O ensino da Retórica

Adelto Gonçalves (*)

I

Ao contrário de outras línguas europeias, o idioma português é cada vez mais mal falado (e mal escrito). E não só no Brasil, como comumente se pensa nas camadas mais cultas. Também em Portugal não são poucos aqueles que se queixam da falta de rigor, elegância e sutileza que se vê no diálogo entre homens públicos ou mesmo nos artigos de opinião publicados em jornais e revistas. Aliás, nos dois lados do Atlântico, a ironia é um recurso cada vez menos usado porque todos temem que o auditório não a compreenda e, pior, que leve tudo ao pé da letra.

Foi pensando nisso que Maria Luísa Malato, doutora em Letras e professora de Metodologia e Retórica da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e Paulo Ferreira da Cunha, doutor em Direito e professor de Metodologia e Filosofia do Direito e Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, escreveram este Manual de Direito & Retórica, que constitui uma resposta não só às necessidades de estudantes de Direito como de candidatos a juristas ou juristas mesmo.

Se já não estamos no tempo do advogado, orador e escritor romano Cícero (106-43- a.C.), tampouco vivemos para ouvir as perorações do jurista, diplomata e filólogo baiano Rui Barbosa (1849-1923), mas pelo menos ouvimos pelas ondas do programa de rádio A Voz do Brasil as inesquecíveis orações de outro ilustre baiano, Josaphat Marinho (1914-2002), senador da República de 1962 a 1971 e de 1991 a 1999, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). E, portanto, sabemos muito bem como deveriam se expressar, pelo menos em tese, os nossos homens públicos.

Infelizmente, hoje, não são, na maioria, apenas os recém-formados que se submetem ao obrigatório exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que se exprimem mal por escrito ou oralmente. São gerações que se expressam mal, quando não são tatibitates, monossilábicas e até onomatopaicas. Substituem, muitas vezes, as palavras por grunhidos ou gestos. Ou pelas tatuagens que exibem pelo corpo. Tudo isso tem sido resultado não só de um ensino sucateado como de uma televisão nacional que impõe construções padronizadas e um sotaque majoritário que começa a destruir as variantes regionais. Sem contar a invasão das palavras inglesas que vieram nas asas da informática e das tecnologias importadas.

Porque oriundos desse estado de coisas, até juristas se expressam com erros e deficiências, exibindo um Português claudicante. Fala-se mal hoje por todo o Brasil – e não só nas tribunas, a começar pelo presidente da República que, se tem lá qualidades que o tornaram o mais popular dos nossos homens públicos em todos os tempos, é sobejamente conhecido pela maneira rude como maneja o idioma, não se eximindo nem mesmo de soltar palavrões se a platéia lhe parece convidativa – o que, diga-se de passagem, constitui péssimo exemplo para as novas gerações.

Se a ele se pode dar o desconto de não ter freqüentado os bancos escolares por muito tempo e sentir azia sempre que se põe a ler jornais, aos estudantes e, especialmente, aos utilizadores do Direito não se pode admitir que não dominem regras de composição ou ignorem noções básicas de gramática. “(...) se se claudica na exposição, se se definha perante a contrariedade de um argumento adverso, não há discurso dialógico, nem pode haver direito, que é triangulação de perspectivas. De uma tese, de uma antítese, de uma síntese”, dizem os autores na introdução deste Manual.

II

Ainda que tenha sido expurgada da maioria dos cursos acadêmicos, assim como o Latim – língua em que o Direito foi pela primeira vez pensado –, a Retórica é imprescindível para quem quer (e precisa) escrever bem, o que significa saber pensar e falar. Afinal, a Retórica ensina a organizar o pensamento, a expor os argumentos e a dar ordem ao discurso.

Saber escrever é fundamental em qualquer profissão, mas há duas em que não só é necessário saber escrever como saber escrever bem: jornalista e advogado. É por isso que, antes da regulamentação da profissão de jornalista no começo da década de 1970 – afinal, agora, derrubada por juristas nada exemplares, tal a falácia de seus argumentos –, a melhor preparação para quem almejasse se tornar um bom redator era o curso de Direito. Não foram raros os juízes que, antes de prestar concurso para a magistratura, e mesmo grandes advogados que, em seus verdes anos, ganharam a vida na redação ou na revisão de grandes periódicos.

Por isso, o que o estudante de Direito hoje deve dominar, em primeiro lugar, é o que todo jornalista formado deveria obrigatoriamente saber (até porque tem os quatro anos do curso para fazê-lo): usar com mestria o discurso direto e o discurso indireto, já que o discurso indireto livre, obviamente, deve ficar reservado àqueles que pretendem exercitar as artes da ficção.

Saber fazer isso com precisão já é meio caminho andado para quem terá de escrever uma peça jurídica. Se souber como fazer um lead, ou seja, uma abertura que priorize o que de mais importante o juiz precisa conhecer, já terá, então, alcançado grau de excelência, pois nestes tempos de tribunais abarrotados de processos o meritíssimo nem sempre tem tempo para ler toda a arenga. O resto é saber como encadear os argumentos e arrematá-los com uma conclusão atraente.

É claro que, dizendo-se assim, tudo parece muito fácil. Por isso, os alunos sempre perguntam: o que colocar entre a abertura e a conclusão? A resposta, nesse caso, pode ser uma boutade à la Ernest Hemingway (1899-1961), que, quando lhe pediram a receita para se escrever um bom romance, disse que bastavam uma abertura e uma conclusão atraentes. E o que colocar no meio? Coloca-se talento, acrescentou.

Isso é verdade, mas o talento, muitas vezes, pode ser desperdiçado, se não houver quem o discipline. É quando a Retórica entra em ação. Por isso, não devemos nos deixar levar por quem costuma dizer que o argumento de seu opositor não passa de mera retórica. Essa é resposta de quem não sabe que a Retórica é a ciência do bom uso da razão, da ordem e da sistematização. O que ele quer dizer, na verdade, é que o outro usa uma retórica vazia, ou seja, faz apenas um exercício de oratória, centrada apenas no pathos, na emoção.

III

Dizem os professores Malato e Cunha que a Retórica ensina-se com exercícios, com exemplos, com treinamentos, com provas e exames. Por isso, numa época em que pouco se escreve em sala de aula – talvez seja por isso que os alunos chegam ao ensino universitário com tão pouca familiaridade com o vernáculo –, o melhor professor de Português é aquele que usa boa parte de sua aula para exigir exercícios práticos de escrita. É claro que esse não é o melhor dos mundos para o professor que vive a dar aulas para classes superlotadas – com mais de 60 alunos –, pois terá de passar o resto do dia ou da semana a corrigir textos, mas não há outra saída: só aprende a escrever quem escreve. De preferência, todos os dias.

Lembram ainda os autores que a Retórica leva-nos a uma situação comum entre o Direito e a Literatura, “Em ambos, a Retórica só funciona se for esquecida pelo receptor, se não exibir os seus preceitos e lugares comuns, pelo menos de uma forma tão dominante que eles façam esquecer o sentimento de ser convencido: trata-se, em grande parte, de esconder os alicerces e os andaimes da construção retórica”, dizem, lembrando que nenhum narrador começa um romance dizendo que tudo aquilo não passa de um romance, pois, afinal, o mais convincente romance é quase sempre o anti-romance. “Não se lê uma fábula questionando-se o mundo em que os animais falam ou usam colete ou talheres: pois não vivem eles num tempo em que os animais falavam?”, acrescentam.

IV

Com mais de dois mil e 500 anos, a Retórica evoluiu, ao longo dos séculos, e mudou de nome: hoje, ela pode ser também conhecida como Lógica, Dialética ou Arte Oratória. E confunde-se, muitas vezes, com a Gramática e a Poética. Aliás, as figuras de linguagem ou de estilo passaram a ser objeto da Estilística, outra filha tardia da Retórica, mas também são estudadas nas disciplinas Comunicação e Expressão e Leitura e Interpretação de Textos. Mais recentemente, a Retórica dissolveu-se nas teorias da Comunicação, de que o Marketing é o melhor exemplo.

Tudo isso explica esta feliz união de esforços de dois professores de áreas aparentemente distintas, embora irmãs e extremamente íntimas – não esqueçamos que, a partir do século XVIII, quase todos os nossos melhores poetas eram bacharéis em Leis. Portanto, este livro vem ocupar um vazio na especialização acadêmica e prática de juristas e humanistas tanto em Portugal como no Brasil. E deveria fazer parte das bibliotecas de todos os cursos de Direito dos dois países.

Mais: como manual, deveria mesmo ficar à mão do estudante – e ser levado vida afora –, pois traz uma lista de verdadeiros argumentos (em latim, na maioria), ou de brocardos ou locuções que funcionam como tais que podem ser usados em várias situações.

Um deles, neste livro citado à pág.61, li, certa vez, num documento que consta do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT, Real Mesa Censória, caixa 36 (1799), 16/8/1799): Amicus Plato sed majus amicus veritatem ou Amicus Plato, sed magis amica veritas (Platão é meu amigo, mas a verdade é mais minha amiga). Foi escrito pelo censor Francisco Xavier de Oliveira para justificar os vetos que fazia a alguns versos de Bocage (1765-1805), de quem se dizia amigo e admirador de seu talento.

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MANUAL DE RETÓRICA & DIREITO, de Maria Luísa Malato e Paulo Ferreira da Cunha. Lisboa: Quid Juris Sociedade Editora, 350 págs., 22,50 euros, 2007. E-mail: [email protected]. Site: www.quidjuris.pt

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). É professor-titular do curso de Direito da Universidade Paulista (Unip) e de Jornalismo Impresso da Universidade Santa Cecília (Unisanta), de Santos-SP. E-mail: [email protected]

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey