No apartamento-museu de Dostoievski

I Que espécie de homem foi Fiod or Mikhailovitch Dostoievski (1821-1881)? O homem da mansarda, como se auto-definia? Soturno, raivoso, perverso, de poucas palavras e gestos comedidos? Ou um homem cercado de familiares e amigos, que sempre tinha uma palavra de encorajamento a quem o procurava? Seja lá como tenha sido a sua personalidade, para conhecê-lo um pouco melhor nada como uma visita ao apartamento-museu Dostoievski, que está instalado exatamente na casa em que ele passou a última etapa de sua vida e escreveu o seu derradeiro romance - Os Irmãos Karamazov (1879) - e o célebre Discurso sobre Pushkin (1880).

Adelto Gonçalves

Publicado no quinzenário As Artes Entre as Letras,do Porto, 27/1/2017:

O escritor alugou o apartamento, primeiro, por um curto período, em 1846, quando escreveu Pobre Gente, seu primeiro livro, e, depois, com a família, de outubro de 1878 até o dia de sua morte, a 28 de janeiro de 1881. Inaugurado no dia do 150.º aniversário do escritor, em 12 de novembro de 1971, o Museu Literário-Memorial F. M. Dostoïevski fica no cruzamento da rua Koppuznetchny com a rua Dostoievskogo, antiga Iamskaïa, não muito distante da igreja do Ícone de Nossa Senhora de Vladimir.

É um típico prédio de apartamentos da São Petersburgo oitocentista, simples e ordinário, sem nenhum mérito arquitetônico em particular, que começou a ser restaurado em 1968 já com o objetivo de se preservar e reconstruir o apartamento de Dostoievski. Hoje, todos os dias, exceto nas segundas-feiras, quando está fechado, o apartamento-museu atrai turistas e estudiosos de todas as partes do mundo, sendo um dos locais mais visitados de São Petersburgo, cidade que pode ser definida como um museu a céu aberto.

Entra-se por um hall no rés do chão em que estão um boxe para a venda de livros de Dostoievski e souvenires e um reservado de cabides em que todos os visitantes são obrigados a deixar os seus sobretudos em dias de inverno, o que é comum durante pelo menos dez meses do ano. Depois, sobe-se por uma escada de poucos degraus para o espaço onde ficavam a sala de visitas e, provavelmente, a cozinha. Acima, estão os quartos, hoje todos transformados em espaço dedicado à memória do escritor. O Museu comporta ainda uma exposição literária consagrada à vida e à obra do autor.

Segundo Boris Tikhomirov, vice-diretor do Museu e responsável pelo setor científico da instituição, o apartamento foi restaurado não só com base em documentos de arquivo e anotações deixadas por contemporâneos do escritor como nas memórias deixadas por sua segunda esposa, Anna Grigorievna Dostoievskaia (1846-1918), autora de Meu Marido Dostoievski (Rio de Janeiro, Editora Mauad, 1999, tradução de Zoia Prestes), além de fotografias que foram tiradas um mês depois da morte de Dostoievski. Logo à entrada do apartamento, Tikhomirov chama a atenção para um sinete que funcionaria como campainha para anunciar a chegada de visitas: "Se n& atilde;o é o original da casa, é exatamente o sinete que se usava à época", explica.

No primeiro andar, pode-se ver a mesa de trabalho do escritor em cima da qual, dentro de uma redoma de vidro, está a pena de metal que costumava usar para escrever suas obras. Há ainda fotocópias de manuscritos doistoievskianos. No segundo andar, formado por seis quartos, depois do hall de entrada, há a biblioteca e uma cozinha. Sete janelas dão para a rua Kuznetchni. De uma delas, é possível contemplar a cúpula da igreja de Vladimir.

No quarto que teria sido do casal vê-se igualmente, dentro de uma redoma de vidro, uma receita médica que lista os medicamentos que o epiléptico Dostoievski usou para combater o mal que o atacou nos últimos dias. Detalhe: a receita médica tem a data exata do dia em que o escritor morreu. No quarto está ainda a cama, acima da qual há uma fotografia do quadro A Madona Sistina, de Raphael (1483-1520/21), pintado em 1513, símbolo da cidade de Dresden, capital da Saxônia, na Alemanha, onde Dostoievski viveu um período de sua vida. Numa pequena mesa próxima à janela, um relógio marca o dia e a hora da morte do escritor (28 de janeiro de 1881, 8h36).

Naquele andar, dois quartos são dedicados à mulher do escritor. Entre o mobiliário, há uma escrivaninha que lhe pertencia, além da sala de jantar em que se reunia toda a família todas as noites. Em lugar de destaque, uma curiosidade: uma pequena caixa de latão em que o escritor, fumante inveterado, costumava acondicionar o tabaco.

 

II

O Museu dispõe de uma vasta coleção de gráficos e objetos de arte e decoração, além de um fundo considerável de fotografias de São Petersburgo da época em que viveu Dostoievski. Na sala de fotografias, pode-se ainda ver a máscara mortuária de Dostoievski. Por ali, o visitante pode imaginar as ruas de edifícios baixos e regulares que o escritor costumava percorrer até chegar a sua casa. Mais adiante, há um chapéu de feltro negro que, segundo o vice-diretor Tikhomirov, seria aquele com o qual Dostoievski costumava enfrentar as noites frias de São Petersburgo.

O Museu comporta igualmente uma coleção de cartazes de teatro, programas de adaptações de obras do escritor e um fundo de manuscritos. "Boa parte do material foi fornecida por uma sobrinha de Dostoievski, filha de seu irmão Mikhail", informa o vice-diretor do Museu. Além disso, há uma biblioteca que guarda mais de 24 mil volumes, reunindo não só edições em russo dos livros do escritor como outras publicadas em numerosas línguas, inclusive a última edição brasileira de seu primeiro livro, Gente Pobre, editada pela Associação Cultural Letra Selvagem, de Taubaté-São Paulo, em março de 2011, em traduç&at ilde;o de Luís Avelima.

Ao lado do apartamento está o Teatro Dostoievski, que constitui uma parte independente do Museu e costuma levar à cena, durante o ano, várias adaptações de obras de Dostoievski, que, aliás, era grande amante da arte cênica, tendo sido amigo de diretores, atores e atrizes. Nickolai Gogol (1809-1852), Ibsen (1828-1906) e outros contemporâneos de Dostoievski também já tiveram suas obras encenadas ali.

 

III

Antes da Revolução Russa (1917), artigos apareceram em jornais defendendo a necessidade de se abrir um museu em homenagem à memória de Dostoievski em São Petersburgo. Mas o máximo que se fez foi a colocação de uma placa comemorativa no prédio em 1956. O primeiro Museu Dostoievski surgiu em Moscou em 1928, num prédio que abrigara o Hospital Mariinsky, onde Dostoievski nascera e passara boa parte da infância, já que seu pai, o médico Mikhail Andreevich Dostoievski (1788-1839), ali clinicava.  

Durante os anos de regime soviético, pouco se fez em São Petersburgo, então Leningrado, porque as convicções religiosas e a ficção psicológica de Dostoievski seriam incompatíveis com a ideologia do marxismo-leninismo. Mesmo assim, muitos escritores e estudiosos de sua obra não hesitaram em defender a criação de um museu na cidade onde ele havia passado a maior parte de sua vida.

Depois da morte da mãe, Maria Fyodorovna Nechaeva (1800-1837), Dostoievski e seu irmão foram enviados a uma escola de Engenharia de São Petersburgo. Dostoievski conheceu a cidade em maio de 1837, época em que têm início as "noites brancas", o tempo mais poético da cidade, quando começa a escurecer depois das 22h30 e, mesmo assim, a noite nunca se fecha, permitindo uma claridade que volta com força a partir das 4 horas da manhã. Seu pai morreu em 1839, fazendo com que ele se sentisse culpado por ter desejado sua morte em algumas ocasiões.

Dostoievski concluiu os estudos de Engenharia e chegou a subtenente. Dedicou-se à tradução, incluindo uma obra de Balzac (1799-1850). Mas, em 1844, abandonou o exército para se dedicar à literatura. Nesta época, contraiu dívidas e sofreu o primeiro ataque epiléptico. Apenas a primeira obra, o romance Pobre Gente, publicado em 1846, formado por cartas que os personagens enviam uns aos outros, teve boa aceitação da crítica, especialmente do crítico Vassirión Belinski, que vaticinou o surgimento de um gigante da literatura, comparável a Gogol e Pushkin (1799-1837), considerados os maiores escritores da Rússia até então.

Perto do apartamento-museu, pode-se conhecer o centro comercial Gostíni Dvor, uma das primeiras lojas de departamentos do mundo, cuja construção teve início em 1789. Exemplo de arquitetura neoclássica, com colunas coríntias, tinha à época de Dostoioevski cerca de 340 lojas. Em Gente Pobre, Gostíni Dvor aparece como local onde havia alfarrabistas que vendiam livros "pela metade do preço".

Em sua juventude, Dostoievski engajou-se na luta da juventude pela implantação de um governo mais democrático na Rússia, combatendo o regime do czar Nicolau I (1796-1855). Por isso, foi preso em 1849 e condenado à morte junto com um grupo socialista, mas teve sua pena substituída por cinco anos de trabalhos forçados na Sibéria. Casou-se em 1857 com María Dmítrievna Issáieva, viúva de um maestro, seu conhecido.

Voltou a São Petersburgo em 1859, onde produziu muitos romances e publicou a revista Tempo. Em 1860, numa de suas viagens à Europa, teve um breve relacionamento com Paulina Súslova, mas acabou voltando para sua esposa, que morreu logo depois. Em 1861, publicou Humilhados e Ofendidos e, em 1862,Recordações da Casa dos Mortos, um retrato da vida dos condenados nas prisões da Sibéria.

Em 1864, publicou Memórias do Subsolo na revista literária Época, obra escrita ao tempo em que sua primeira mulher estava doente e sua família vivia em situação de extrema penúria. Em 1866, publicou Crime e Castigo e, em seguida, em Florença, na Itália, entre 1867 e 1868, escreveu O Idiota. De 1875 é O Adolescente, relato em primeir a pessoa, apaixonado e caótico, das incursões de um jovem pelo mundo adulto.

Em São Petersburgo, obrigado a sustentar também a família do irmão falecido, Mikhail, acabou por ditar o romance O Jogador para sua secretária, Anna, com quem acabaria por se casar, embora ela fosse 25 anos mais jovem. Em 1873, escreveu Diário de um Escritor, de conteúdo político e crítico-literário.

Nota: Museu Dostoievski: De terça-feira a domingo, das 11 às 18 horas. Fecha às segundas-feiras e feriados. Website: www.md.spb.ru

Nota: Fiodor Dostoievski morreu a 28 de Janeiro de 1881.

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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