Entre Sêneca e Mujica

Sêneca e Mujica  ̶ Toda riqueza está dentro de nós


por Fernando Soares Campos(*)


Mujica rejeita título de "presidente mais pobre do mundo" (2013).

 

"Pobres são aqueles que precisam de muito para viver", disse Pepe Mujica.


"Eu não sou pobre! Pobres são aqueles que acreditam que eu sou pobre. Tenho poucas coisas, é certo, as mínimas, mas apenas para ser rico. Quero ter tempo para... dedicá-lo às coisas que me motivam. Se tivesse muitas coisas, teria que me ocupar de resolvê-las e não poderia fazer o que eu realmente gosto. Essa é a verdadeira liberdade, a austeridade, o consumir pouco. Vivo em uma pequena casa, para poder dedicar tempo ao que verdadeiramente aprecio. Senão, teria que ter uma empregada e já teria uma interventora dentro de casa. Se eu tivesse muitas coisas, teria que me dedicar a cuidar delas, para que não fossem levadas... Não, com três cômodos é suficiente. Passamos a vassoura, eu e a velha, e já se acabou. Então, temos tempo para o que realmente nos entusiasma. Verdadeiramente, não somos pobres!" (José Mujica, 2013, Presidente do Uruguai - extraído do Portal E-Gov, UFSC, publicado em 10 de outubro de 2013.)

 

Mujica recebia US$12.500/mês (doze mil e quinhentos dólares mensais) por seu trabalho à frente do governo do Uruguai, mas doava 90% de seu salário, ou seja, vivia com 1.250 dólares, que, de acordo com o câmbio da época, equivaliam a R$2.538,00 reais, ou ainda 25.824 pesos uruguaios. O restante do dinheiro ele distribuía entre pequenas empresas e ONGs que trabalhavam com habitação.

 

Lucius Annaeus Seneca, ou simplesmente Sêneca, filósofo, advogado, escritor e intelectual do Império Romano, nasceu em Corduba, 4 a.C., e faleceu em Roma, no ano 65 da Era Cristã. Sêneca também foi dramaturgo de sucesso. Tendo nascido no seio de família ilustre, que tinha acesso à corte imperial, tal condição o levou a ser conselheiro do imperador.  

 

Aos 44 anos de idade, foi acusado de ter cometido adultério com uma sobrinha do imperador. Tal infidelidade conjugal lhe trouxe sérios problemas, culminando com o exílio na Córsega, onde sofreu privações, comprometendo o provimento de sua própria subsistência. Foi então que aderiu ao estoicismo, escola de filosofia fundada na Grécia, em Atenas, por Zenão de Cítio no início do século III a.C.

 

O estoicismo fundamenta-se na fidelidade ao conhecimento, desprezando todos os tipos de sentimentos externos, como a paixão, a luxúria e demais emoções. Para os verdadeiros filósofos e seguidores do estoicismo, o simples "prazer" e mesmo a "felicidade passageira" devem se fundamentar em princípios éticos, ou seja, nenhum prazer deve comprometer a moral do indivíduo. Os filósofos estoicos se orientam pelo seguinte princípio: "A virtude é suficiente para a felicidade".

 

Ao se tornar adepto do estoicismo, Sêneca proferiu frases que se tornaram menções diretas a essa escola filosófica, como, por exemplo: "Pobre não é aquele que tem pouco, mas antes aquele que muito deseja". 

 

Conceitos filosóficos de Sêneca e Mujica

 

Já tive oportunidade de observar algumas pessoas identificando a filosofia "mujiquiana" como sendo a reprodução fiel do estoicismo senequiano.

 

Há quem atribua à filosofia senequiana um conveniente guia para pessoas resignadas diante do sofrimento e das adversidades da vida, os acontecimentos por elas considerados fatais, determinados pelo destino; portanto, tidos como inevitáveis. Aquilo que os muçulmanos designam pela palavra "maktube", vontade e desígnio de Deus (entre outros significados que os árabes conferem a essa palavra).

 

Analisemos cada uma das sentenças fundamentais nas filosofias de um e de outro:

 

Mujica: "Pobres são aqueles que precisam de muito para viver".

 

Sêneca: "Pobre não é aquele que tem pouco, mas antes aquele que muito deseja".

 

Aparentemente os dois teriam dito a mesma coisa, mas isso só aparentemente e só para o leitor apressado e que precisa de muito para entender um pouco.

 

"Precisar", evidentemente, não é o mesmo que "desejar". Se alguém tem R$ 1 milhão e precisa de outro milhão para desenvolver certo empreendimento (agrícola, industrial, educacional...), esta é uma demanda legítima. Mas se alguém ganha cinco salários mínimos, que estão atendendo às suas necessidades, em diversos âmbitos, inclusive ao seu moderado lazer, no entanto deseja muito mais por mero contentamento de acúmulo e ostentação, sem que isso gere qualquer benefício à sociedade, de forma significativa, tal comportamento se constitui em atitude reprovável.

 

Observemos que o pensamento senequiano não qualifica ou especifica o "desejo", o que se constitui numa ligeira falha, pois o próprio desejo pode estar fundado em legítima necessidade: "desejar" muito ou pouco porque "precisa-se" de muito ou de pouco.

 

Se "precisar" não significa "desejar", entretanto aquilo que precisamos gera em nós o desejo de realização, o desejo de suprir aquela necessidade.

 

O desejo alimenta a força de vontade, que é o seu veículo, a energia que conduz à realização de projetos. Porém devemos ter o cuidado de não transformar os nossos simples desejos em projetos. 

 

É natural que desejemos usufruir tudo de bom que já existe por aí, tudo que qualquer milionário usufrui em termos de conforto material. É humano desejar ter acesso a facilidades, a tudo que possa existir de bom e de melhor. Simplesmente desejar. Eu naturalmente desejo, mas não alimento esse desejo, não animo a vontade, ao ponto de transformar a sua realização em meta, em projeto de vida, invertendo a ordem natural das coisas. Por que "invertendo"? Porque sou alguém que acredita piamente que mais vale ser do que ter. Porém não admito que o ser prescinde do ter. O ter só pode ser prescindido de suas formas egoísticas: querer ter a qualquer custo, querer ter apenas para si, para os seus pares, mas não querer que os outros também o tenham para si ou para os seus; ou, conforme a máxima egocêntrica: depois de mim, eu, e, se sobrar e eu considerar que devo fazer caridade, jogo os ossos para os outros; ou mesmo aplicando a lei de murici: cada um cuide de si.

 

"Ser" também é, por si mesmo, "ter", é sólido patrimônio, inalienável. Ser o quê? Erudito? Nesse caso, é ter instrução, deter muito conhecimento, ampla cultura formal, científica. Ser sapiente é ter capacidade de interpretar a vida, as relações interpessoais, os fatos, a história, é ter domínio, teórico ou prático, de um assunto, uma arte, uma ciência, uma técnica, é ter poder de influenciar, de tomar decisões acertadamente. Ser solidário é ter um desenvolvido espírito de fraternidade, de interesse em ajudar o semelhante, apoiar seus projetos legítimos, e isso só se alcança praticando e trocando experiências e informações que se tem.

 

Ter é ser dono, é ter o domínio; enquanto ser é ter capacidade de exercer o domínio.

 

Ter a posse do ser material ou do ser imaterial é uma só forma de ter, é domínio do ser. E só faz diferença nas formas de aquisição (se adquiridas de forma honesta ou desonesta) e de emprego (se é para servir a um maior número de pessoas, ou se é para ser acumulada de forma egoística, o ser material ou o imaterial).

 

Entre Sêneca e Mujica

 

O próprio Sêneca também falou coisas assim:

 

"Possuir um bem, sem o partilhar, não tem qualquer atrativo". Portanto não há nenhum pecado em possuir muito e partilhar os frutos desse muito.

 

"Para a nossa avareza, o muito é pouco; para a nossa necessidade, o pouco é muito."

 

Diante do exposto, fico com a sentença senequiana, fazendo ligeira observação: "Pobre não é aquele que tem pouco, mas antes aquele que muito deseja [por mera avareza]".

 

Mujica: "Pobres são aqueles que precisam de muito para viver". 

 

A meu ver, Pepe Mujica também deixou uma lacuna na sua sentença, esqueceu-se da inevitável relatividade que se faz necessário observar quando tratamos de determinados valores. Por exemplo: existem milhões de brasileiros que diriam "Preciso de muito para viver, preciso de uns cinco salários mínimos". É com o que Mujica vive hoje, e é o que muita gente consideraria muito. E isso, bem sabemos, é relativamente pouco!

 

(*)Fernando Soares Campos é escritor, autor de "Fronteiras da Realidade - contos para meditar e rir... ou chorar" - Chiado Editora - Portugal - 2018. 

  

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