Pensar o Brasil com Sérgio Buarque de Holanda

Adelto Gonçalves (*)

I

Para quem não se conforma com os atuais altos índices de popularidade do presidente Luís Inácio Lula da Silva (aprovado por mais de 77,7% da população brasileira, um recorde histórico), a leitura de uma palestra dada por Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) na Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro, em 1967, no começo da travessia do conturbado regime militar (1964-1985), pode ajudar a explicar muita coisa.

A palestra, “Elementos básicos da nacionalidade: o homem”, encerra o livro Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas, coletânea que reúne ensaios de 28 estudiosos de várias gerações e procedências, além de imagens, bibliografia e textos poucos conhecidos do próprio historiador, lançada pela Editora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pela Editora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e organizada pelos professores Pedro Meira Monteiro, da Princeton University, e João Kennedy Eugênio da Universidade Federal do Piauí.

No texto, Sérgio Buarque de Holanda recorda uma observação de Joaquim Nabuco (1849-1910) sobre uma suposta submissão do povo brasileiro, que seria “maior do que a das outras nações sul-americanas”, o que poderia explicar um pouco o atual conformismo da população com o que o economista chileno Sebastián Edwards, professor da Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA) e consultor econômico do governador da Califórnia, Arnold Schwarzenegger, já definiu como “economia da melancolia”, ou seja, uma trajetória sem crises, mas também sem crescimento.

À época, na casa daqueles que haviam derrubado e enxovalhado as garantias individuais dos cidadãos, Sérgio Buarque de Holanda citou Joaquim Nabuco para contestá-lo, argumentando que não se podia dizer que as tentativas de governos ditatoriais haviam encontrado o povo brasileiro cegamente submisso ou inerte. “E se é certo que esse povo recebeu com aparente indiferença a mudança de regime em 1889, e não se deixou abalar, depois disso, por tendências restauradoras, para tanto há de ter contribuído largamente o sentimento generalizado de que a Monarquia já tinha cumprido sua missão e pouco adiantaria querer sustentá-la ou restaurá-la a qualquer preço”, dizia.

Àquele tempo, um ano antes da grande noite do Ato Institucional nº 5 que se abateria sob a Nação, Sérgio Buarque de Holanda deixava claro que acreditava que, apesar da sua ancestral submissão aos poderosos de plantão, o povo brasileiro permaneceria fiel aos princípios democráticos. Para ele, historicamente, o Brasil, depois de uma fase mais ou menos prolongada de ditadura, empenhava-se sempre por voltar à aplicação de constituições escritas ou das consultas eleitorais. Por trás da frase, com certeza, estaria a sua esperança de que a ditadura, que já levava três anos, logo refluísse e o País voltasse à senda democrática. Aconteceu, porém, o contrário: Sérgio Buarque de Holanda nem viveria para ver o fim do regime ditatorial.

Ao se referir ao regime igualmente de exceção que se inaugurou em 1930 -- que, até hoje, é chamado de Revolução de 30 por historiadores pouco perspicazes --, não deixa de mostrar Getúlio Vargas como homem que se via como chamado pela Providência para guiar a nação em crise, exercendo forte apelo sobre as grandes massas, “lançando os dados nesta ou naquela direção, ora para a direita, ora para a esquerda, numa versatilidade que só não enganava aos muito precavidos ou aos muito teimosos”. Qualquer semelhança com o governante atual, descontado o fato de que vivemos hoje sob regime democrático com os devidos freios a aventuras caudilhescas, não é mera coincidência.

O resultado disso, dizia Sérgio Buarque de Holanda, foi que, “conservadas as massas, assim, na dependência do poderio de um homem, era como deixá-las em estado de menoridade ou de imaturidade para seguir os rumos naturais”. De onde vem, portanto, essa submissão natural das massas brasileira? Essa vocação para se deixar levar por um homem providencial?

Dizia Sérgio Buarque de Holanda que viria das duas sociedades diferentes nos níveis e modos de vida que existem no Brasil: a que, abrangendo a maioria do País e de sua população, exibe ainda hoje traços coloniais, e aquela que, representada sobretudo pelo Estado de São Paulo, não receia o progresso nem o futuro. Na primeira se achariam ainda encastelados os resíduos de um passado renitente e se apresentam condições arcaicas, que lembram as da Índia e do Egito, enquanto na outra, mais ativa e progressista, encontram-se aspectos capazes de evocar Nova Iorque ou Chicago.

Mais de 40 anos depois, essa análise, feita com base nas idéias do historiador francês Jacques Lambert (1891-?), autor de Os dois Brasis (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1969), ainda seria válida? Sem dúvida, porque o Brasil, se cresceu muito nas últimas quatro décadas, poucas modificações sofreu em sua estrutura social e política porque continua refém do egoísmo e da cegueira das oligarquias que o dominam.

Em outras palavras: não houve nenhuma revolução social nem qualquer ordenação nova na sociedade brasileira. Até porque as oligarquias estaduais -- aquelas mesmas oligarquias que se achavam representadas no Parlamentoao tempo da Monarquia e que ganharam maior peso com a República -- ainda continuam suficientemente bem representadas no Congresso, sempre dispostas a bloquear todos os esforços que visem eventualmente a romper o status quo.

Basta ver que, até agora, passados seis anos de governo Lula, o Congresso não se dispôs a votar uma reforma tributária para valer, que desonere os custos das empresas e dos cidadãos assalariados. A ponto de o País continuar a contar com duas espécies de cidadãos: de um lado, aqueles que pagam compulsoriamente ao Estado; de outro, aqueles que roubam o Estado. Até porque os que fazem parte das grandes massas marginalizadas nem sequer podem ser chamados de cidadãos.

II

Entre os ensaios dos analistas convidados a participar deste livro, um dos mais instigantes -- embora seja difícil escolher os melhores, entre tantos tão bem escritos e pensados -- é “Raízes do Brasil y El Laberinto de la Soledad: una comparación” em que José Ortiz Monasterio, do Instituto Mora, do México, compara as obras de Sérgio Buarque de Holanda e Octavio Paz (1914-1998), encontrando em ambas enormes semelhanças, já que tomam elementos da história, da sociologia, da literatura, da psicologia e outras disciplinas a ponto de tornar sua classificação extremamente difícil.

Já em “Sérgio Buarque de Holanda, historiador das representações mentais”, Ronaldo Vainfas, professor de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), admite que pensar Sérgio Buarque como historiador das mentalidades avant la lettre seria uma tentação fácil, mas que pode ser inexata, já que Visão do Paraíso (1958) é livro de tamanha complexidade teórica e erudição que seria impossível classificá-lo em qualquer esquema rígido ou escola historiográfica.

Vainfas lembra ainda que Visão do Paraíso, quando saiu à luz, estava na contramão da história e, por isso, ficou relegado ao ostracismo por várias anos. E só na década de 80 acabaria por adquirir a importância devida, depois de ter servido de inspiração para Laura de Mello e Souza escrever O Diabo e a Terra de Santa Cruz (1986), livro que, segundo o professor, inaugurou a leva de pesquisas da hoje chamada “nova história cultural” no Brasil. Como se vê, os ensaístas concordam que a obra de Sérgio Buarque de Holanda é de tamanha amplidão que não pode ficar restrita a categorias ou classificações.

III

Em “Raízes do Brasil: uma releitura”, Brasil Pinheiro Machado (1907-1997), antigo professor de História na Universidade Federal do Paraná, destacou também a análise de Sérgio Buarque de Holanda segundo a qual o liberalismo, nas democracias sul-americanas, tendem para o caudilhismo, diante da ausência ou inconsistência dos órgãos partidários. É o que se vê, hoje, na figura do presidente Lula, que paira acima dos partidos, inclusive daquele que fundou e que lhe serviu de apoio para ascender ao poder. Curiosamente, o prestígio político e popular de Lula, segundo as mesmas pesquisas, não surge, porém, como uma força capaz de se transferir para um possível candidato à sua sucessão. É, portanto, pessoal e intransferível, o que lhe permite sonhar com um tranquilo retorno à cadeira presidencial em 2014.

IV

Sérgio Buarque de Holanda, ainda estudante, começou a colaborar em publicações como Correio Paulistano, A Cigarra e Revista do Brasil. De tendências monarquistas, influenciado pela leitura de Eduardo Prado (1860-1901), autor de A ilusão americana (1893), que considerava funestos os transplantes mecânicos das instituições dos Estados Unidos, como fizeram os primeiros republicanos no Brasil, o futuro historiador mudou-se para o Rio de Janeiro em 1921, matriculando-se na Faculdade de Direito.

Ligado aos modernistas de São Paulo, tornou-se representante da revista Klaxon no Rio de Janeiro. Em 1927, foi diretor de um jornal em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, e, em 1929, viajou para a Europa, sobrevivendo em Berlim com colaborações para jornais brasileiros e trabalhando em agências de notícias, como a Havas e a Associated Press.

Retornou ao Brasil em 1930, publicando então na revista Espelho o ensaio “Corpo e alma do Brasil”, primeira versão do que seria o livro Raízes do Brasil (1936). Continuou a trabalhar na Associated Press e a coloborar como crítico literário no Diário de Notícias. Trabalhou ainda no Instituto Nacional do Livro. Em 1944, começou a trabalhar na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e publicou Cobra de vidro, reunindo textos sobre crítica literária, sociologia, história e temas afins. Em 1945, saiu o seu primeiro livro de pesquisa em história, Monções.

Naquele mesmo ano, assinou um manifesto contra a ditadura de Getúlio Vargas. Em 1946, mudou-se definitivamente para São Paulo, dedicando-se sobretudo à pesquisa histórica, embora continuasse a colaborar em jornais, como a Folha Carioca e a Folha de S.Paulo. Entre 1946 e 1956, foi diretor do Museu Paulista, mas, entre 1952 e 1954, atuou ainda como professor na Itália. De volta, retomou a direção do Museu Paulista, só o deixando para assumir a cadeira de História da Civilização Brasileira na Faculdade de Filosofia de São Paulo. Por essa época, publicou Caminhos e fronteiras (1957).

De 1958 é a primeira edição de Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil, apresentado originalmente como tese para a cátedra de História da Civilização Brasileira. Em 1972, como responsável pela História Geral da Civilização Brasil, da qual se encarregou entre 1960 e 1972, publicou Do Império à República, que formava o volume V daquela coleção.

Em 1979, publicou Tentativas de mitologia, em que reuniu ensaios semelhantes aos que incluíra em Cobra de vidro. Em 1980, o antigo pensador de tendências monarquistas inscreveu-se como membro-fundador do Partido dos Trabalhadores (PT), que, antes de chegar ao poder com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva à presidência da República em 2002, anunciava-se como uma agremiação de tendências socialistas. Morreu em São Paulo, em 4 de abril de 1982.

Deixou inacabado Capítulos de literatura colonial, que deveria ter sido o sétimo volume da História da Literatura Brasileira, dirigida por Álvaro Lins, livro organizado e prefaciado por Antonio Candido em 1991. Em 1996, Antonio Arnoni Prado organizou O espírito e a letra, coletânea em dois volumes de suas críticas publicadas em jornais entre 1920 e 1959. Sérgio Buarque de Holanda screveu ainda uma extensa introdução à coletânea de textos do historiador alemão Leopold von Ranke (1795-1886), O atual e o inatual em L.von Ranke (1979), e o livro O extremo Oeste, publicado postumamente em 1986.

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SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA: PERSPECTIVAS, de Pedro Meira Monteiro e João Kennedy Eugênio (org;).. Campinas: Editora da Unicamp. Rio de Janeiro: EdUERJ, 719 págs., 2008.

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey