Adelto Gonçalves (*)
I
Lêdo Ivo (1924) é, acima de tudo, poeta. Mas também é romancista e memorialista de incontáveis méritos. Mais: trata-se de um irretocável traçador de perfis. É o que o leitor pode constatar em O Vento do Mar (Rio de Janeiro, Editora Contracapa/Academia Brasileira de Letras, 2011), livro que celebra os seus 87 anos de idade e pelo menos 70 de vida literária intensa, como atesta a vasta iconografia que, ao longo destas páginas, registra seu percurso poético, suas viagens e participações em festivais de poesia, resultado de um reconhecimento mundial a sua obra. E cujo cume talvez tenha sido em 2008, quando o Encuentro de Poetas del Mundo Latino, realizado nas cidades de Morelia e Pátzcuaro, no Estado de Michoacán, no México, homenageou especialmente a sua obra.
Com pesquisas, seleção e organização de Monique Cordeiro Figueiredo Mendes, este livro reúne não só os melhores perfis escritos por Lêdo Ivo - que, no fundo, constituem capítulos da história da Literatura Brasileira do século XX - como boa parte de sua reflexão ensaística, além de uma antologia poética, "Os Sinos de Maceió", em que o poeta celebra a sua cidade natal, o seu mar, seus navios, ventos e marés, ruas tortas e antigas, o farol desaparecido, os caranguejos dos mangues, os morcegos, as lagunas, o mormaço - sempre o mormaço... - do porto.
Dos perfis que traça - graças ao convívio que manteve com a maioria das grandes figuras literárias do Brasil recente -, um se destaca: é o que faz de Afonso Arinos de Melo e Franco (1905-1990). Professor de Direito, jurista, constitucionalista, embaixador, ministro de Estado, parlamentar, viajante que tanto amara Roma, a ponto de escrever um livro que tem por título Amor a Roma (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982), Arinos era também poeta bissexto, que, segundo Lêdo Ivo, conciliou deveres e paixões da atração política e partidária e um trabalho intelectual contínuo e infatigável, como provam as milhares de páginas que deixou.
Hoje, já não se vê figuras assim na cena política brasileira, tal o nível de esterco a que chegou essa atividade no País. Se se permite um testemunho pessoal, este articulista confirma que Arinos, praticamente, levou até o fim da vida o hábito de se encontrar com o editor José Olympio, em seu escritório em Botafogo, na sede da editora, pois conversou com ambos lá em 1980. Lêdo Ivo recorda-se de um encontro desses ocorrido em 1957, a propósito de lembrar que, àquela época Arinos deixara o seu gabinete de letrado para subir na carroceria de um caminhão com o objetivo de angariar votos nos bairros e subúrbios cariocas e derrotar o populismo de João Goulart (1919-1976) e Leonel Brizola (1922-2004). Em 1986, já de cabelos encanecidos, Arinos não precisaria sequer sair de casa para garantir uma cadeira no Senado, pois só a força de seu nome seria suficiente para tanto.
Outro perfil irretocável é o que Lêdo Ivo traça de Clarice Lispector (1920-1977), no qual inclui um episódio ocorrido na redação da revista Manchete, no Rio de Janeiro, em que o diretor Justino Martins, talvez para estimular o talento da colaboradora, aconselhou-a a atualizar sua agenda sexual. "E Clarice, vítima recente de um acidente doméstico, ponderou-lhe, com a sua voz gutural de gaivota no mormaço, e numa humildade que correspondia a uma penosa rendição à miséria da vida: Não posso transar com ninguém, Justino. Tenho o corpo todo queimado", escreve Lêdo Ivo.
Ao mesmo tempo, o autor faz uma revelação que acaba por desmontar a parte teórica de muitos estudos acadêmicos sobre a obra de Clarice Lispector: a de que ela não lera James Joyce (1882-1941) até publicar Perto do Coração Selvagem em 1944, seu primeiro romance. O titulo e a epígrafe foram-lhe sugeridos por seu amigo Lucio Cardoso (1912-1968), um grande romancista hoje esquecido. Sem saber disso, diz Lêdo Ivo, muitos críticos passaram a trombetear a filiação de Clarice ao autor de Ulisses. E assim se escreve a história literária.
III
No perfil de Graciliano Ramos (1892-1953), igualmente antológico, lembra Lêdo Ivo que o romancista de Vidas Secas, um comunista radical - a uma época em que se acreditava que seria possível reformar o ser humano para se criar o chamado "homem novo" -, ao deixar a cadeia do Estado Novo fascista (1937-1945), saiu nomeado pelo ditador Getúlio Vargas (1882-1954) fiscal de ensino, com direito a um "bico" no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que funcionava no Palácio Tiradentes. "Ali o autor de Caetés fazia o copidesque de quase toda a literatura ideológica do Estado Novo", escreve Lêdo Ivo. Só mesmo no Brasil...
Outro perfil pungente - para se usar aqui um adjetivo da época - é o que Lêdo Ivo traça de Agrippino Grieco (1888-1973), que gastou sua longa vida de pobre ferroviário, depois aposentado com magros vencimentos, e morador do subúrbio carioca fazendo crítica literária, malbaratando o seu talento. "Em lugar de me ter dedicado a uma obra de criação literária, ao romance ou à poesia, gastei minha vida, falando desses efêmeros, que um amigo chamava de animais invisíveis a olho nu. Basta dizer que cheguei a ocupar-me do Herbert Moses. Que desperdício...", disse Grieco a Lêdo Ivo. Como hoje pouca gente sabe quem foi Herbert Moses (1884-1972), é de lembrar que foi jornalista, membro da direção do jornal A Noite, do Rio de Janeiro, e presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) de 1931 a 1965.
IV
Há ainda perfis de Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Austregésilo de Athayde, Augusto Frederico Schmidt, Murilo Mendes, José Lins do Rego, Cornélio Penna, Lucio Cardoso, Marques Rebelo, Vicente do Rego Monteiro e Josué Monteiro, entre outros, num total de 26 ensaios e perfis. Sem contar os poemas que têm Maceió por evocação. Ou seja, edição luxuosa em papel couchê, que conta com capa em azul granulado que reproduz tela do artista plástico Gonçalo Ivo, filho do autor, esta é uma obra formada por vários livros. E que merece distintas leituras.
Aliás, para não se alongar muito, basta repetir aqui que, fosse a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) um bloco comercial de respeito e não uma carta de (boas) intenções e tivesse a Língua Portuguesa maior representatividade no mundo - circunstâncias que, infelizmente, caminham juntas, ainda que díspares -, o poeta Lêdo Ivo já teria sido nobelizado, pois é só isso o que falta para lhe coroar a carreira.
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O VENTO DO MAR, de Lêdo Ivo, com pesquisa, seleção e organização de Monique Cordeiro Figueiredo Mendes. Rio de Janeiro: Editora Contracapa/Academia Brasileira de Letras, 312 págs., 2011, R$ 52,00. E-mail: [email protected]
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]
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