Indígenas brasileiros: os contextos diante da pandemia e as ameaças visíveis
Foto: atividade indígena - arquivo pessoal
Fome, falta de assistência médica e risco de invasão são algumas das dificuldades enfrentadas por estes povos
Por Naya Fernandes, na AUPA
Os povos originários brasileiros estão sofrendo duplamente, seja pela quarentena, seja pelos riscos de invasão territorial e pela falta de recursos para a sobrevivência. De acordo com dados da Funai (Fundação Nacional do Índio) e do censo do IBGE de 2010, existem no Brasil cerca de 800 mil indígenas que falam mais de 200 línguas. A riqueza cultural e econômica gerada por estes povos, além da preservação dos recursos ambientais realizada por eles ajuda a compreender a importância, cada dia mais latente, da proteção de cada um deles.
Até o fechamento desta reportagem, no dia 28 de junho de 2020, 236 indígenas morreram em decorrência da Covid-19. Mais dados: 93 povos foram atingidos e 2.390 pessoas foram contaminadas pelo Coronavírus, de acordo com dados de uma iniciativa realizada de forma colaborativa por organizações indígenas e indigenistas, que reúne informações da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e Mobilização Nacional Indígena com apoio da Mídia Ninja, do Projeto Xingu, do Projeto Amazônia, da Abrasco e da SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena) do Ministério da Saúde.
Aupa conversou com indígenas de diversas regiões do país, com o objetivo de tentar traçar um retrato sobre o dia a dia dessas populações durante a quarentena. Assim, buscou-se também mapear as ações que vêm sendo tomadas por organizações, como o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e a Comissão Pró-Índio de São Paulo, bem como por pessoas físicas e pelos próprios indígenas para reduzir os riscos de contágio e dar assistência aos indivíduos destas populações que estão privados de suas atividades econômicas - afinal, muitos sobrevivem da venda de artesanato ou de frutas e verduras. Mas, para além dos riscos trazidos pelo vírus, os indígenas vivem outras ameaças, como a fome, a retirada de territórios e o risco de privatização dos recursos naturais.
Segundo Lindomar Padilha, membro do Observatório Pan Amazônico e do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos,"mesmo antes da pandemia, notávamos um abandono dos temas caros aos povos indígenas sob orientação de um governo marcado fortemente por agro, hidro e eco negócios".
Ele ainda destaca em sua crítica que o País está sujeito a "um governo que tenta se sustentar, em relação aos povos indígenas e ao indigenismo, na desconstitucionalização, negando direitos consagrados na Carta Magna [um documento que limita os poderes de um rei ou governante] decorrendo daí a desterritoriarização, com movimentos no sentido de inviabilizar novas demarcações e mesmo rever as demarcações já realizadas".
Para Lindomar, que atua junto aos povos indígenas da Amazônia brasileira desde 1991, essas ações recaem de forma brutal sobre as ações de saúde e, consequentemente, no enfraquecimento da SESAI, provocando desassistência às aldeias. "Não obstante ao descaso oficial, muitas ações têm sido realizadas nos diversos níveis, sempre nascidas da solidariedade e das iniciativas assistenciais. Assim, muitas ONGs, nas redes de articulação (até em nível internacional), vêm prestando apoio neste momento difícil", ressalta. "Entretanto, essas iniciativas têm encontrado muita dificuldade para chegar lá na ponta e, muitas vezes, são dificuldades provocadas pela Funai e pela SESAI. Ou seja, a desassistência oficial. Desassistência, desinteresse e descaso", continua Lindomar.
De Norte a Sul, fome e medo
A plataforma Covid-19 e os Povos Indígenas, idealizada pela articulação dos Povos Indígenas do Brasil e Mobilização Nacional Indígena, com apoio da Mídia Ninja, do Projeto Xingu, do Projeto Amazônia e da Abrasco, mantém dados atualizados sobre a situação de cada um dos povos indígenas, como os dez mais ameaçados pelo Coronavírus. E, entre eles, estão a Terra Indígena da Barragem, localizada na região de Embu Guaçu; a Terra Indígena Yanomami, no Amazonas; e a Terra Indígena do Jaraguá, localizada na cidade de São Paulo.
De acordo Lindomar Padilha, há risco de extinção para os indígenas em situação de isolamento devido às iminentes invasões por madeireiros, garimpeiros e caçadores, que acabam por potencializar a contaminação dos povos.
"se o poder público tem se mostrado ineficiente na proteção desses territórios contra as invasões, seguramente o será frente a um vírus que tem ação ainda desconhecida",
ressalta Lindomar.
Roberto Liebgott, missionário e coordenador do Cimi na região Sul do Brasil, reforça que "Neste período, percebe-se um avanço dramático de invasores dentro dos territórios indígenas". Mesmo em isolamento, as comunidades são, permanentemente, ameaçadas pelos órgãos do Poder Executivo, dos Ministérios do Meio Ambiente, da Agricultura, das Minas e Energia e, até mesmo da Funai e do Incra.
"Estes órgãos impulsionam grandes grupos a invadirem os territórios para explorar madeira, minério, a pesca predatória e outros recursos ambientais, além de lotear terras indígenas", explica Roberto.
O missionário cita ainda casos dramáticos, como o do Povo Guarani, em São Paulo: "No Pico do Jaraguá, mais de 300 pessoas já foram afetadas, com dois óbitos. Medidas não vêm sendo adotadas por conta da política de incentivo às invasões territoriais e da negação da doença por parte do Poder Público".
Ele fala sobre sonegação de informações, o que impede a manutenção das equipes de saúde nas áreas indígenas, a falta de água potável, saneamento básico, alimentos e um atendimento cotidiano. "Há um contexto de sonegação das informações para se omitir de responsabilização. Há uma omissão criminosa por parte do governo brasileiro", acusa Roberto.
Roberto afirmou ainda que, só depois que ações judiciais foram tomadas, o governo brasileiro, por meio da Funai, passou a distribuir, "de forma precária, algum tipo de alimento nas comunidades indígenas".
O Cimi tem acompanhado a dramática realidade dos povos indígenas neste período de pandemia."Percebe-se que não houve, por parte do Governo Federal, nenhum tipo de planejamento para promover ações preventivas e de proteção às comunidades indígenas. As equipes de saúde também são insuficientes, seja pela falta de equipamento, seja de servidores, ou seja, médicos, enfermeiros, sanitaristas", afirma Roberto Liebgott.
Conheça agora relatos de realidades de indígenas que vivem em aldeias e em centros urbanos e como estas populações têm se mantido durante a pandemia.
Povo Kanindé
Antônia da Silva Santos tem 21 anos e mora na Aldeia Fernandes, na zona rural do Município de Aratuba, no estado do Ceará. Ela pertence ao Povo Kanindé e está cursando o 6° período do Bacharelado em Museologia da Universidade Federal do Recôncavo Baiano.
O estado do Ceará já contabiliza quatro óbitos ocasionados por Coronavírus entre as populações indígenas segundo a contagem registrada até o dia 29 de junho. Antonia informou que a Aldeia Fernandes possui cerca de cinco casos confirmados e sete suspeitos. Nenhum com sintomas graves. São 1.076 pessoas divididas em três aldeias, sendo elas: Aldeia Fernandes, Aldeia Balança, localizada no pé da Serra do Município de Aratuba, e Aldeia Gameleira, no município de Canindé.
A indígena explicou ainda que, se por um lado, eles estão acostumados a manter distância do convívio social com os brancos, por outro, o distanciamento social dentro da comunidade é uma realidade inédita.
"Sempre fomos cautelosos com esse contato e as formas como ele ocorre. Mas, até mesmo dentro da comunidade, as visitas a amigos e parentes foram proibidas, as aulas da escola indígena estão suspensas, não se vê mais as crianças brincando nos terreiros e os rituais, as festas e as celebrações não têm ocorrido. A aldeia já não é mais a mesma",afirma Antônia da Silva Santos.
Os Kanindé mantém sua subsistência basicamente com agricultura e caça. Antes da pandemia as roças já haviam sido plantadas e o cultivo familiar individual prosseguiu. "As famílias com maior redução da renda têm sido assistidas pela assistência social indígena do povo Kanindé e com apoio do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos da Arquidiocese de Fortaleza", explica Antônia. "O sentimento de coletividade também caracteriza a aldeia e as famílias têm se ajudado", comenta ela.
No território da Aldeia Fernandes, há um lixão a céu aberto que continua ativo - e neste local se descarta, inclusive, materiais clínicos e hospitalares. "Há indígenas que realizam a separação dos resíduos e este é um potencial lugar de contaminação dentro da própria aldeia", lamenta Antônia.
Povo Pataxó
Cauê Taiguara Pataxó França Silva (também conhecido como Cauê Taiguara Pataxó) pertence à população Pataxó e vive no centro urbano de São Paulo. Em casa, Cauê sente na pele as dificuldades, pois é artesão há mais de 20 anos. "Faço peças de arte em madeira e trabalho com um projeto social de cultura indígena nas escolas. Sem conseguirmos ir fisicamente aos lugares de exposição e contação de histórias, temos tentado manter as vendas e atividades de forma on-line", explica.
Em contato com as comunidades do Povo Kaingang, Guarani e Xetá, além de várias Aldeias no Norte do Paraná, Cauê disse que não soube de nenhum caso da Covid-19 entre os indígenas, mas que eles, em geral, têm recebido apoio deficitário. "Poucos acessaram o auxílio emergencial ou outros benefícios sociais", ressalta.
Tamikuã Pataxó é da Aldeia Mãe Barra Velha, em Porto Seguro, na Bahia. Há 24 mil Pataxós entre o Sul da Bahia, Minas Gerais e o Rio de Janeiro. "Meu povo está isolado para se proteger. Fechados com portões em todas as entradas da aldeia e, por isso, todos estão sendo prejudicados, afinal as principais fontes de renda são o turismo na Ilha de Caraíva e a venda do artesanato", comenta Tamikuã.
Sem nenhuma assistência, a aldeia tem se mantido por meio de doações de cestas básicas. "Nos sentimos muito ameaçados, sobretudo na minha aldeia, onde o fluxo de turismo é alto. Os indígenas vivem do seu próprio trabalho e, neste momento, não estão tendo nenhum auxílio do governo", afirma.
Povo Tabajara
Francisca Aurilene Gomes, também conhecida como a Auritha Tabajara, tem 40 anos e nasceu na Aldeia Umburana, no Ceará. Atualmente, mora em São Paulo, é autora e vive do seu trabalho como contadora de histórias, eventos e venda de livros. Ela está recebendo o Auxílio Emergencial do Governo Federal. "Estou em casa com minha filha de 14 anos e minha esposa, que está saindo para trabalhar. Fiquei tossindo por alguns dias, mas, graças aos grandes espíritos de cura, estou bem. Porém, uma parenta dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) Ceará, agente indígena do povo Tabajara no município de Tamboril, veio a óbito", diz.
Povo Puri
Aline Rochedo Pachamama é historiadora e militante das causas dos povos originários. Aline ressalta que seu povo ocupa a região da Serra da Mantiqueira e toda sua extensão é considerada um território indígena. "Existem vários pontos de presença do Povo Puri, inclusive sítios arqueológicos. Estamos entre os estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro", explica Aline, que participa de um coletivo de mulheres que mantém uma editora protagonizada por mulheres originárias.
Benilda Vergílio, cujo nome indígena é Examelexe, vive na Terra Indígena Kadiwéu, no Mato Grosso do Sul, mais especificamente na Aldeia Alves de Barros, onde habitam aproximadamente 1.600 pessoas. A indígena comentou que, por estarem distantes da cidade, se houvesse casos dentro da aldeia, a assistência médica seria muito difícil. "Estamos em isolamento social, conforme os decretos oficiais e também a ordem das lideranças que determinaram a quarentena para todos da aldeia", explica ela.
"Fizemos um esquema de barreira, onde 120 homens estão cuidando da entrada da aldeia para que ninguém de fora entre", detalha Benilda. "Além disso, estamos cuidando muito da higiene e usando máscaras. Nos organizamos de forma coletiva e até agora não tivemos nenhum infectado na aldeia", conclui Examelexe.
"Temos feito um trabalho de organização das demandas e denúncias de vários povos. Não tenho registro dos meus parentes infectados pela Covid-19, mas me sinto muito afetada quando outros povos relatam o que está acontecendo nas comunidades", diz Aline, que ressaltou que este continua sendo momento de invasão. "Meu grupo está numa região muito afastada, porque estão entre as montanhas. Certamente, o auxílio emergencial não chegou a eles, pois não têm acesso à internet", comenta a historiadora. "Na região, por exemplo, há relatos de mineradoras que tiveram a legitimação de adentrar em territórios que são públicos e onde estamos localizados", afirma.
Aline falou ainda sobre as esperanças egoístas da maioria das pessoas de que as coisas podem melhorar, mas sem refletir sobre aspectos, como o consumo desenfreado, a energia desenvolvida em questões singulares e não plurais e a falta de coletividade. "É um momento de reflexão não só para os humanos, mas para os não humanos, pois a natureza está gritando. Além disso, esse governo expressa todo seu ódio e sua violência em relação aos povos originários. Temos que entender que a luta dos povos originários são de toda a sociedade. Os recursos naturais que preservamos com a nossa presença são recursos que servem à sociedade, por um todo", insiste Aline.
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