O Korolev estava convencido de que poderia levar russos primeiro à Lua, antes de morrer. Um herói anônimo, magoado, mas cheio de convicções -- entre elas a de que os russos poderiam ter vencido os americanos na corrida para a Lua. Esse foi Sergei Pavlovich Korolev, homem que projetou o Sputnik, primeiro satélite artificial da Terra, há exatos 50 anos. O retrato é pintado por sua filha, a médica e professora Natalia Sergeevna Koroleva. Ela conversou com o G1 sobre seu pai, os planos que ele tinha para o futuro, sua convicção na União Soviética e seu espírito sonhador, informa a G1.
"Papai lutou para tornar a Rússia o primeiro país a enviar um homem à Lua e estava convencido de que isso era possível", afirma Koroleva. Para ela, os soviéticos só perderam a corrida pela conquista da Lua para os americanos por conta da morte prematura de Korolev (pronuncia-se "Caralióv"), em janeiro de 1966, vítima de um câncer de cólon.
Só depois de sua morte Korolev teve sua identidade relevada ao mundo. Antes, ele era mencionado pela imprensa oficial apenas como o "Projetista-Chefe" do programa espacial soviético. O segredo era destinado a evitar que especialistas-chave do país acabassem indo parar nas mãos do inimigo.
A situação magoava Korolev. "Claro que seus sentimentos foram feridos pelo anonimato, mas ele considerava esse fato um elemento inevitável da Guerra Fria", conta Koroleva. Foi essa necessidade que impediu o projetista-chefe de conquistar um Prêmio Nobel, recusado pelo ditador Nikita Khrushchev, por considerar que o Sputnik era um feito "de todo o povo soviético".
Não custa lembrar que Khrushchev foi o líder soviético mais "bonzinho" com Korolev. Antes dele, durante o governo de Joseph Stálin, o cientista de foguetes foi acusado de traição, preso e enviado a um gulag -- campo de trabalhos forçados do antigo regime soviético.
Inabalável amor à pátria
A despeito dessa passagem pela prisão, Korolev jamais perdeu a fé no ideal comunista e no governo soviético, segundo sua filha. "Meu pai entendia que o comportamento de alguns políticos russos era errado", diz Koroleva. "Ainda assim, isso não influenciava seu patriotismo. Os líderes soviéticos ajudaram-no a ter as condições necessárias para sua atividade criativa."
E não era por prestígio pessoal que Korolev queria vencer todas essas batalhas, a maior delas na corrida espacial contra os Estados Unidos. "Papai queria bater os americanos não pela glória pessoal, mas pelo prestígio de seu país e pela criação de sua capacidade de defesa", diz, lembrando que o R-7, foguete que impulsionou o Sputnik ao espaço, foi criado inicialmente para fins bélicos -- o primeiro míssil balístico intercontinental da história.
Mas Korolev tinha um olho na exploração pacífica do espaço. Aliás, partiu dele a iniciativa de tentar convencer Khrushchev de que os soviéticos poderiam se beneficiar do lançamento do primeiro satélite em órbita. O esforço foi autorizado pelo governo com a condição de que não atrasasse o desenvolvimento dos mísseis balísticos.
Assim nascia o primeiro artefato a orbitar a Terra -- simples, feito às pressas para colocar a União Soviética na frente, mas o primeiro passo de uma longa cadeia de sucessos.
Em 7 de novembro de 1957, no Sputnik 2, voou a bordo a cadela Laika, que provou a possibilidade de vôo espacial para seres vivos. E, quatro anos, em 12 de abril de 1961, Yuri Gagarin se tornou o primeiro homem a entrar em órbita, inaugurando a era das missões tripuladas. Todos esses foram projetos de Korolev, que encarava cada um dos passos com a mesma intensidade.
Idealismo cósmico
"Todos esses eram elos da mesma corrente, todos eles eram a coisa mais importante para ele", diz Koroleva. "Papai via sua atividade na exploração espacial como uma fase historicamente necessária da evolução da civilização humana."
A principal inspiração para o projetista-chefe foram os trabalhos de outro russo, Konstantin Tsiolkovsky (1857-1935). Tido hoje como o pai da astronáutica, ele elaborou as primeiras equações que demonstravam a viabilidade do uso de foguetes para a exploração espacial.
"Ele era um sonhador -- a conquista do espaço era a meta de sua vida", diz Koroleva. "Ele estava convencido da implementação do sonho de Tsiolkovsky de que a humanidade não iria permanecer eternamente na Terra."
E os cosmonautas -- termo historicamente usado pelos russos para designar seus viajantes espaciais -- eram especialmente respeitados por Korolev. "Papai adorava os cosmonautas, chamava-os de 'águias'", revela Koroleva. "Ouso dizer que ele gostava do Gagarin mais que dos outros."
Em Baikonur, no Cazaquistão, centro de onde partiam os foguetes e espaçonaves preparados por Korolev, haviam duas casas lado a lado: uma para o projetista-chefe, outra para os cosmonautas que viajariam ao espaço nos próximos dias.
Korolev passou muito tempo lá e ajudou a supervisionar a ampliação gradual da infra-estrutura do centro de Baikonur. Para sua filha, pouco tempo restava para o resto de sua vida. "Papai estava tão sobrecarregado com seu trabalho que ele tinha pouco tempo para qualquer outra coisa. E ele não falava quase nada sobre seu trabalho, por conta dos segredos envolvidos", afirma Koroleva.
Ainda assim, ela tem uma lembrança terna do pai. "Bonito, inteligente, forte, convencido da necessidade e da importância da atividade a que ele devotou a sua vida", diz. "Ser filha de Korolev é uma honra e uma responsabilidade. Tenho muito orgulho do meu pai."
A saga da entrevista
Conversar com Natalia Koroleva envolveu um esforço quase sobre-humano de reportagem. Embora ela seja uma médica e professora prestigiada da Academia Médica de Moscou, Koroleva não possui e-mail pessoal, e a academia também não tem uma lista de contatos de seus membros.
Para contatá-la, o G1 teve de conseguir, com suas fontes na Rússia, o telefone residencial da pesquisadora e, por meio de um intérprete russo, requisitar a entrevista.
As perguntas foram então enviadas a Alexander Sukhanov, um cientista espacial russo que divide seu tempo entre o IKI (Instituto de Pesquisas Espaciais), em Moscou, e o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), em São José dos Campos (SP), e que gentilmente concordou em ajudar o G1 nessa empreitada.
Ele traduziu as questões do português para o russo e tentou enviá-las, por fax, para o número dado por Koroleva. Não deu certo. A solução foi então dispará-las, por e-mail, para um colega no IKI, que de Moscou transmitiu as perguntas por fax para Koroleva.
As respostas foram redigidas à mão e enviadas por fax para o IKI, em Moscou, onde chegaram ao colega de Sukhanov. Ele, por sua vez, as enviou para o cientista russo do Inpe, que as traduziu para o inglês e despachou, por e-mail, para a reportagem do G1, onde foram vertidas para o português.
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