Tiro al bersaglio: começa a temporada de caça no estreito de Messina

Pernis apivorus é o nome científico de uma ave migratória que todos os anos cruza o golfo de Messina, entre a Sicília e a Calábria, no sul da Itália, onde é conhecida comumente como “Falco pecchiaiolo”, tendo influenciado a origem do nome o fato deste falcão ter uma dieta quase que essencialmente constituída por larvas, pupas e adultos de vespas (pecchia, em italiano).

Em Portugal, esta exuberante ave de rapina é conhecida como Falcão-abelheiro e atinge, quando adulta, 60 cm medidos do bico ao final da cauda e 150 cm de envergadura das asas. Os seus sinais característicos são a plumagem clara no peito, com listras verticais marrons, dorso marrom escuro, topete cinza na cabeça e olhos amarelos. Constrói o seu ninho no alto das montanhas do norte e centro da Europa até a Sibéria, e é uma das espécies migradoras de primavera e outono.

Muitas aves européias invernam ao sul do Saara, na África tropical e subtropical, sendo que a maior parte das residentes na Europa ocidental migra pelo estreito de Gibraltar, embora algumas sigam pelo estreito de Messina, na Itália, enquanto que as populações orientais migram pelo estreito de Bósforo e pela península do Sinai. No início do mês de maio é possível observar milhares destas aves cruzando o Mediterrâneo, na migração de primavera, ou seja, retornando à Europa depois de uma temporada quente na África sub-sahariana.

Junto com o Falcão-abelheiro, outras espécies de aves de rapina cruzam o estreito de Messina, entre elas a Águia-sapeira ou “Falco di palude” para os italianos (1), o Milhafre-preto ou “Nibbio bruno” (2), o Peneireiro-das-torres ou “Grillaio” (3), o Búteo-mouro ou “Poiana codabianca” (4), o Peneireiro ou “Gheppio” (5), o Falcão-peregrino (6) que também reside no Brasil, além de outras espécies que acompanham os falcões nesta travessia, como as Cegonhas brancas (7), todas estas espécies protegidas por Lei, porém, todas ameaçadas por ações predatórias do homem.

Aves de rapina sempre foram admiradas pelo homem, desde tempos remotos, pelo seu porte altivo, olhar penetrante, vôo majestoso e pelas habilidades de caça. Não matam por crueldade, mas por necessidade alimentar, e encontram-se no topo da cadeia alimentar, garantindo o equilíbrio dos diferentes ecossistemas que habitam, eliminando indivíduos doentes e menos viáveis de inúmeras espécies, suas presas, contribuindo desta forma para a seleção natural tão preconizada por Darwin.

Os ventos que sopram do norte sobre a Sicília não causam riscos à migração. No entanto, os ventos que sopram do sudeste fazem com que as aves migratórias tenham que realizar um vôo bastante baixo na travessia, e desta forma correm grande risco de vida, pois podem ser facilmente abatidas pelos “bracconieri”, como são chamados na Itália os caçadores furtivos, que matam principalmente os falcões.

A atividade venatória, se assim podemos chamar este ato criminoso, atingiu o apogeu da barbárie nas últimas décadas. As aves abatidas em vôo caem ao solo, mortas ou gravemente feridas. Após o disparo e a satisfação de terem atingido o alvo (bersaglio), os caçadores geralmente nem se aproximam das aves, já satisfeitos pelo dano causado e com receio de serem flagrados pela polícia florestal italiana com as aves mortas. Apesar da proibição de caça, as aves todos os anos são abatidas em grande quantidade.

Muitos destes caçadores ilegais do sul da Itália possuem estreitos vínculos com a 'ndrangheta, a máfia calabresa, que ameaça de morte e agride os efetivos da polícia florestal e os ambientalistas, voluntários de todas as idades, que durante a travessia das aves tentam impedir, de alguma forma, o massacre na região do estreito de Messina. Estes mafiosos, na intenção de desencorajar os ambientalistas, chegam ao extremo da brutalidade, realizando atentados nas sedes da LIPU, a mais atuante associação italiana de proteção às aves, além de constantemente incendiarem veículos da polícia florestal e das associações ambientalistas.

Alguns elementos que confirmam a conexão entre os caçadores ilegais e o crime organizado é o uso de armas clandestinas e o controle do território por "staffette" e "gregari", pessoas que trabalham como mensageiros, sinalizando a chegada das forças de ordem. Além disto, muitos caçadores ilegais, fichados pela polícia por agressões nos confrontos com os ambientalistas, foram mortos nas últimas décadas durante vários episódios da guerra da 'ndrangheta na “penisola calabrese”.

O empenho da polícia florestal italiana tem sido fundamental na prevenção e repreensão das ações de caça ilegal às aves de rapina, com operações que já levaram para a cadeia perigosos assassinos, além da descoberta de depósitos de armas clandestinas, construções sem autorização, principalmente bunkers no campo, plantações de droga, etc. No entanto, os criminosos continuam nas suas ações, disparando contra as aves até mesmo dos quintais de suas casas, nos centros habitados.

Entre outras ameaças aos falcões, além da perseguição humana através da caça furtiva está a alteração dos hábitats naturais através da fragmentação e contaminação, destruição de florestas autóctones, incêndios criminosos que destoem ecossistemas e biótopos de nidificação, a agriculturaextensiva que com a erradicação de grandes áreas florestais reduzem os hábitats destas espécies, a colisão e eletrocussão em linhas de distribuição de energia, uma vez que muitas destas espécies utilizam frequentemente apoios elétricos como pouso e dormitório. Infelizmente, no nosso planeta, grande parte da biodiversidade está desaparecendo, e as espécies mais ameaçadas de extinção são aquelas presentes no topo da pirâmide, espécies com dificuldades de dispersão, espécies endêmicas, migratórias e com hábitos gregários.

Muitas das aves que conseguem cumprir a viagem migratória são vítimas da captura ilegal realizada através de estratégias cruéis. Debilitadas pela longa viagem, as aves são atraídas às armadilhas através de iscas. Na captura, inevitavelmente pernas e asas são quebradas. Aprisionadas, estas aves são acomodadas em grande número em recintos pequenos, fechados e sem comida. Desta forma são transportadas até os centros de comércio ilegais, onde são vendidas como animais de estimação ou para a alimentação, no consumo familiar e oferecidas em restaurantes. Estas aves são fontes de renda ilegítima e não tributável.

Numa manhã, em algum lugar da Escandinávia, um garoto encontrou um Grou (8), ave também migratória e ameaçada de extinção. Este Grou estava com os olhos vazados a chumbo e as asas partidas. Este achado provocou um processo, pois o veterinário chamado para cuidar da ave se recusava a tratá-la, pois era expressamente proibido por Lei tocar num Grou. O animal, que resistira à carga de chumbo de um caçador furtivo, quase morreu nas malhas da burocracia, até que um jardim zoológico finalmente foi autorizado a aceitá-lo. Mais tarde, apanhando-se uma fêmea igualmente estropiada, juntaram-se os dois inválidos.

Depois de vários anos de união, a Grou pôs finalmente alguns ovos, a imprensa e o rádio dedicaram ao acontecimento uma atenção que outrora só se reservava ao nascimento de um herdeiro ao trono. Levantou-se uma torre apropriada, para se observar com binóculos o que se passava no ninho. Como para zombar da perversidade dos homens, o filhote que chegou a sair da casca perdeu-se no pântano, onde talvez tenha sido vítima dos numerosos inimigos destas aves. Através de milhões de anos de experiência, os animais habituaram-se a ver perecer mais de noventa por cento dos filhos. É, pois, quase impossível que um filhote único na natureza livre atravesse a zona perigosa da primeira idade. Não se reparam tão facilmente velhos pecados.

Leonardo escreveu: “chegará o dia em que os homens conhecerão o íntimo dos animais, e nesse dia, um crime contra um animal será considerado um crime contra a humanidade." São passados cinco séculos desde que um dos maiores sábios que a humanidade já conheceu nos deixou esta frase. Hoje, são milhares as pessoas envolvidas em todo o mundo no tráfico e na caça furtiva de animais silvestres e na destruição sistemática dos seus ambientes naturais. No entanto, alguma esperança reside na evolução cultural das próximas gerações, talvez mais atentas aos problemas ambientais.

Nomes científicos das espécies citadas o texto: (1) Circus aeruginosus; (2) Milvus migrans; (3) Falco naumanni; (4) Buteo rufinus; (5) Falco tinnunculus; (6) Falco peregrinus; (7) Ciconia ciconia; (8) Grus grus.

Fabio Rossano Dario

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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