Os russos também amam seus filhos: uma visão diferente

Vamos contextualizar o que é um momento delicado nas relações internacionais e nos perguntar quais ações alternativas poderiam ter sido tomadas?

Deixe-me começar dizendo que, ao contrário da maioria dos meus leitores, eu disparei e manusiei praticamente todo tipo de arma imaginável, de pistolas a fuzis automáticos, metralhadoras leves e pesadas e, portanto, estou bem ciente do impacto que elas têm em um alvo de papelão em um campo de tiro e ainda mais consciente do impacto que têm no corpo de um ser humano. Também estou ciente da tragédia que é a perda de um soldado, ou de um civil, sentida por qualquer família em qualquer lugar e sei que as lágrimas que choram têm gosto de sal, sejam elas por um soldado russo, um soldado ucraniano, um residente russófono de Donbass ou um residente de língua ucraniana de uma aldeia perto da zona de contato. Ou em qualquer outro lugar.

Isto não é acerca de ucranianos e russos. Quantas famílias são mistas, quantos ucranianos amam sua avó russa, quantos russos adoram o tio ucraniano? São e foram sempre nações irmãos e embora eu não seja russo, sei que toda a nação russa está angustiada com esses eventos. Ninguém gosta de guerra e ninguém odeia os ucranianos, nem a Ucrânia tampouco.

Não me dá nenhum prazer sentar aqui escrevendo este texto hoje e posso garantir aos meus leitores, todos eles, que estou muito preocupado com o que está se desenrolando diante dos meus olhos. 

No entanto, como jornalistas, temos o dever de expressar os fatos de forma lógica e objetiva, de informar, não criar desculpas ou distorcer a realidade. Como jornalistas, nossa reputação se baseia em quantas pessoas se preocupam em ler o que escrevemos e no registro que deixamos na Internet mesmo depois de termos parado de escrever. Isso depende do conteúdo que produzimos. Um jornalista não é apenas um blogueiro, temos um cartão internacional de correspondente ou jornalista, que é registado no respectivo organismo oficial e é pago, e que nos dá permissão para escrever. Então, o que escrevemos deve importar.

Apresentando um contexto

É extremamente infantil e diria, criminoso, apresentar um lado da história porque a população geralmente falando, sabe nada de nada e é muito facilmente persuadido a tomar um lado ou outro. Basta colocar a imagem de um tanque russo (na Ucrânia ou até em outro país) ao lado de uma moça ucraniana de seis anos a berrar em pânico e gerar uma opinião tipo “Olhem que filhos da p***!”

Mas eu não estou aqui para isto. Se ganhei alguma reputação nas décadas que tenho estado a escrever era uma reputação de alguém que escrevia o que entendia ser a verdade e de alguém que está sempre tentando criar pontes – entre Portugal e a Rússia (Pravda.Ru), entre Portugal e os CPLP (África Today), entre a comunidade russófona em Portugal (KP v Portugalii), entre a população africana em Portugal (Seminário África). Pontes de amizade, pontes culturais; e ganhei a reputação por tratar os meus leitores com respeito e não como meninos e meninas. Aqui, trato com respeito russos e ucranianos for forma igual.

Pessoalmente, gosto de ler e ouvir muito antes de falar ou escrever, e por isso mesmo aqueles que têm visões políticas diametralmente opostas às minhas geralmente respeitam minha opinião e me dizem que estou “dolorosamente perto da marca” em tantas ocasiões. Ao contrário de muitos outros, não estou aqui para reiterar propaganda ou agir como mensageiro de alguém que me disse o que dizer. Ninguém me diz o que escrever, ou não escrever. Desculpem destruir a história de censura na imprensa russa mas eu coloco meus artigos directamente nas versões inglesa e portuguesa (sou diretor da versão portuguesa desde 2002 e co-editor da versão inglesa). O que escrevo vem do coração, digo a verdade. E aqui hoje vou apresentar um contexto para a situação na Ucrânia. Gostaria de exortar as pessoas a lê-lo até o fim, e depois formar uma opinião. 

O que não quero ver é gerações de europeus a crescerem a odiar a Rússia e os russos e gerações de russos a odiar os ucranianos. Como disse, isso não se trata de russos e ucranianos. Trata-se de um episódio muito triste na geo-política. Com vítimas humanas.

Desenhando a linha do tempo

Os meios de comunicação ocidentais gostam às vezes de traçar linhas do tempo, tal como seus políticos de outrora gostavam de desenhar linhas em mapas, apresentando uma versão distorcida da verdade. Olhar para as manchetes de seus jornais esta semana apresenta uma visão da terra dos cucos nas nuvens em que vivem aos seus espectadores e leitores. Mesmo aqueles que afirmam ser independentes incluem frases de ocasião sensuais para animar uma história ou demonizar alguém. Demonologia é o que eles fazem melhor.

Mas demonologia é um crime de ódio. Não estamos aqui para disseminar o ódio. Vejam o que acontece. Destrói famílias. Estamos aqui, ou pelo menos eu estou aqui, para criar pontes e isso começa pela compreensão da realidade.

Vamos, portanto, traçar a linha do tempo no início, na formação da Ucrânia, que significa “A margem” ou “região de fronteira” em russo/ucraniano (línguas semelhantes). Margem...de quê? Da Rússia e de todos os povos que constituíram o Reino da Rus, que incluiu Kiev, partes da Bielo-Rússia e partes da própria Rússia (hoje). Isso, séculos antes da integração da República Socialista Soviética da Ucrânia na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e antes da independência como Estado em 1991, período em que a Crimeia (Rússia) havia sido doada à Ucrânia pelo presidente soviético ucraniano Krushchyov, no que alguns descrevem como um ato bêbado de estupidez tomado por capricho, simplesmente porque ele podia, e nessa época já cerca de 20% da população da Ucrânia falava russo, seguindo costumes e tradições russas e a Igreja Ortodoxa Russa, em regra cada vez mais concentrado quanto mais a leste. Hoje esta região é chamada de Bacia do Rio Don, ou Donbass e muitos destes ucranianos russófonos vivem nas regiões de Lugansk e Donetsk.

Até agora, acredito que a maioria dos meus leitores concordará comigo. Apresento meu email abaixo para aqueles que discordam.

Até 2014, quando um golpe de Estado, ou Putsch, conduzido por um grupo de políticos, incluindo fascistas, derrubou o presidente democraticamente eleito, Viktor Yanukovich, o povo de Donbass gozava de liberdade cultural. Eles poderiam enviar seus filhos para escolas de língua russa, se quisessem, poderiam falar e usar a língua e os costumes russos livremente, poderiam frequentar a Igreja Ortodoxa Russa e viver como ucranianos russófonos, livres. Alguns se casaram com ucranianas/os de língua ucraniana e tiveram famílias mistas e durante os tempos soviéticos e, em geral, até 2014, ucranianos e russos (embora alguns russos diferenciam entre ucranianos orientais e ocidentais ao descrevê-los) se consideravam irmãos e irmãs.

2014, o ponto G

Agora, 2014 é onde a imagem se tornou mais sombria e sinistra. Testemunhas oculares me disseram, e estou falando de jornalistas profissionais registrados que trabalham para a mídia ocidental, que durante o tumulto na chamada Praça Maidan em Kiev, tiros foram disparados contra a multidão não pela força policial ucraniana, mas por agentes não identificados do Hotel Ucrânia, mais especificamente do quinto e sexto andar, para criar “mártires” e agitar a população. Não posso dizer se isso aconteceu, eu não estava lá. Mas quem me disse não tinha qualquer razão de inventar uma história destas.

O que aconteceu nas semanas seguintes foi que apareceram aglomerações de grupos de bandidos, usando insígnias nazistas e carregando armas de fogo, cantando “Morte aos russos e judeus” nas ruas e atacando ucranianos russófonos e judeus, em Kiev. Esses ataques cresceram em violência e se transformaram em massacres em Slavyansk, em Odessa, em Mariupol, em Donetsk, no leste da Ucrânia, enquanto faxineiras eram estranguladas com fios telefônicos. Avós indefesas foram atacadas por bandidos fascistas gritando obscenidades e vomitando ódio, vestindo uniformes neonazistas. Vestindo suásticas. Escrevi sobre isso na época e foi negado por aqueles que apoiam Kiev. Muito do material foi riscado da Net e sim, isso acontece, feito por aqueles que estão sempre berrando Liberdade de Expressão. Basta pesquisar numa busca Batalhão Azov. E depois Biden + energia + Ucrânia.

Ora bem, eu não estou a dizer que toda a população ucraniana é fascista, não estou a dizer que toda a população da Ucrânia estava a favor do Batalhão Azov e tenho a certeza que a maior parte nem sabia destes massacres. Os perpetradores eram, regra geral, jovens e já se sabe o que acontece quando se junta jovens e garrafas de cerveja.

Só então depois destes massacres, os ucranianos russófonos do Donbass pegaram em armas para se defender e proteger sua cultura. Eles estavam se defendendo de fascistas e neonazistas, não estavam invadindo a Ucrânia.

A Ucrânia assinou os Acordos de Minsk, mas...

2015. Acordos de Minsk. Trata-se de uma série de acordos assinados pelo Grupo de Contato Trilateral (Ucrânia, Rússia, OSCE – Organização para Segurança e Cooperação na Europa) e representantes das Repúblicas Populares de Lugansk e Donetsk. O objetivo era criar um cessar-fogo imediato, algo que não funcionou basicamente porque a Ucrânia, embora tenha assinado esses acordos há oito anos, nunca levou a sério a implementação das condições e recentemente declarou publicamente que não tinha intenção de fazê-lo. Até assassinou um dos signatários do Donbass em um ataque terrorista.

Agora, visto do ponto de vista de Kiev, estamos falando de território ucraniano e políticas ucranianas dentro da Ucrânia. Mas terá um governo o direito de massacrar seu próprio povo? Os problemas começaram com os massacres, não começaram com armas russas. A ação criou a reação.

A situação atual 

Durante este período de oito anos, a posição da Rússia era NÂO reconhecer a independência das repúblicas de língua russa de Lugansk e Donetsk, que haviam proclamado sua independência da Ucrânia devido aos massacres fascistas, mas insistir que elas permanecessem dentro da Ucrânia sob os termos dos acordos de Minsk que garantiam a sua segurança e também os seus direitos de usufruir da sua língua, tradições e cultura. Somente quando a Ucrânia declarou que não tinha intenção de implementar esses direitos e nenhuma intenção de respeitar os acordos que havia assinado, e nenhuma intenção de permitir a livre prática da cultura russa entre os ucranianos russófonos, a Rússia reconheceu a independência das Repúblicas Populares e prometeu defender seu povo dos ataques constantes das forças armadas ucranianas que continuam há 8 anos.

Onde estão estas lágrimas todas quando se trata de uma criança de Donbass a perder um olho, um lar, uma avó ou a vida? Onde esteve a comunidade internacional? Por quê é que os parceiros da Ucrânia não insistiram na implementação dos Acordos de Minsk?

Reitero, isso não se trata da Rússia e Ucrânia, russos e ucranianos. Trata-se de um desastre geo-político com consequências tristes num contexto de uma OTAN sempre a pressionar, sempre e provocar e que se recusou a ouvir as ansiedades da Rússia que via o seu antigo inimigo chegar às suas fronteiras. Para quê? Quem diria que a OTAN parasse na fronteira da Ucrânia?

Então infelizmente, a Ucrânia é um peão no meio disso tudo e quem paga as consequências? O povo, como sempre.

E já agora, onde estavam os que reclamam hoje quando...?

Onde estavam aqueles que reclamam da Rússia hoje durante os massacres fascistas por bandidos neonazistas? Onde essas pessoas estavam enquanto o Batalhão Azov estava saqueando a Ucrânia matando civis? Por que não foi banido e seus membros jogados na cadeia? Onde estava Biden todo esse tempo? Mais uma vez “Biden + energia + Ucrânia”. Biden está nisso até ao pescoço.

E agora a Crimeia. Perguntem a aqueles que dizem que foi anexada pela Rússia se eles têm três anos ou quatro. E se são estúpidos ou fazem-se de parvos. A Crimeia não foi anexada pela Rússia. Depois que o presente democraticamente eleito foi derrubado por um golpe neonazista, depois que os fascistas saíram às ruas gritando “Morte aos russos e judeus!”, a entidade legal no poder na República da Crimeia era o Parlamento, ou Assembleia, que realizou uma referendo democrático, livre e justo em que o povo votou para retornar à Rússia por sua própria vontade. Perguntem a eles. Perguntem aos residentes da Crimeia, e de Donbass, se querem fazer mais parte da Ucrânia.

Não é a culpa do povo ucraniano. Como disse nem todos são fascistas e nem todos estão de acordo com o governo mas quando se trata de ingerência do exterior, já se sabe o que acontece.

Direito internacional??? Não me lixem o juízo...

E quanto ao direito internacional, onde estava o direito internacional quando o Reino Unido deportou toda a população das Ilhas Chagos, gaseou seus animais de estimação e deu o território aos EUA? Não me falem de direito internacional.

Onde estava o direito internacional quando as mais altas entidades jurídicas do planeta disseram ao Reino Unido para reverter essa situação e até hoje Londres se recusa a fazê-lo? Não me falem de direito internacional.

Onde estava o direito internacional quando civis estavam a ser assassinados em Donbass? Não me falem de direito internacional.

Onde estava o direito internacional quando crianças iraquianas perdiam a cara numa explosão, ou os quatro membros porque um covarde deitou uma bomba de 35 mil pés de altura? Onde estava o direito internacional quando aviação ocidental estava a bombardear campos de cereais no Iraque para provocar a fome? Onde estava o direito internacional quando OTAN chacinou os netos de Muammar al-Gaddafy e depois disse que eram alvos legítimos? Onde estava o direito internacional quando o sistema de fornecimento de água na Libia foi bombardeada? Onde estava o direito internacional quando bandos de terroristas nas listas de grupos prescritos de países da OTAN foram usados para mudar o governo da Líbia?

Onde estava o direito internacional quando a CIA usava campos de treino de terroristas em Paquistão para criar o flagelo que é hoje Afeganistão? Onde estava o direito internacional quando nações ocidentais apoiavam grupos de terroristas takfiri na Síria, selvagens que violavam os corpos de moças antes e depois de decapitá-las, depois de forçá-las a ver os pais a serem torturados até à morte e antes de usar a cabeça para jogar futebol. Onde estava o direito internacional?

Para concluir, e mais uma vez, devemos lembrar que todos os envolvidos em uma guerra sofrem. Os soldados de ambos os lados, suas famílias, civis inocentes pegos no meio, forçados a deixar suas casas, seus animais de estimação enquanto ondas de ódio são arquitetadas pela mídia. Nós, como jornalistas, devemos lembrar que não estamos aqui para atiçar as chamas do ódio, estamos aqui para dizer a verdade, que é a base do respeito por todos os lados.

Sei que a situação é dura para os ucranianos. Sei que é horrível. Entendo a sua fúria, seu desespero. Mas a única maneira de respeitar as pessoas é enfrentar a verdade e a única maneira de enfrentar um conflito é respeitar seu contexto não para chamar Glória e Vitória mas sim para entender as causas e tentar garantir que nunca mais acontece, traçando soluções para o futuro.

Neste caso cabe aos ucranianos e russos tentar construir um processo de diálogo quanto mais rápido possível, por difícil que seja pois parece que a via de diplomacia ficou sem vapor. Lembre-se, os russos também amam seus filhos. Os de Donbass também amam seus filhos. Os ucranianos também amam seus filhos.

Nós por fora que não temos nada a ver com isso temos a obrigação de não disseminar o ódio para um lado ou outro. Infelizmente a mídia ocidental está a fazer exatamente isso por apresentar um lado sem apresentar o contexto. E agora a União Europeia fala de censura de fontes? Pelo amor de Deus! Isso é respeitar as pessoas?

As lágrimas sabem a sal.

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey