E me vem à mente a Andaluzia, não aquela invadida pelos reis católicos e seus padres vingativos, precursores do nazismo com seus autos de fé, e sim aquela que foi árabe por 700 anos. Quem tiver a ventura de se encontrar com a Alhambra em Granada, ou a Grande Mesquita de Córdoba, ou o Alcazar em Sevilha, não escapará à constatação da grandeza de uma civilização capaz de produzir obras tão deslumbrantes. Comovedoras, poéticas.
Não é que faltem outras provas da extraordinária contribuição da cultura árabe ao progresso da humanidade, e em todos os quadrantes. Por um largo período, séculos e séculos, o pensamento árabe foi decisivo nas artes e nas ciências, da escrita à matemática, da arquitetura à astronomia. Mas eu retorno, neste instante, às cidades andaluzas, onde os templos dos conquistadores aceitavam ao seu redor as juderias, os bairros judeus. Bairros e não guetos.
A conveniência entre árabes e judeus era muito diferente daquela que hoje se verifica no Oriente Médio. Pacífica, então, baseada na colaboração e no intercâmbio, feliz, tudo indica, dentro das possibilidades humanas de viver a felicidade. Diga-se que, longe da Grande Mesquita e da juderia que a cerca, ou ao descer da altura risonha onde se planta a Alhambra, Córdoba e Granada apresentam, fisicamente, alguma semelhança com Sorocaba.
Lembranças suscitam ideias e estas nos permitem viajar no tempo e no espaço. Ocorre-me o devaneio de Lawrence da Arábia em contraste à prepotência e à ferocidade dos turcos otomanos, da Grã-Bretanha e da França, que se esmeraram no projeto de fracionar a terra árabe a seu talante e em exclusivo proveito dos seus interesses imperialistas. Atrocidades morais e materiais foram cometidas pelos donos do poder global às margens daquele imenso golfo do Mediterrâneo, e à constante agressão acabaram por unir-se os Estados Unidos, debaixo do olhar condescendente de todo o Ocidente.
Fala-se muito de Hitler, com excelentes motivos, mas ninguém se incomodou com a chacina de 1 milhão e 200 mil armênios perpetrada pelo Império Otomano, o genocídio do começo do século passado. Resta o fato de que o Estado de Israel nasceu de súbito na Palestina, cujos habitantes ficaram exilados em sua própria terra. Pretendeu-se remir o monstruoso pecado do Holocausto, mas também postar o sentinela da civilização ocidental no coração da área humilhada.
E mais ainda pelos senhores locais, que se prestaram ao jogo ocidental, como Mubarak, por exemplo. Com Kaddafi a política das potências do Oeste ficou entre o cinismo e a hipocrisia, à sombra de uma inextinguível tentativa de negociação de paz e bem do fornecimento ininterrupto do petróleo. Vale lembrar que logo depois do golpe de Kaddafi, a aeronáutica líbia foi equipada com os Mirage franceses, enquanto a Alemanha contribuía para a criação na Líbia de uma indústria química de peso e a Itália baixava a cabeça diante da expulsão de 15 mil italianos do território líbio. Quanto aos Estados Unidos, depois de várias tentativas de assassinar o ditador, em 1986 revogaram as sanções econômicas quando Kaddafi aposentou seus projetos nucleares.
Não se esqueça que em 2009 a Grã-Bretanha libertou e devolveu à Líbia o autor do atentado de 1988 no céu de Lockerbie e que a Itália de Berlusconi de alguns anos para cá trata o coronel como grande estadista, recebe-o com pompa, assina com ele acordos de interesse nacional, sem contar aqueles de interesse privado do premier, talvez tomado de inveja por causa do harém do ditador, sempre incluído no seu séquito onde quer que viaje.
Pode parecer estranho que um forte e sadio exemplo de rebelião parta de uma região tão ofendida neste nosso mundo cada vez mais parvo e desigual. Se penso, porém, nas tradições árabes, na cultura de uma civilização que já foi dominante, não me surpreendo. E recordo os monumentos da Andaluzia.
PS. Por intermédio do carteiro e senador Eduardo Matarazzo Suplicy recebemos, Wálter Fanganiello e o acima assinado, uma carta em inglês da senhora Fred Vargas, a repetir suas teses peculiares contra a extradição de Cesare Battisti. Nada de novo, daí a inutilidade de uma resposta, a não ser a seguinte, que adoto como padrão, conforme exemplo do chanceler Antonio Patriota: entre Brasil e Itália foi assinado um tratado de extradição há cerca de 13 anos, o qual, aprovado pelos dois parlamentos, ganhou força de lei. Donde, respeite-se a lei. Não respeitá-la significa rasgar o acordo. Fica a pergunta: se o Brasil acredita em Fred Vargas e desacredita da Justiça do Estado Democrático de Direito italiano, por quais singulares cargas d'água assinou o tratado?
Mino Carta
Mino Carta é diretor de redação de CartaCapital. Fundou as revistas Quatro Rodas, Veja e CartaCapital. Foi diretor de Redação das revistas Senhor e IstoÉ. Criou a Edição de Esportes do jornal O Estado de S. Paulo, criou e dirigiu o Jornal da Tarde.
http://www.patrialatina.com.br/editorias.php?idprog=182bd81ea25270b7d1c2fe8353d17fe6&cod=7322
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