Crônica: Com brasileiros em Kursk

Crônicas de viagem: Com brasileiros em Kursk

Adelto Gonçalves (*)

                                                            I

Coônica: Com brasileiros em Kursk. 15429.jpegChegar no verão a Kursk (Kypck em russo), capital da divisão federal de Oblast, já perto do Mar Negro, no Oeste da Rússia, na parte europeia do país, é uma surpresa até mesmo para quem sai dos trópicos: os termômetros chegam tranquilamente a 43 graus. Já no inverno há dias em que não é possível nem sair de casa ou do hotel: com 26 graus abaixo de zero, não só é preciso estar com roupas e calçados adequados como andar com cuidado para não sofrer escorregões no gelo. Além disso, até abrir a porta da rua é uma dificuldade por causa do gelo acumulado.             

  Com 412 mil habitantes, Kursk é nome comum nos livros que descrevem os combates da Segunda Guerra Mundial, pois se tornou palco da maior batalha de tanques da História que foi decisiva para a vitória dos russos sobre os alemães, que ocuparam a cidade de novembro de 1941 a fevereiro de 1943. Além disso, era o nome - dado em homenagem à cidade - de um submarino nuclear que, em 2000, naufragou no mar de Barents (Ártico), no Norte da Rússia, matando seus 118 tripulantes, o maior desastre desse tipo até hoje.

            A mais de 11 mil quilômetros do Brasil, é claro que ninguém imagina encontrar um brasileiro por lá. Mas, durante o verão, andando a pé pela Avenida Lenina, a principal da cidade, não é difícil ouvir alguma expressão em português: mais de cem jovens brasileiros estudam lá, principalmente Medicina (em russo ou inglês) na Universidade Estatal Médica de Kursk, atraídos pelos baixos preços cobrados: US$ 4.500 por semestre, o que inclui não só o que se paga à universidade como a hospedagem num alojamento (obshchezhitie), em que se tem de dividir o quarto com outro colega, e ainda cerca de US$ 500 por mês para a sobrevivência, se bem que é possível sobreviver com menos ainda, já que a alimentação diária é feita no restaurante da universidade a preços módicos. Em média, o estudante estrangeiro gasta menos de US$ 900 por mês.

            Por ano, a Universidade cobra US$ 3.700, o que inclui seguro médico, tutoria acadêmica e acesso a livros. O curso de Medicina é de seis anos, mas antes é preciso fazer um curso preparatório de nove meses de inglês ou de russo. Já os cursos de Odontologia e Farmácia duram cinco anos. É possível também fazer pós-graduação a partir de US$ 2.800. Quem faz a arregimentação de estudantes no Brasil é a Aliança Russa, em São Paulo.

            Em razão de seus preços baixos, Kursk, cidade industrial localizada numa rica região de minério de ferro, tornou-se também um burgo universitário: além da Universidade Estatal Médica, há a Universidade Técnica Estadual, a Universidade Estadual (ex-Universidade Pedagógica) e a Academia Agrícola, além do Instituto Social Regional Aberto, de ensino privado. Todas as instituições têm atraído estudantes de todo o mundo, especialmente de países em desenvolvimento, como Nigéria, Malásia, Índia e Paquistão, e países árabes.

                                                            II

            Construído em 1935, ao tempo do ditador Josef Stalin (1878-1953), o prédio principal da Universidade Estatal Médica de Kursk fica no início da ampla Avenida Lenina, que termina cinco quilômetros depois, diante da Catedral (ortodoxa). Suas instalações são antigas e passavam por reformas em julho de 2011.

            No hall de entrada, as paredes estão decoradas por fotos antigas da época da construção do edifício: em todas se destaca ao fundo o retrato de Stálin. À frente do vetusto edifício da Universidade, onde todo estudante recém-chegado se coloca para tirar fotos, há também um monumento em homenagem àqueles que lutaram na batalha de Kursk, na Segunda Guerra Mundial.

            Reconhecida pela Organização Mundial da Saúde, a Universidade abriga laboratórios de pesquisa e está ligada a 28 hospitais afiliados. Mas, no retorno ao Brasil, o estudante formado precisa passar por um exame de equivalência, o que não é fácil. "Os professores são exigentes e, às vezes, até ríspidos", queixa-se o paulista André (nome fictício), que estuda Medicina há dois anos.

            Para André, a Universidade é forte na parte teórica, mas na prática deixa um pouco a desejar. Além disso, os equipamentos não são muito modernos. "Por isso, aproveito as férias de meio de ano para fazer prática em algum hospital de São Paulo", diz, ressaltando que um grupo de quatro estudantes brasileiros preferiu, em julho, trocar o curso de Medicina em Kursk por outro equivalente em São Petersburgo, a capital cultural da Rússia.

            Seja como for, André e outros estudantes brasileiros reconhecem que os mestres "puxam" bastante pelo aluno. "É um pouco diferente do que estávamos acostumados no Brasil. Aqui, primeiro, somos obrigados a estudar no dia anterior a matéria que será dada pelo professor na aula seguinte. Em classe, o professor só procura tirar as dúvidas", explica. "Por isso, é preciso passar a noite estudando", diz.

            Segundo o estudante, alguns professores, embora tenham consciência de que a ideologia é um fenômeno do século XX e o comunismo uma possibilidade perdida no passado, não disfarçam certa nostalgia dos tempos soviéticos. "Muitos dizem que na época da Guerra Fria havia competição com os Estados Unidos e isso estimulava o crescimento, ao passo que hoje o país se encontra um pouco paralisado", conta. "Além disso, os professores reclamam que ganham pouco e que não são valorizados como deveriam", acrescenta.

            Aliás, na Avenida Lenina, um outdoor mostra que o Partido Comunista continua ativo, mas há quem diga que o símbolo com a foice e o martelo virou até marca de supermercado. As estátuas que reverenciam os grandes nomes e feitos dos tempos soviéticos continuam de pé. O atentado a bomba contra uma estátua de Lênin em Moscou ocorrido há dois anos é reprovado pela maioria das pessoas. Vinte anos depois da queda do regime soviético, há um clima de maior liberalidade: a liberdade religiosa, por exemplo, é mais respeitada. E, em Kursk, há até procissões religiosas na Avenida Lenina.

                                                            III

            Os prédios dos alojamentos da Universidade não são bem cuidados, mas isso é comum à maioria dos edifícios da cidade: muitos exibem encanamentos que deveriam passar por dentro das paredes. E, como em Moscou, há prédios de apartamentos dos tempos soviéticos que se mostram em situação um pouco precária.

            Nos alojamentos universitários, a vigilância é rigorosa: ninguém que não mora lá pode entrar, sem deixar o passaporte ou documento de identidade na portaria. Ao visitante não é permitido dormir lá, ainda que seja pai ou mãe de aluno. Por isso, os pais dos alunos, se não quiserem gastar muito com hotel, podem alugar um apartamento. Só que, para isso, é preciso acompanhar o proprietário ao correio ou ao centro de controle de migração mais próximo para fazer a chamada registração.

            (Aliás, esse tipo de registro é feito tão logo o turista pisa em solo russo, mas fica por conta do hotel, que o registra automaticamente e deve entregar ao estrangeiro um papel devidamente carimbado e assinado. Se o turista mudar de cidade, o registro também deve ser feito pelo hotel seguinte. O papel de registração fica com o estrangeiro e serve para todo o tempo de sua permanência naquele hotel. Se ficar na casa de um russo, este cidadão tem que registrar o visitante estrangeiro, caso este pretenda ficar em sua casa por mais de três dias. O cidadão russo deve ser o proprietário do apartamento cujo endereço tem de constar do papel de registração. Se o estrangeiro pretende ficar menos de três dias numa cidade, não é necessário fazer o documento). 

            A entrada no alojamento universitário depois da meia-noite também é proibida, mesmo para quem resida no local. Barulho não é aceito. Por isso, não é recomendável sair para baladas em Kursk. Recentemente, alguns jovens brasileiros estavam numa discoteca, quando houve uma altercação e a polícia chegou e levou todos os freqüentadores para a cadeia. "Todo mundo foi obrigado a permanecer horas com os braços para cima, inclusive os brasileiros", conta Mariana (nome fictício), outra estudante brasileira. Por essas e outras, a Embaixada do Brasil em Moscou já enviou representantes a Kursk para ver como os estudantes brasileiros estão sendo tratados.

            Não são poucos os brasileiros que se mostram arrependidos por ter encarado esse desafio de estudar Medicina na Rússia, principalmente os recém-chegados, que ainda lutam para se adaptar a costumes bem diferentes dos brasileiros. E sentem saudade de casa. Mesmo assim, há aqueles que dizem que vale a pena, levando em conta principalmente os baixos custos do curso. "No Brasil, minha família nunca poderia me pagar um curso de Medicina", argumenta João Carlos (nome fictício), que está lá há três anos.

            A vida na cidade não parece muito fácil, à primeira vista. Até porque a Rússia não é nenhum exemplo de modernidade. Os trens que cortam o país, geralmente, são desconfortáveis. Como as viagens são longas - de São Petersburgo, no Norte, a Kursk, por exemplo, são 16 horas -, os passageiros dormem em assentos/camas abertos. Há trens mais caros com compartimentos fechados com quatro camas.

            O banheiro de cada vagão é usado tanto por homens como por mulheres e, em poucas horas, começa a exalar um cheiro nauseabundo. Como o país tem um clima frio durante dez meses do ano, todo vagão dispõe de um equipamento que fornece água quente. Por isso, o viajante russo já viaja com embalagens de alimentos pré-preparados (chá, macarrão e sopa) na bagagem.

            Na estação (vokzal) de trem, o desconforto também é uma herança do regime anterior. Ao lado de decorações ao estilo do realismo socialista, há sempre cenas de guerras. Ou um soldado em bronze. Na estação de Kursk, há um painel que mostra o avanço das tropas russas diante dos invasores nazistas. O problema da estação são os sanitários públicos. O viajante paga vinte rublos (R$ 1,25) para usar um sanitário que não oferece nenhum conforto e só dispõe de latrina turca, no chão (tanto para homem quanto para mulher).

            Além disso, há uma dificuldade-extra: para um turista que não fala russo, é um martírio comprar passagem. O atendente, geralmente, não tem paciência nem disposição para entender o que o outro fala, ainda que seja em inglês. Trata logo de demonstrar que não pode perder tempo com quem não fala o idioma russo e já dirige o olhar para o usuário que está atrás na fila.

            Aliás, fila é algo que os russos ainda não aprenderam a fazer: geralmente, acotovelam-se ao redor do guichê e, não raro, quando espertamente um trata de passar à frente do outro, eclode uma desavença. Não é difícil ver um homem de meia-idade avançar numa mulher da mesma geração com gestos bruscos e impropérios. Por isso, há sempre um policial por perto para serenar os ânimos. É o que se vê na estação de trem.

                                                            IV

            Kursk não é uma cidade turística - o que, às vezes, é uma vantagem. Talvez por isso, ao contrário de seus colegas moscovitas, os motoristas de táxi costumam ser honestos - acertam com o cliente o preço da corrida antes de dar partida ao veículo. E, como a cidade é relativamente pequena, o preço de uma corrida entre a estação de trem e a Avenida Lenina, por exemplo, fica em torno de 100 rublos (seis reais).

            Além disso, há transporte coletivo em abundância, desde que o usuário não se importe em andar num tramvay (bonde ou elétrico) que parece saído de um filme dos anos 50.  A outra opção é recorrer ao transporte em van ou ônibus - na maioria, antigos. É o próprio motorista quem cobra a passagem de dez rublos (R$ 0,60).

            Há na cidade pelo menos dois shoppings centers com praças de alimentação, que são modernos, além de um McDonald´s e outros restaurantes que oferecem fast food. Nas ruas e nos restaurantes, poucos falam inglês. E a saída é a universal linguagem dos gestos, principalmente nas lojas dos shopping centers, onde há maior boa vontade com os estrangeiros. Nas ruas e nos trens intermunicipais, o que surpreende no verão é o estilo à-vontade nos trajes das russas, que chegam a ser mais liberais que as brasileiras.

            A culinária russa é à base de batatas e massas (pelimene) com recheio. Tudo com smetano, um creme branco meio azedo. Mas, cuidado: há sempre um exagero de pimenta (bulgarian pepper) nos pratos. De sobremesa, não se pode deixar de comer blini (panqueca), um clássico da cozinha russa, com recheio doce ou salgado, que normalmente é servido com creme azedo e caviar. Os sorvetes (morozhenoe) também são baratos: nas ruas, há locais que vendem sorvetes populares por até dez rublos (R$ 0,60).

                                                            V

            Entre as atrações turísticas de Kursk, estão vários monumentos em memória da Segunda Guerra Mundial, inclusive um que mostra um tanque blindado da época. O edifício mais antigo de Kursk é a igreja superior do Mosteiro da Trindade, da época do czar Pedro, o Grande (1672-1725). Entre os prédios urbanos, que não foram construídos com fins religiosos, o mais antigo é o Romodanovsky, nome de uma família poderosa da época e erguido em meados do século XVIII.

            A catedral de Kursk, ao final da Avenida Lenina, foi construída entre 1752 a 1778 e segue o estilo barroco. A catedral tem duas histórias: a igreja menor é consagrada a São Sérgio de Radonezh e a maior a Theotokos de Kazan. A catedral do Mosteiro do Sinal (1816-1826) é outro imponente edifício religioso, que segue o mais puro estilo neoclássico, com uma cúpula medindo 20 metros de diâmetro e 48 metros de altura. Em Kursk, há também uma Praça Vermelha, que se destaca pela imponência de seus edifícios.

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]

 

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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