Depois da chegada de Pedro Álvares Cabral em 1500, outros navegantes estiveram em terras brasileiras, deixando em vários pontos da costa alguns poucos europeus que se misturaram aos índios e viviam nas aldeias dos naturais do lugar. Não se pode dizer que esses primeiros homens vinham para o país desconhecido com a nobre missão de colonizar o gentio no sentido de civilizá-lo, como costumavam escrever historiadores mais antigos, ainda influenciados pela mítica que marcou toda a história do chamado descobrimento.
Eram homens rudes, na imensa maioria analfabetos, que fugiam da miséria em que viviam no Reino. Não traziam, portanto, nenhum ideal mais nobre do que se manter vivo a qualquer custo, o que, convenhamos, já não era pouco. Muitos, inclusive, condenados por crimes atrozes em Portugal, foram deixados à força na terra desconhecida. Enfim, eram pobres dispostos a escravizar miseráveis.
Essa é a verdadeira história da colonização que se pode intuir das cartas que escreveram os primeiros jesuítas que vieram para a terra americana e que, em boa hora, Sheila Moura Hue, doutora em Literatura Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, traduziu do espanhol. Ainda que impressas em Coimbra em duas coletâneas uma de 1551 e outra de 1555 , essas cartas foram traduzidas à época para o espanhol porque assim poderiam alcançar maior público. Impressionam pela força de suas informações e pela sinceridade, objetividade e singeleza dos relatos.
Os jesuítas, empenhados em converter os gentios à religião cristã, mal podiam acreditar no que viam: os colonos portugueses que encontravam naquelas pequenas povoações eram mais bárbaros e piores que os próprios índios, causando muitos escândalos, ao viver com muitas mulheres, fazendo filhos em quem lhes apetecesse, sem se confessar. Enfim, vivendo em permanente pecado mortal. Não se pense, porém, que os clérigos passavam ao largo das dissipações abaixo do Equador: muitos logo se tupinizavam, vivendo como o diabo gosta.
Não eram assim tão poucos e alguns já estavam na terra havia mais de duas ou três décadas, como se depreende de uma carta escrita em Pernambuco por Antonio Pires (Castelo Branco, 1519-Bahia, 1572), que chegou ao Brasil com o primeiro grupo de jesuítas em 1549: (...) Logo que chegamos, muitos começaram a se afastar de suas mancebas e de outros pecados, parece-me que foi por medo, por lhes parecer que trazemos poder para os castigar (...). Casam-se muitos, o que antes não se fazia, porque queriam mais estar amancebados com suas escravas e com outras negras forras. Aqui nesta terra há um costume, que a maioria dos homens não recebe o santo sacramento, porque têm as negras com que estão amancebados em tanto que há homens que há vinte anos que não comungam, e confessam-nos e absolvem-nos. Tudo isso se faz pelas nossas costas, pois agora é nosso ofício remediá-los.
Também em Pernambuco, então a mais povoada das capitanias, o padre Manuel da Nóbrega (Minho, 1517-Rio de Janeiro, 1570) queixa-se, em carta de 11/8/1551, de que muitos filhos de cristãos andam pelo sertão perdidos entre os gentios; sendo cristãos vivem em seus bestiais costumes. Reclama ainda do comportamento de alguns clérigos da terra, acusando-os de ter mais ofício de demônios que de clérigos, porque além de seu mau exemplo e maus costumes, querem contrariar a doutrina de Cristo e dizem publicamente aos homens que lhes é lícito estar em pecado com suas negras, pois que são suas cativas, e que podem ter os assaltados, pois que são cães e outras coisas semelhantes, por escusar seus pecados e abominações.
É claro que nem sempre é fácil ao leitor de hoje entender estes textos, mas a professora Sheila Moura Hue, a exemplo do que já havia feito na edição de A primeira história do Brasil, de Pero de Magalhães Gândavo (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2004), permeou o livro com esclarecedoras notas de rodapé em que se pode ficar sabendo que negras eram as índias e assaltados, os índios escravizados.
Na introdução, Sheila Moura Hue passa adiante a informação de que a armada que acompanhou o governador-geral Tomé de Sousa e desembarcou na Bahia de Todos os Santos, no dia 29/3/1549, seria composta por cerca de mil homens. É verdade que, em seguida, deixa explícita a sua estranheza ao especular como esses mil homens teriam sido abrigados entre os 45 habitantes da povoação do Pereira até que se iniciassem as edificações da nova vila, a futura cidade de Salvador, mas não deixa de aproveitar o contraste numérico entre os moradores e os recém-chegados para observar que isso daria bem a noção do caráter do empreendimento.
Ora, não é preciso pensar muito para concluir que, provavelmente, não passa de mais uma fantasia colocada a andar por historiadores antigos a informação de que mil pessoas fariam parte da armada de Tomé de Sousa, a exemplo daquela segundo a qual, com a família real em 1808, chegaram ao Rio de Janeiro oito, dez, 15 ou 20 mil pessoas, como se lê em vários livros publicados já no século XXI.
Se um pesquisador minucioso como Nireu Cavalcanti diz em O Rio de Janeiro Setecentista (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2004, pág. 96) que, no começo do século XIX, as embarcações comerciais e de guerra estavam dimensionadas para 80 passageiros em média cada, delas excluída a tripulação, como imaginar que os galeões aquelas cascas de noz que aportaram na Bahia de Todos os Santos pudessem trazer cerca de mil homens?
Se lembrarmos que no Rio de Janeiro, nos anos de 1808 e 1809, aportaram menos de 30 embarcações trazendo a Corte e os acompanhantes, num total de 444 pessoas, de acordo com as pesquisas de Cavalcanti, difícil é aceitar que Tomé de Sousa tenha chegado a Bahia com mais gente em época em que a travessia dos mares era muito mais difícil e custosa. Elementar, caro leitor.
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