'Pandemia Mundial, Crise Global sem Governo Global': Ladislau Dowbor

'Pandemia Mundial, Crise Global sem Governo Global': Ladislau Dowbor

 

Em 15 de maio, mesmo dia que o ministro da Saúde do governo de Jair Bolsonaro, Nelson Teich, demitiu-se do cargo menos de 30 dias após tê-lo assumido (17 de abril), agravando a crise política em meio à pandemia, o Ministério da Saúde informou que há um total de 14.817 mortos por coronavírus no Brasil, e 218.223 casos confirmados. 

 

Apenas nas 24 horas entre os dias 14 e 15 deste mês, 824 mortes foram registradas em todo o País, e 15.305 casos incluídos no balanço no mesmo período. Se já não bastassem tais alarmantes números, o índice de subnotificação devido à escassez de testes é considerado alto no Brasil, que enfrenta fase de subida da curva de contágios e de mortes por coronavírus.

 

De acordo com estudo de pesquisadores da Universidade de São Paulo, Universidade Federal do Rio de Janeiro e outras grandes universidades do País, os infectados podem ser mais de 1,2 milhão, mais de 15 vezes maior que dados divulgados pelo governo federal.

 

E como desgraça pouca tem sido bobagem no Patropi, o Brasil já perdeu mais profissionais de enfermagem para o coronavírus que Itália e Espanha juntas: 73 deles morreram no pais sul-americano até agora vitimas da "gripezinha", assim classificada pelo presidente Bolsonaro, prestes a encerrar o lockdown ao qual, desde o início, se opôs veementemente. 

 

Pois mais uma grande contraironia do infalível destino no caótico cenário nacional em tempos de pandemia, é que alguns dos bolsonaristas que publicamente se colocaram como histéricos debochadores da COVID-19 integram, hoje, a lista de mortos pelo vírus que se espalha incontrolavelmente por todo o mundo, trazendo consigo inúmeras evidências do fracasso do atual sistema econômico global pateticamente tapado, ao longo dos anos, com a peneira da manipulação da grande mídia e da usurpação do poder pelo um por cento no topo da sociedade, que acumula praticamente toda a riqueza produzida.

 

Enquanto o caos parece não encontrar limites no Brasil dominado pela extrema-direita, o economista brasileiro de renome internacional, Ladislau Dowbor, analisa exclusivamente para Pravda Brasil a conjuntra econômica e política, nacional e mundial, apontando saídas. 

 

Autor de A Era do Capital Improdutivo (Outras Palavras & Autonomia Literária, São Paulo, 2017, 316 p.) entre outros cerca de 40 livros nos mais diversos idiomas, professor titular de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e já

tendo atuado como consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios além de várias organizações do sistema "S", na seguinte entrevista Dowbor insiste no combate à financeirização da economia que, segundo ele, não apenas torna o mundo profundamente vulnerável em crises pandêmicas como esta, como é igualmente causa das sucessivas crises do sistema capitalista. 

 

"Não é uma questão de capitalismo ou socialismo, de direita ou esquerda: é uma questão de decência humana", afirma o economista quem, mencionando a Agenda 2030, Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, propoe como solução o que denomina tripé básico economicamente viável que, segundo sua análise, seja socialmente justo e ambientalmente sustenvável.

 

A seguir, a integra da entrevista de Ladislau Dowbor ao repórter Edu Montesanti.

 

 

Edu Montesanti: Economistas de todo o mundo discutem que mundo emergirá do novo coronavírus. No prefácio de seu novo livro O Capitalismo Se Desloca - Novas Arquiteturas Sociais, a ser lançado nos próximos dias, o senhor apresenta três opiniões diferentes sobre essa possibilidade: Wolfgang Streeck, que diz que a atual crise pode não ser o fim do capitalismo, mas certamente será ser o fim do capitalismo democrático; Joseph Stiglitz, apontando ao capitalismo progressivo surgindo no horizonte; e Bernie Sanders quem, segundo o senhor, recuperou a legitimidade e o potencial do conceito de socialismo. 

 

Para o senhor, que tipo de mundo é mais provável que surja depois dessa crise profunda que a humanidade vive? 

 

Ladislau Dowbor: Não sabemos o que emergirá dessa crise, principalmente por causa da pouca informação que temos sobre o vírus. Mas sabemos pelo que devemos lutar: precisamos organizar a sociedade para que seja economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável. 

 

Esse tripé básico é amplamente aceito, para que tenhamos um "norte" no ordenamento das políticas. Essa base  foi claramente detalhada na Agenda 2030, Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Portanto, sabemos o que deve ser feito. 

 

Em um segundo plano, devemos reconsiderar o processo de decisão que nos permitirá alcançar esses objetivos. A linha de correspondência com a qual devemos trabalhar é que, em vez de polarização ideológica a favor ou contra o Estado, devemos recuperar um equilíbrio básico entre setor público, setor privado - particularmente as grandes empresas - e as organizações da sociedade civil. Devemos ajustar o processo de decisão na sociedade. 

 

Por fim, temos experimentado uma gerência excessiva do Estado e estamos sofrendo uma gerência corporativa excessiva, nenhuma das quais trouxe os resultados esperados. O atual processo de globalização neoliberal tem levado a um impasse econômico, desigualdade social explosiva e um desastre ecológico. 

 

O setor privado trabalha melhor para a produção de bicicletas, carros e tomates, mas certamente não para saúde, educação, segurança e outras políticas sociais, para as quais os sistemas públicos descentralizados com fortes organizações participativas da sociedade civil funcionam melhor. 

 

Devemos parar de usar nossa coragem e ódio político, para simplesmente observar o que está funcionando nos diferentes setores e em diferentes países. Podemos olhar para a Finlândia, e ver como a educação pode ser mais eficiente, ou para a China para ver como as finanças podem ser mais produtivas, ou para a Alemanha para entender que a participação dos trabalhadores na alta gerência pode ser útil para a indústria, e assim por diante. 

 

E podemos observar tantas experiências de construção de consenso da comunidade para o gerenciamento dos bens comuns, desde recursos hídricos até conhecimento, conforme tão bem apresentado por Elinor Ostrom [economista americana, 1933 - 2012, ganhadora do Prêmio Nobel de Economia de 2009]. 

 

Sabemos o que deve ser feito e como executar, e também sabemos que o principal obstáculo é a gigantesca desigualdade e a distorção de poder que a acompanha. O mundo não trabalhará com um por cento da sociedade assumindo mais o controle do produto social que os outros 99 por cento. 

 

Não é uma questão de capitalismo ou socialismo, de direita ou esquerda: é uma questão de decência humana.

 

 

Até alcançar esse nível que o senhor agora prevê, o mundo enfrentará antes uma crise mais profunda que a Grande Depressão de 1929 que atingiu internamente os Estados Unidos, refletindo no mundo enquanto esta pandemia atinge diretamente cada país em todos os setores da vida, alastrando-se cada vez mais e com uma segunda onda de contágio já em algumas regiões do planeta? 

 

Essa é uma pandemia mundial, uma crise global, e não temos governo global. Na realidade, estamos destruindo o mundo com 193 estados membros da ONU, cada um buscando suas próprias vantagens com o principal poder econômico, os Estados Unidos, cantando slogans nacionalistas enquanto o mundo depende de solidariedade. Somos uma humanidade somente, e temos apenas uma Terra. Isso é muito mais que uma crise de pandemia: é a convergência de quatro crises globais, um desafio da civilização. 

 

É importante olhar além da pandemia. Estamos destruindo a Terra com mudanças climáticas, com adestruição da biodiversidade, a perda de solo agrícola, a poluição mundial das fontes de água, com a perda geral de florestas tropicais. Estamos enchendo nossa comida com produtos químicos e antibióticos, enchendo os rios e oceanos de plástico. Quase nenhum rio está mais limpo no mundo, e estamos esgotando as reservas de água subterrânea. 

 

Estamos provocando essa destruição da Terra em que vivemos, basicamente para a vantagem dos poucos felizardos, precisamente o um por cento anteriormente mencionado. Temos mais de 800 milhões passando fome, enquanto produzimos 1,5 quilo de comida por dia por pessoa em todo o mundo, perdendo um terço dessa produção por má gestão. 

 

Não existe razão econômica para a existência do escândalo de se submeter as pessoas ao sofrimento da fome, e não há razão econômica para que as pessoas sejam destituídas. O que produzimos atualmente, 85 trilhões de dólares em PIB mundial, significa que estamos produzindo em média 3.500 dólares por mês por família de quatro membros: mesmo com uma ligeira redução da desigualdade - por exemplo, empresas pagando impostos -, podemos garantir rapidamente vida digna e confortável a todos, reduzindo o sofrimento e os conflitos permanentes. A desigualdade profunda é destrutiva. 

 

No terceiro aspecto, seguindo o raciocínio da questão anterior, devemos considerar o que estamos fazendo com o dinheiro. Costumávamos ter dinheiro impresso pelo Estado, atualmente temos dinheiro emitido por bancos, 97 por cento dele, apenas informações em computadores viajando fundamentalmente sem controle ao redor do mundo, no chamado comércio de alta frequência através de empresas de fachada, paraísos fiscais e planos de resgate públicos em tempos que o mundo da especulação se despedaça. 

 

Essa financeirização caótica tem sido amplamente estudada por Joseph Stiglitz, Michael Hudson, Thomas Piketty e muitos outros. O dinheiro é simplesmente desviado do sistema produtivo, contribuindo para a destruição ambiental e para a explosão da desigualdade. O sistema da dívida está arruinando famílias, empresas produtivas e governos. 

 

Desta maneira, o impacto explosivo do COVID-19 no mundo deve ser visto como mais uma tendência destrutiva, e estamos diante da convergência dessas quatro crises, ambientais, sociais, financeiras e sanitárias. E é uma questão de sobrevivência, não apenas por causa do vírus. Nós somos o principal vírus. 

 

Temos um desafio mundial sen nenhuma autoridade mundial ou capacidade de gerenciamento. Não há solução, se não construirmos ajustes colaborativos inovadores.

 

 

O senhor aponta o neoliberalismo como culpado pela grave conjuntura mundial de hoje e, por conseguinte, propõe um capitalismo reformado ou critica este sistema como um todo, reivindicando uma mudança econômica total?

 

Estamos caminhando para a destruição se não mudarmos o modo como nos comportamos como humanidade como nações, como corporações, como pessoas. Isso não é apenas uma catástrofe de expressão acadêmica. Temos todas as informações necessárias sobre o acúmulo de disfunções sistêmicas neste planeta. 

 

Estamos alcançando oito bilhões de habitantes neste pequeno planeta e, para se ter um panorama geral, basta lembrar, por exemplo, que quando meu pai nasceu - e isso não se trata de história antiga, mas do meu pai - éramos um bilhão e meio. E estamos crescendo 80 milhões por ano, adicionando uma nação como o Egito a nossos problemas comuns. 

 

Se tomarmos como ponto de partida a obra A Ideia de Justiça de Amartya Sen, em vez de debater se o futuro será capitalista ou socialista, conservador ou liberal, keynesiano ou pós-keynesiano, podemos nos voltar para as prioridades óbvias, para "o que deve nos manter acordados à noite": evitar manifestações de injustiça no mundo. 

 

Sabemos o que devemos fazer, os objetivos estão bem organizados na Agenda 2030. Temos os recursos financeiros, mas eles estão sendo utilizados na especulação e fugindo dos devidos impostos, dinheiro gerando dinheiro. E nós temos a tecnologia para resolver os problemas mais dramáticos e urgentes - informações, transporte e pessoas capazes. O que nos falta, obviamente, é governança. 

 

A questão principal é, obviamente, desigualdade. A explosiva tendência da forte desigualdade, em suas várias dimensões, é claramente apresentada por Piketty, Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, com dados básicos bem organizados e apresentados no WID (World Inequality Database), e muitos outras pesquisas desde o relatório do Crédit Suisse sobre riqueza, as publicações da Forbes sobre bilionários, e as difundidas notícias por muitas organizações tais como Oxfam, Inequality.org e outras. Aparentemente, os ricos da terra não estão dando ouvidos. 

 

O mecanismo é simples: se um bilionário coloca seu dinheiro em papeis financeiros - em inglês, diremos que ele "investiu", enquanto em francês não será chamado de "investissements", mas sim"posicionamentos financiadores", locações financeiras - ele ganhará entre sete e nove por cento ao ano, sem ter produzido absolutamente nada. Um rendimento de sete por cento em um bilhão, significa que o bilhão investido acumula 192 mil dólares por dia ao proprietário. 

 

Os ganhos acumulados levarão sua fortuna ao cogumelo, o que explica precisamente o crescimento explosivo de riqueza de um por cento, particularmente os 0,1% e 0,01% não por serem tão produtivos, mas porque drenam a economia produtiva: isso não é lucro em atividades produtivas, mas renda sobre o capital improdutivo. 

 

O que Marjorie Kelly e Ted Howard chamaram de capitalismo extrativo, funciona exatamente nessa nova modalidade. Como está drenando, em vez de apoiar, a economia produtiva, Michael Hudson corretamente chama o processo de "assassinato do anfitrião". 

 

Desta maneira, enquanto a concentração de renda e riqueza através do pagamento de salários baixos continua, tem sido adicionado um segundo mecanismo poderoso: a dívida de famílias, empresas e governos, criando, assim, o que atualmente chamamos de financeirização. 

 

Uma antiga fábrica de calçados tinha um dono conhecido nosso, morando na mesma cidade em que a fábrica localizada, e ele mesmo estava interessado em manter um bom nome entre a comunidade. Podíamos protestar contra os salários que ele pagava, mas ele criou efetivamente empregos, produziu sapatos e pagou impostos. 

 

Atualmente, enormes galáxias financeiras, como a ONU as chama apropriadamente, controlam milhares de fábricas em todo o mundo, extraindo dividendos em papéis que elas possuem, reduzindo a capacidade de reinvestimento dos produtores, a capacidade de consumo pelas famílias e as políticas públicas dos governos. 

 

Criamos uma indústria de dívida e um monstro financeiro e improdutivo. Como Stiglitz e outros mostram pertinentemente, as enormes fortunas, por sua vez, geraram enorme poder político e um impasse sistêmico. 

 

O que o atual coronavírus acarretado, é uma paralisia econômica e um choque cultural que está levando as pessoas em todo o mundo a reconsiderar o sistema como um todo, em suas mais diversas dimensões.

 

 

A ONU relatou recentemente que, em 2020, 130 milhões de pessoas morrerão de fome devido ao novo coronavírus. 

 

Como evitar isso, em tempos de bloqueio mundial pela pandemia?

 

A Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) publicou The State of food Security and Nutrition in the World (O Estado de Segurança e Nutrição Alimentar no Mundo), estimando 820 milhões de pessoas subnutridas no mundo em 2019, cerca de dez por cento da população, o que segue crescendo. 

 

Também temos números de próximo ao estado de fome, mais de 100 milhões, e pessoas em situação de insegurança alimentar, chegando a dois bilhões, para não falar da crescente massa de pessoas obesas, resultado indireto de se ter que comer alimentos não saudáveis. 

 

Atualmente, milhões de pessoas morrem de fome todos os anos, o que, curiosamente, não é chamado de emergência. A causa registrada de morte é geralmente a doença que resulta da resistência fraca, não da fome. As crianças que morrem de diarréia nos distritos pobres, geralmente morrem de fome. 

 

Onde focamos o limite de nossa indignação, seja fome, subnutrição ou nenhum acesso a alimentos saudáveis, não é importante. A questão importante é que tenhamos alimento, dinheiro, informações, e não façamos nada. Além disso, o drama está piorando. 

 

Para não apenas salvar milhões mas garantir uma infância e vida adulta saudáveis, e capacitar essas pessoas a ter contribuições construtivas, custa muito pouco. Mas são pobres, vulneráveis e a fome não diz respeito a estratos sociais mais altos, e não entrava a sociedade. Este é o verdadeiro escândalo. 

 

Não estou minimizando a pandemia, mas lembrando que as crianças que morrem de fome representam cerca de cinco Torres Gêmeas de Nova York por dia, e isso pode ser enfrentado sem lockdown e sem trilhões de dólares do dinheiro público. Algo está profundamente errado em nossas prioridades gerais. 

 

Desigualdade é o problema. É uma questão ética, pois não são os pobres que organizaram as instituições e o sistema econômico que temos, não são responsáveis por sua miséria, fome e humilhação. Somos responsáveis pelo sofrimento deles, e os ricos idiotas de Wall Street, cantando greed is good (a ganância  é boa), assim como os bilionários a quem eles servem, devem tentar ser adultos responsáveis. 

 

Se a maneira como mantemos bilhões de pessoas na pobreza é uma enorme questão ética, tão importante quanto uma questão ética, é o fato de que os recursos financeiros dos muito ricos se baseiam em especulações improdutivas. Os pobres não merecem sua pobreza e nem os ricos suas fortunas. Não é uma questão de economia, mas de justiça e decência humana. E não há leis econômicas aqui, é a questão de um contrato social profundamente falho

 

A desigualdade também é um erro social e político. Nenhuma democracia pode sobreviver quando a maioria da população está presa no "piso pegajoso", incapaz de progredir na vida, enquanto em seguidas gerações os ricos fazem crescem sua bolha pelo processo de herança do "teto pegajoso". 

 

Em um país com tanta desigualdade quanto o Brasil, a democracia é apenas uma luz temporária entre os períodos sombrios. Mas a desigualdade está desorganizando as instituições em muitos países. Não temos os mesmos pobres isolados ou ignorantes da geração anterior: os quarenta por cento dos jovens desempregados da Argélia têm plena consciência de que outra vida é possível, os pobres de todo o mundo estão aborrecidos, e com razão. Irritados e desesperados, o que leva a ditaduras, terrorismo, migrações e muitas evidências de um mundo que perde o controle. 

 

E a desigualdade é economicamente estúpida, ou uma questão de "loucura" para usar a palavra de Barbara Tuchman. O que funciona em economia é utilizar nossos recursos financeiros, poder tecnológico, capacidade de organização e instalações de comunicação, para melhorar o bem-estar das famílias. 

 

Como vimos com o New Deal nos EUA, o Estado de bem-estar social após a Segunda Guerra Mundial, as políticas sociais nos países nórdicos ou o progresso social na China, mesmo com sistemas políticos muito diferentes, a melhoria do bem-estar geral gera demanda de negócios, o que por sua vez estimula o emprego e a produção. 

 

Ambos melhoram a atividade econômica e geram impostos, o que permite ao governo garantir políticas sociais que melhoram o bem-estar da população e expandir infra-estruturas, melhorando com isso a produtividade geral. Este é o ciclo virtuoso. A massa da população não envia dinheiro para paraísos fiscais nem especula em Wall Street. Ela faz bom uso do dinheiro. O dinheiro no topo é o problema, porque os ricos perderam a capacidade sistêmica de usá-lo produtivamente. 

 

O quanto pode ser estúpida a idéia de construir um muro para proteger os EUA dos mexicanos? Não funcionou na China, há muito tempo. Os ricos da terra devem parar de ficar olhando suas fotos na Revista Forbes, e começar a fazer algo útil com o dinheiro que estão extraindo. Obviamente, a tributação progressiva do capital improdutivo está atrasada.

 

 

Agora falando sobre a economia brasileira, duas questões importantes são:

 

Qual sua perspectiva para o País, considerando a pandemia e a resposta da administração de Bolsonaro? Quais as principais vulnerabilidades nacionais que o vírus expõe agora?; e, 

 

Quais medidas o governo deveria adotar, para que as famílias em geral possam manter a quarentena com bens suficientes, e a economia do País possa superar o coronavírus, com o menor trauma econômico possível? 

 

O vírus foi introduzido no Brasil muito mais tarde, por isso tivemos as experiências de outros países, em particular da China e da Itália, para entender a importância de reduzir o processo de transmissão exponencial. Imitando Donald Trump, Bolsonaro chamou a COVID-19 de "gripezinha", uma resfriado suave, nada como que se preocupar. Esse vírus tem baixa letalidade, mas se espalha rapidamente, portanto a principal medida é o isolamento. 

 

Não há alternativa real entre vidas e economia: isolar as pessoas antes que o vírus se espalhe garante contenção, e reduz a expansão aos níveis de capacidade de tratamento. Demorou dois meses para o governo começar a tomar medidas, e atualmente o vírus está se espalhando por todo o país com perdas muito maiores, tanto econômicas quanto humanas. 

 

A situação brasileira é particularmente agravada pela muito baixa legitimidade do atual governo - Bolsonaro foi eleito porque Lula, que era amplamente favorito, foi convenientemente preso durante o período da eleição com base em acusações absurdas de corrupção - e, em vez de unir o país para combater o vírus, as autoridades do governo estão lutando entre si. 

 

Finalmente, foram propostos 1,2 trilhões de reais (240 bilhões de dólares), mas a maior parte do dinheiro é destinada a bancos, com muito pouco sendo transferido para a população. E os bancos estão dizendo que não devem distribuir esse dinheiro para famílias e empresas, porque são responsáveis e devem evitar riscos. Os custos humanos são a menor prioridade aqui. 

 

Aqui também, a desigualdade é uma questão essencial. Famílias ricas e de classe média podem se dar ao luxo de isolar-se, mas a maioria da população não possui moradia nem condições econômicas para seguir as recomendações. O sentimento de impotência e insegurança está gerando caos político. 

 

Em vez de reações solidárias organizadas à pandemia, temos a luta estéril entre os clãs de primeiro a economia e primeiro a vida. E os pobres, que não podem manter o lockdown, fazem coro com os argumentos do presidente. No momento da presente entrevista, só podemos imaginar o que acontecerá quando a pandemia chegar às favelas e outras comunidades frágeis, o que já está em andamento. 

 

Mas, na ausência de liderança do governo central, estamos vendo um grande número de iniciativas locais e regionais com nove governadores estaduais do Nordeste atualmente organizados em um consórcio para colaborar no enfrentamento do vírus, um grande número de prefeitos assumindo responsabilidades localmente. 

 

Até as favelas estão organizando medidas de emergência, como a favela de Paraisópolis, com 100 mil moradores, ou Heliópolis, com 200 mil, usando suas próprias poupanças, as chamadas "caixinhas", alugando ambulâncias, mobilizando voluntários. 

 

O MST (Movimento dos Sem Terra) está trabalhando em 23 estados, levando comida para as periferias urbanas, os mais de 100 bancos de desenvolvimento comunitário estão organizando financiamento local, as universidades estão oferecendo suporte técnico on-line, como a Universidade do Estado do Rio de Janeiro "Emancipa", assim como muitas outras iniciativas. 

 

Tudo isso traz esperança de que, no futuro, teremos mais autogoverno, comunidades mais fortes e, finalmente, novas relações de poder emergentes da crise. A moeda local e a fuga do sistema de drenagem bancária estão se espalhando.

 

 

Como o senhor avalia as declarações do presidente Bolsonaro, de que a economia brasileira não pode estar paralizada por um vírus, considerando que muitos também morrerão por falta de dinheiro? 

 

A ideia de Jair Bolsonaro é que o coronavírus é parte natural da paisagem mundial, comparando o COVID-19 a acidentes de carro: "Não fechamos as lojas de carros devido a acidentes nas ruas e estradas do Brasil". 

 

Não temos os pobres que tínhamos antes, conformados com seus destinos, absorvendo a narrativa de que são carentes  porque lhes falta coragem, iniciativa e capacidade pessoal. Isso está claramente perdendo terreno. 

 

A insegurança, o sentimento de impotência para enfrentar a situação, a impossibilidade de proteger a si e a suas famílias estão levando a uma profunda polarização política. E a demagogia e o discurso do ódio, encontram terreno fértil em uma situação como esta.

O atual presidente está claramente tentando obter instrumentos de poder muito além da Constituição, e diariamente alegando que o caos em que vivemos é resultado de seus inimigos que amarram suas mãos: o Congresso, o Judiciário, a mídia e, claro, os comunistas, ressuscitados pela necessidade absoluta de ter alguém para culpar. 

 

Os generais encarregados do Exército, da Marinha e da Força Aérea declararam, em conjunto, que defendem a democracia. Quando os generais latino-americanos afirmam que defenderão a democracia, devemos nos preocupar. 

 

Em geral, temos um profundo sentimento de incerteza, e há tantas questões em jogo que dificilmente podemos apontar para desenvolvimentos futuros. Mas pelo lado positivo, um número impressionante de cientistas, políticos, movimentos sociais, jornalistas e comunidades em todo o Brasil está discutindo resultados e propondo as linhas de mudança sistêmica. 

 

É importante ressaltar que o lockdown gerou uma explosão de reuniões on-line, discussões "ao vivo", publicações on-line e uma riqueza de idéias fluindo sem os limites dos muros acadêmicos ou diferenças sociais. Uma nova cultura está sendo construída. 

 

E, claro, não se trata apenas do Brasil. Um número impressionante de novas abordagens, não apenas da economia mas também da organização social e no processo de decisão geral, surgiu em diferentes partes do mundo. Um editorial do Financial Times  de 4 de abril de 2020, afirmou que a renda básica e a riqueza tributária precisam estar no centro de novas políticas.

 

Joseph Stiglitz e o Roosevelt Institute elaboraram "novas regras para o século XXI", New Economics Foundation no Reino Unido , o grupo em torno de Thomas Piketty na França, a Francesco Economy promovida pelo papa, a Donut Economics de Kate Raworth, até discussões em Davos e tantas outras discussões e publicações estão construindo uma visão do novo mundo. 

 

Os ventos da mudança estão soprando, enfrentando a pandemia, mas indo muito além.

 

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