A capitania de São Paulo sob o governo de d. Bernardo Lorena

A capitania de São Paulo sob o governo de d. Bernardo Lorena
                                                                                                                    

Wil Prado (*)     
"A História é um carro alegre/Cheio de um povo contente/Que atropela indiferente/Todo aquele que a negue." (Canción por la unidad  latinoamericana -  Pablo Milanés)
           
                                                           I
BRASÍLIA - É corrente a assertiva que diz que a História é escrita pelos vencedores. Não estamos aqui para polemizar. Mas não podemos deixar de ressaltar que o bom historiador é aquele que sabe separar o joio do trigo. E é o que faz Adelto Gonçalves nesse seu O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2019). Consciente disso, logo à página 77, ele adverte: 


           (...) "os historiadores precisam se servir de fontes escritas cujos autores, uns mais outros menos, são sempre ligados à cultura dominante. Não que tenham sido todos mentirosos, mas a maneira como encaravam a História sempre os condenava à deturpação. Sem contar que a imensa maioria dos papéis que restaram nos arquivos oficiais só mostram a visão dos poderosos, daqueles que detinham posições de mando". 
Experiente e escrupuloso, ele não se deixa influenciar por vieses políticos e outras tendências deturpadoras da História, que, às vezes, empolgam historiadores mais apressados.  Por outro lado, podemos dizer que Adelto não se deixa fascinar pelo canto da sereia:  casos e detalhes pitorescos da vida dos personagens, relevados, que muito despertam a curiosidade do leigo, mas que nada acrescentam aos rumos da História. O que nos acrescentaria saber onde o imperador fez xixi? E outros "achismos" e opiniões manietadas dos ditos revisionistas de plantão. Não. Adelto se atém aos fatos: interpreta-os e os transforma em História.  


Para escrever a História desse período colonialista que foi o governo de d. Bernardo José Maria da Silveira e Lorena (1756-1818), consultou arquivos de aquém e de além-mar. O resultado desta vasta e minuciosa especulação foi um grande painel - social, econômico e político - onde se registra o embate entre poderes ligados, mas distintos, como a Igreja, a burguesia e os representantes da Corte, aliás, vistos com desconfiança pelos poderosos locais. E todos, militares, religiosos, burgueses e autoridades administrativas, na dança pelo poder, se ajuntam e traem, em alianças as mais espúrias, com o intuito de aquinhoarem riquezas e se most rarem be m vistos aos olhos da Coroa.


 Para termos uma ideia dessa convivência conflitiva ente o poder e o clero, citamos a intriga entre Lobo de Saldanha, governador e capitão-general da capitania de São Paulo (1775-1782), e o influente padre José da Silva de Oliveira Rolim, acusado pelo governador de manter uma vida promíscua. Episódio que, embora desenrolado em outra capitania, a de Minas, respinga na capitania paulista. E não resistimos em transcrever este parágrafo, que é, de fato, uma pérola:


           "A "vida dissoluta" de que o acusava Lobo de Saldanha, certamente, adviria do fato de que, irmão de Francisca da Silva de Oliveira (1732-1796), a famosa Chica da Silva, havia se envolvido com a filha desta, sua sobrinha putativa. Teria também deflorado a própria sobrinha, Quitéria, arranjando-lhe casamento de conveniência, com o ânimo de continuar a relação ilícita e, em razão da revolta do marido, ameaçou-o de morte, segundo denúncia de Joaquim Silvério dos Reis, delator das movimentações para a projetada revolta de 1789" (pág. 161).   &nb sp;&nbsp ;
                                                           II
            Em trabalho exaustivo, que requereu uma longa temporada de pesquisas em Lisboa, Adelto retrata - e podemos dizer que o termo é exato - um dos períodos de maior desenvolvimento da capitania de São Paulo: os nove anos do governo de d. Bernardo José Maria da Silveira e Lorena. Para tanto, espanou o pó e espantou as traças - se é que os arquivos lusitanos são tratados com o mesmo descaso dos de cá - de documentos seculares, guardados, dentre outros, pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Academia das Ciências de Lisboa, Coleção Pombalina da Biblioteca Nacional de Portugal e o Arqu ivo Histórico Ultramarino. No Brasil, recorreria ainda ao Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, ao Arquivo Público Mineiro e ao Arquivo do Estado de São Paulo, para citarmos apenas os mais importantes.


Sempre que nos referirmos a São Paulo, uma pergunta é recorrente: por que este se tornou o mais rico e desenvolvido Estado brasileiro? Se lermos este volume com cuidado, certamente, encontraremos algumas dicas. E, dentre tantas, ficamos aqui especulando se esta não seria determinante: a "lei do porto único"?  Editada em 1789, essa "lei", assim impropriamente chamada pela historiografia, pois não passava de uma determinação do governador, permitia que o porto de Santos recebesse navios diretamente de Lisboa, sem a intermediação do Rio de Janeiro, o que aumentava o tempo e acrescentava despesas ao preço final das mercadorias.


Para reforçar essa ideia, transcrevemos este parágrafo à página 361: "Lorena tomou uma decisão que seria fundamental para abrir literalmente o caminho para o desenvolvimento da capitania, determinando que toda carga produzida na capitania teria de passar primeiro pelo porto de Santos. A medida permitiu que o porto de Santos passasse a receber mais navios e a fazer o comércio diretamente com Portugal".
                                               III              
Adelto, porém, não escreve para polir o bronze das estátuas. Ao contrário, algumas saem das suas páginas até um tanto arranhadas. Para darmos apenas um exemplo, citamos o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera (ou Diabo Velho, como a ele se referiam os indígenas Goyazes), que, apesar de ter sido considerado um grande descobridor de ouro e prata, a ele colou-se a má fama de "matador de índios".  


Por último, é bom lembrar que essas quatrocentas páginas, nas mãos de historiadores burocratas, poderiam se tornar deveras enfadonhas, mas nas mãos de um bom escritor - Adelto é um bom romancista! -, tornam-se leves e atraentes, como se estivéssemos, junto com o autor, descobrindo e desvendando cada falcatrua - oficial ou contrabandeada - de políticos, párocos ou burgueses locais.


Infelizmente, ao fecharmos este volume, temos que admitir que o País pouco ou nada mudou dos tempos coloniais de outrora aos novos tempos republicanos de agora: a corrupção, as grandes fraudes e a malversação dos bens públicos continuam a ser a tônica do Estado.
                                                       IV
            Adelto Gonçalves, paulista de Santos, é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa e mestre na área de Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana pela Universidade de São Paulo (USP). Foi professor em várias universidades e jornalista desde 1972, atuando como assessor de imprensa na área empresarial.


Professor Adelto, como é conhecido e respeitado nos meios acadêmicos e jornalísticos, é um escritor vastamente premiado. Citaremos apenas alguns dos mais importantes: 1986, prêmio Fernando Pessoa da Fundação Cultural Brasil-Portugal, Rio de Janeiro, participando do livro Ensaios sobre Fernando Pessoa, com o trabalho "O ideal político de Fernando Pessoa"; prêmios Assis Chateaubriand, 1987, e Aníbal Freire, 1994, ambos da Academia Brasileira de Letras; em 2000, com a biografia Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), seu trabalho de doutorado em Letras pela USP, o prêmio Ivan Lins de Ensaios da União Brasilei ra de Es critores e da Academia Carioca de Letras.
Como jornalista seu currículo é tão vasto e importante quanto o de acadêmico. Escreveu para O Estado de S. Paulo, Empresa Folha da Manhã, Editora Abril e A Tribuna, de Santos, tendo sido correspondente da revista Época em Lisboa (1999-2000). É colaborador da revista Vértice, de Lisboa. Escreve regularmente para o quinzenário de As Artes Entre as Letras, do Porto, e Jornal Opção, de Goiânia. É sócio correspondente e assessor cultural e de imprensa do Centro Lusófono Camões da Universidade Estatal Pedagógica Hertzen, de São Petersburgo, Rússia.


Apesar de todos esses títulos de suma importância, não podemos deixar de destacar a sua face de ficcionista. Sim, ele ainda encontrou disposição e tempo para praticar a grande ficção, com livros de contos, ensaios e romances.


            Em 1980, com seu romance de estreia, Os vira-latas da madrugada, ganhou menção honrosa do Prêmio Nacional de Romance José Lins do Rego. E é sobre ele que queremos nos deter, não apenas pela sua qualidade literária, como também pelas condições históricas, posto que foi um dos primeiros a retratar o golpe militar de 1964, mesmo que sem proselitismo partidário, mostrando fatos, como as invasões dos sindicatos dos trabalhadores de Santos e a desumana e vexatória prisão de velhos e respeitáveis sindicalistas, tratados como bandidos comuns. O livro, já em segunda edi&cced il;ão, pela Editora Letra Selvagem, de Taubaté-SP, está nas livrarias e, independentemente de quaisquer vieses ideológicos, vale a pena ser conferido, porque seus personagens são, de fato, verossímeis e comoventes.
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O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo - 1788-1797, de Adelto Gonçalves, com prefácio de Kenneth Maxwell, texto de apresentação de Carlos Guilherme Mota e fotos de Luiz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 408 páginas, R$ 70,00, 2019. Site: www.imprensaoficial.com.br
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Wil Prado, jornalista, é contista e romancista, autor de Sob as Sombras da Agonia (Lisboa, Chiado Editora, 2016) e do e-book Um Vulto dentro da Noite (Amazon). E-mail: [email protected]
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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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