, coisa de encosto mandado.

 

Denise, sua mulher, garantia que aquilo não passava de olho grande, pra lá de dilatado, secando o seu marido.


Dona Arlete, vizinha, conselheira e confidente (portanto mais que parente) de Denise, há muito tempo insistia para que a amiga convencesse o marido a participar de um culto, ao menos um, da Igreja da Bênção Divina, na qual elas eram fidelíssimas confreiras — laço que, em definitivo, as tornava verdadeiras irmãs.


Denise tanto insistiu que acabou por convencer o marido cético.


— Só vou pra te provar que onde tem pastor tem pasto, e onde tem pasto... tem burro! — Santiago achava o máximo esse trocadilho infame. Ria a gargalhadas quando o expressava.

 

— Deixe de blasfêmia, homem! Não fale mal do que você não conhece.

 

— Ah, é?! E quando você manda suas pragas pra cima dos meus amigos, hein?! Você pragueja até os que nunca viu. Pimenta nos olhos dos outros é refresco, né?

 

— Você há de concordar que tem muita diferença entre falar de pessoas purificadas, de um povo abençoado ou, pelo contrário, falar de gente pecaminosa, afundada no vício, como esses perdidos que andam com você. — Denise pegou a Bíblia que mantinha de prontidão sobre a mesa e a abriu dizendo: — O Salmo...


— Não! — Santiago cortou de pronto a pregação da mulher. — Já disse que vou lá na igreja de vocês, não precisa torturar. — Ele já não suportava mais ouvir citações bíblicas: capítulos, versículos, parábolas, profecias, milagres; tudo aquilo era badalado diariamente, numa repetição enfadonha. — Dei minha palavra e vou cumprir. Eu vou, vou sim. Quero conhecer esse tal pastor...


— Bispo! — corrigiu a mulher. — Bis-po! — desta vez com o indicador em riste. — E só se diz “esse tal” quando se fala de gente da laia dos que andam com você.


— Que seja! mas não precisa pregar. Eu vou conhecer o bispo... Everaldo.


— Everardo.


— Tá bem! Tá bem! A gente não vai criar caso só por causa de um erre ou de um elezinho insignificante, vai?


Marcaram para a próxima quarta-feira, segundo elas, dia de Bênçãos da Prosperidade.


No dia combinado, lá se foi Santiago acompanhando as fervorosas obreiras — ambas prestavam serviço assistencial aos fiéis durante o culto, supostamente os protegendo com uma imaginária infusão de energia, aplicada pela imposição das mãos, e proferindo jaculatórias, em geral de cunho pretensamente exorcista.


A igreja era um amplo salão que bem poderia servir para sediar empreendimentos comerciais, tais como concessionária de automóvel ou supermercado. O mobiliário resumia-se praticamente aos bancos corridos, como se usa em quase todas as igrejas do mundo; à frente destes, um estrado de madeira, atapetado, sobre o qual havia uma mesa forrada com toalha branca de renda, tendo ao centro um arranjo de rosas brancas em vaso de porcelana. À falta de um altar-mor como os da Igreja Católica, um púlpito artisticamente esculpido em madeira de lei dava um aspecto sacro ao ambiente, porém servia apenas como estrutura decorativa. Um coral (à imitação dos que se vê em filmes americanos: um solista branco, alto, calvo, de smoking, e meia dúzia de rechonchudas mulatas usando laqueadas perucas, trajando estilizada bata azul-celeste, com muitos brilhos, e tendo em volta do pescoço um lenço de seda branca) cantava o que nos últimos tempos se convencionou chamar de música gospel; no geral, em ritmo quase frenético de rock&blues, sob o eletrônico acompanhamento de um teclado executado por um negro idoso de terno preto.


Após considerável atraso do horário previsto para o início da segunda parte do culto (a mais importante), anunciou-se, sob emocionada expectativa da plateia, a participação do bispo Everardo Craveiro. “Dando sequência à sua Cruzada pela Família e Prosperidade” — conforme informou o diácono apresentador.


Surgindo pela entrada principal do salão, o bispo Everardo avançou pelo corredor central, sorridente e acenando para o público que o aplaudia. Tudo ocorria à maneira de certos espetáculos populares. As palmas aos poucos se harmonizavam com o coral, na cadência do hino que este entoava em homenagem ao pregador visitante. O diácono acenou para os fiéis, convocando-os a fortalecer o cântico, no que foi atendido, num crescendo que logo envolveu a todos e culminou em versos do hino em louvor ao bispo:

“Salve! Salve! Aleluia!

Salve, povo abençoado!

Do Senhor, filhos amados.

E dos teus servos, ó Pai,

Os escolhidos, os ungidos,

Que à Luz nos têm conduzido,

Na tua Glória amparai”


Dona Arlete e Denise eram, sem dúvida, as duas obreiras mais empolgadas daquela noite. “Um olho na missa, outro no padre” seria uma expressão adequada para descrever seus comportamentos, pois, enquanto se esgoelavam para destacar suas vozes do coro geral, de esguelha observavam as reações de Santiago, que parecia entre atabalhoado e refletivo, atento àquele evento, para ele singularíssimo.


Tudo aconteceu conforme roteiro estabelecido por algum marqueteiro da fé: o bispo Everardo subiu ao palco-altar, o coro cessou. Silêncio absoluto. O bispo permaneceu imóvel por alguns segundos, cabisbaixo, tendo numa mão a Bíblia aberta em qualquer parte e mantendo a outra espalmada sobre o peito, como se estivesse meditando, inspirando-se (postura arremedada por todo o público; com exceção de Santiago, que preferia observar os acontecimentos, buscando os detalhes). Diante desse quadro, o tecladista faz soar alguns acordes, e o solista do coral passou a entoar um suave cântico, arriscando uns falsetes, à maneira de uma emocionante ária. Sob esse clima, o bispo ergueu a cabeça (somente ele) e orou. Agora, com o braço estendido, sua mão espalmada seria veículo das “bênçãos emanadas do Divino Espírito Santo” — garantia. — E o público se emocionou. Alguns fiéis se entregaram às lágrimas.


O roteiro daquela mise-en-scène estabelecia os Momentos das Bênçãos Divinas. Em seguida vieram o Momento da Louvação e o Momento da Cura pela Fé, quando algumas pessoas se submeteram ao poder de cura, do qual o bispo Everardo se dizia dotado. Dor de cabeça crônica, bico-de-papagaio, sinusite e até câncer, tudo estaria sendo curado com um singelo “em nome do Senhor”. Também ocorreu o Momento dos Testemunhos, que naquela noite apresentou o depoimento de um fiel reabilitado do uso de droga, o qual jurava ter sido “libertado do vício graças ao poder concedido pelo Espírito Santo ao bispo Everardo Craveiro”. Também uma mulher testemunhou exibindo, como provas de cura, duas chapas de raios X, que teriam sido supostamente tiradas “antes e depois das divinas bênçãos do bispo”.


Santiago evidentemente já ouvira falar de tudo aquilo. Denise não se cansava de propalar os prodígios da sua Igreja, mesmo tendo invariavelmente que aguentar jocosos comentários do marido, muitas vezes tocando as raias da estupidez.


Finalmente, o Momento da Oblação

 

Ao ver todo o público contribuindo para que o pregador pudesse dar continuidade à sua “episcopal cruzada”, Santiago quase entrou em transe, ficou meio desorientado. E quando a obreira sacudiu a sacola na sua frente, convocando-o a fazer doação, ele já estava bastante confuso: nem acreditava que aquele sujeito com cara de peão de obra, ali ao seu lado, acabara de depositar uma nota de cem, novinha em folha, na conta do bispo Everardo.


Santiago meteu a mão no bolso e fez contato com os seus vinte mangos. Lembrou-se da recomendação de Denise ao lhe entregar o dinheiro: “Isso é pra ser doado durante a Oblação. Com fé, com muita fé!”. Mesmo assim ele vacilava entre doar (ou “aplicar”, como afirmava a sua mulher) aquelas vinte pratas ali, naquele ambiente divino, ou numa outra manifestação de fé: a do jogo do bicho. A obreira insistia exibindo a sacola com a boca arregaçada, aguardando o donativo. Santiago observou que a sua mulher estava espreitando-o. Lá das imediações do palco, Denise policiava o seu procedimento. Doou-os.


Ao término do culto, o bispo Everardo Craveiro deixou a igreja da mesma forma que entrou (um pouco mais abonado, claro): sob os aplausos dos fiéis e o canto do coral americanizado. Naquela mesma noite, ainda faria duas apresentações noutras paróquias.


Na volta para casa, as amigas evangélicas pareciam ansiosas por conhecer as impressões que tudo aquilo havia causado em Santiago. Porém se continham, aguardavam que ele as exteriorizasse espontaneamente.


As obreiras, ao comentarem sobre os acontecimentos daquela noite, afetavam a voz, a fim de chamar a atenção de Santiago. Indiretamente o estimulavam a expressar a sua opinião a respeito da Igreja da Bênção Divina. Contudo, apesar de ávidas pelo parecer do convidado, evitavam uma abordagem direta.


Já haviam descido do ônibus, agora caminhavam pelo meio da rua, em direção às suas residências. Foi aí que dona Arlete não se conteve e, tendo o cuidado de imprimir nas palavras um tom de desdém, dando a entender que a resposta teria pouca importância, perguntou:


— E então, seu Santiago, o que senhor achou da nossa Igreja?


Santiago não percebeu que estava sendo indagado. Alheado, Santiago caminhava olhando ora para o chão, ora para o céu; nem se dava conta da companhia das duas mulheres.


Denise chamou a sua atenção:


— Ei! Dona Arlete falou com você, homem!


— Hã?!


— Dona Arlete quer saber o que você achou da nossa igreja.


— O que eu achei?


— Sim — confirmou dona Arlete.


— Bem... é que eu... — Santiago hesitava, parecia não querer revelar as suas impressões sobre o que acabara de assistir. — Eu... eu não sei...


— Não sabe?! — estranhou dona Arlete, agora externando a sua curiosidade.


— Ah! o que eu achei foi... que... é... — Santiago continuava reticente.


— Desembucha, homem! — impacientou-se Denise.


— Bom, quer que eu seja sincero? Eu achei... tudo... tudo mesmo, tudo simplesmente fantástico. É, é isso aí, fantástico, simplesmente fan-tás-ti-co!


As obreiras pararam no meio da rua, porém Santiago continuou caminhando. Elas entreolharam-se perplexas. Não esperavam aquela resposta. Lá mais à frente, Santiago repetia com ênfase:


— Fantástico! Simplesmente fantástico!


No dia seguinte, toda a vizinhança tomou conhecimento da conversão de Santiago. Dona Arlete e Denise se encarregaram de espalhar aos quatro ventos aquilo que, para elas, se tratava de “uma graça alcançada pela força da nossa fé e pelo poder do bispo Everardo Craveiro”. Garantiam que o fato era “o testemunho vivo” de um prodigioso milagre realizado na Igreja da Bênção Divina.

 

Eis que surge o novo Santiago


Apesar de Santiago estar afastado dos amigos há mais de uma semana, mesmo com toda aquela boataria dando conta da sua conversão, ninguém acreditava no fato. Todos se admiravam: “Crente?!” Havia quem dissesse: “Não acredito, nem vendo!”.


Mas todos notaram que o Bar do Onça perdeu um freguês: Fuinha, um cara que sabia beber e era, disparado, o melhor carteador da área. Fuinha também esqueceu o milhar que todo dia cercava pelos cinco na banca do Dagoberto. Fuinha, que há vinte e três anos trabalhava na portaria de uma repartição pública, onde recebia o cerimonioso tratamento de “seu Fuinha”, mas que os atos publicados no Diário Oficial tratavam por Ananias Santiago da Paixão.


“Santiago, pra minha mulher, mas pros íntimos é Fuinha mesmo” — costumava brincar com o apelido que se referia à sua magreza.


Também, Odete perdeu o amante. Fu. Somente ela o chamava assim, Fu. E nisso rolava certa gozação da rapaziada: “Odete, você ainda tem daquele perfume que Fu deu?” — ela ficava uma arara, mas às vezes dissimulava a contrariedade e respondia manso: “Não, tenho não. Dei o restinho pra senhora sua mãe”.


Em pouco mais de um ano após a conversão, Santiago deixou Cordovil, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, onde morava e era bastante conhecido desde muito jovem, e se instalou numa casa mais confortável, na Penha, próximo à sua igreja. Tal mudança teve como principal objetivo afastar-se até mesmo das lembranças de um passado comprometedor. Certo dia ele disse para Denise: “Fuinha está morto. Morto e enterrado. Aliás, mais do que isso: Fuinha nunca existiu, entendeu? Nunca existiu!” — com o mesmo interesse de “acabar com o Fuinha”, conseguiu transferência da repartição.


Devido a uma dissidência religiosa, um cisma na Igreja da Bênção Divina, fundou-se a Igreja Divina da Bênção Universal. Em menos de dez anos, esta já dispunha de um considerável conjunto de templos afiliados, em geral instalados nas imediações das favelas cariocas. Contava ainda com algumas sucursais em outros estados e até se preparava para inaugurar a sua primeira representação internacional.


Inicialmente, a fim de divulgar os seus cultos e arrolar prosélitos, a seita comprava espaços nas emissoras de rádio . Agora já dispunha de duas estações próprias, graças ao prestígio de um deputado federal, cuja base eleitoral era formada pelos fiéis daquela congregação.


A matriz em Irajá, de simples galpão adquirido de uma empresa falida, transformou-se numa admirável edificação. Na fachada de mármore, logo abaixo do nome da Igreja, uma mensagem: “O templo é grande porque Deus é infinito”. Naqueles dias havia também uma faixa persuadindo o público a participar de uma “Noite de Obras Divinas”; além disso, informava que aquele seria um evento destinado aos que pretendessem “deixar de sofrer”.


A história se repete como farsa...


Na noite anunciada, após considerável atraso do horário previsto para o início da segunda parte do culto (a mais importante), anunciou-se, sob emocionada expectativa, a participação do bispo pregador. “Dando sequência à sua Cruzada pela Prosperidade das Famílias”, informou o diácono apresentador.


Surgindo pela entrada principal do salão, o bispo avançou pelo corredor central, sorridente e acenando para o público que o aplaudia. Tudo ocorria à maneira de certos espetáculos populares. As palmas aos poucos se harmonizavam com o coral, na cadência do hino que este entoava em homenagem ao pregador. O diácono acenou para os fiéis, convocando-os a fortalecer o cântico, no que foi atendido, num crescendo que logo envolveu a todos e culminou nos seguintes versos:


“Salve! Salve! Aleluia!

Salve, povo abençoado!

Do Senhor, filhos amados.

E dos teus servos, ó Pai,

O BISPO SANTIAGO, o ungido,

Que à Luz nos tem conduzido,

Na tua Glória amparai”

 

(*)Fernando Soares Campos é escritor, autor de "Saudades do Apocalipse - 8 contos e um esquete", CBJE, Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, 2003; "Fronteiras da Realidade - contos para meditar e rir... ou chorar", Chiado Editora, Portugal, 2018; e "Adeildo Nepomuceno Marques: um carismático líder sertanejo", Grafmarques, Maceió, AL, 2022.

 

 

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