O escândalo do leite em pó e ventos econômicos mundiais gelados estão diminuindo a euforia pós-Jogos Olímpicos e submetendo a um teste novo a liderança política da China, diz Kerry Brown
É uma volta violenta à realidade na China. Os efeitos de uma nova era de turbulência financeira global, e um escândalo local a propósito de leite em pó adulterado, começaram a empurrar os Jogos Olímpicos de Beijing para a história. Uma torrente de desafios políticos e econômicos está à espera da liderança política do país. Talvez mais fundamentalmente, um extraordinário ano de crise e realização entra em seus estágios finais com perguntas novas que vêm à tona a respeito do futuro do próprio tão alardeado modelo industrial da China.
Um olhar para trás
Verdade, os eventos do fim do verão na capital da China não terão permissão para esvaírem-se, sem mais aquela, no ralo da memória - ao contrário de tantos outros eventos da moderna história da China. O Presidente Hu Jintao não é um homem expressivo; entanto, mesmo seu sempre-presente enigmático sorriso pareceu adquirir reflexos sinceros na cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos de Beijing em 24 de agosto de 2008. Não é de admirar: O gasto da China, de $44 biliões de dólares, teve sua recompensa no recorde de cinquenta e uma medalhas de ouro que a China reivindicou. O entusiasmo esportivo de dezesseis dias de competição, e dos Jogos Paraolímpicos de exaltação da vida de 6-17 de setembro que se seguiram, fizeram com que os problemas de um ano difícil - do Tibete à poluição do ar, do protesto social à corrupção - parecessem distantes (mesmo com o desassossego em Xinjiang, a mais problemática de todas as regiões indóceis da China, tendo sido sentido mesmo durante os jogos).
O próprio povo chinês pareceu ficar à altura da ocasião, na sua apreciação das esplêndidas diversões do esporte (ver Li Daton, "Os Jogos Olímpicos de Beijing: o último prêmio", 29 de agosto de 2008). Agora, porém, tanto para o governo quanto para os cidadãos, é a volta à realidade - como os problemas financeiros globais e a escalada do escândalo do leite em pó revelam de maneira clara até demais.
Nada obstante, mesmo em meio a esses novos testes econômicos e sociais, os membros do politburo da China ainda se sentirão obsequiados quando se reunirem da próxima vez para fazer uma avaliação de todo o transcurso dos Jogos Olímpicos. Não se pode negar a eles, sem incorrer em injustiça, uns poucos momentos de autocongratulações pela hospedagem do estado àquilo que foi sem dúvida um evento extraordinário. Talvez eles façam uma pausa por alguns momentos, também, para marcar o falecimento, durante os jogos, do homem responsável pela China quando o processo de reforma começou em 1978.
Hua Guofeng - o homem esquecido da política chinesa, embora tenha sido o sucessor pessoalmente escolhido por Mao Zedong - morreu em 20 de agosto de 2008, com a idade de 87 anos. Para seu rival político Deng Xiaoping vai toda a glória pelo que aconteceu durante as liberalizações iniciais nos anos 1980; mas Hua merece crédito pelo rápido desafio à liderança radical da "gangue dos quatro" e por ter tornado a transição para a era reformista tão serena quanto enfim foi. É fácil, hoje, esquecer o quanto a China era potencialmente instável naqueles sinistros primeiros anos seguintes à morte do "grande timoneiro". Não aconteceu, mas talvez os Jogos Olímpicos devessem ter sido interrompidos por apenas um minuto para registrar o passamento de um homem que foi servo tão fiel do partido.
De qualquer modo, o perfil dos novos obstáculos a serem enfrentados pelo partido e pelo estado estão-se já mostrando visíveis, agora que os jogos acabaram. A Exposição Mundial em Shanghai em 2010 - o próximo "grande evento" - gerará grande entusiasmo e orgulho, mas não alcança o mesmo nível do maior evento esportivo do mundo. Muitos chineses já sentem como que um despertamento com sensação de ressaca, que a controvérsia do leite em pó - que já reclamou tanto vidas quanto baixas políticas - só intensificará. Ademais, as aflições econômicas consumindo grande parte do mundo estão fustigando com um vento gelado a usina de força econômica chinesa. Nessas circunstâncias, o espaço do politburo para silenciosa satisfação - se chegar a existir - será pequeno.
O preço da reforma
É aqui que há um estado de coisas do qual os Jogos Olímpicos, com seu comercialismo de fio a pavio, representam um grande e simbólico final. James Kynge, ex-correspondente do Financial Times em Beijing e autor de A China Sacode o Mundo (Orion, 2007), delineou, em termos precisos, as aflições da liderança, numa excelente análise recente.
O resto do mundo vem sendo beneficiado, há dez anos, pelos benefícios da exportação da deflação pela China. As exportações chinesas, assentadas em trabalho barato e baixos custos de manufatura, fez os preços dos bens de consumo despencarem. Grande parte do mundo cozinha em grelhas para churrasco que custam menos do que a carne que é nelas preparada. Entretanto, como destaca, há uma grande falsidade em tudo isso: pois os preços dos elementos chineses envolvidos no processo - terra, capital, custos do trablaho, transporte - foram, todos eles, estabelecidos pelo estado, e mantidos muito abaixo do preço adequado de mercado.
Agora, entretanto, o livre mercado está avançando em quase todas as áreas da economia chinesa, dos serviços de utilidade pública ao emprego. O resultado é uma correção de preços na qual o mercado é que estabelece os níveis. Os governos locais estão concebendo novas maneiras de vender ou alugar a assim chamada terra estatal de maneira que lhes renda dinheiro; a água está sendo vendida em algumas partes da China, levando a agudos aumentos de preços; e a escassez de trabalho está começando a ser sentida num mercado que se supunha, até recentemente, oferecer suprimento ilimitado de trabalhadores baratos. Uma nova lei de contratos aprovada em janeiro de 2008 dá aos trabalhadores direitos e benefícios ainda maiores (ver Han Dongfang, "Negociações Coletivas e a Nova Lei de Contratos de Trabalho", China Labour Bulletin, 26 de fevereiro de 2008). Para WalMart, Tesco e afins, isso significa que o preço de suas exportações subirá, mais e mais.
Em suma, a era do "fabricado na China" parece estar chegando ao fim. Será um processo longo; subitamente, porém, fabricar no Vietnã ou no Cambódia, ou mesmo no Laos, aparentemente tornar-se-á mais simples e lucrativo do que na China.
Outra nova era
O politburo bem poderá ver isso como algo com vantagens e desvantagens. O modelo industrial que ele adotou nas últimas três décadas arruinou o ambiente chinês, e exauriu a maior parte dos recursos naturais. Esse modelo também atende cada vez menos às necessidades daqueles que o fazem funcionar; as aspirações de centenas de milhares de trabalhadores migrantes chineses que buscam emprego nas cidades não mais são satisfeitas pela perspectiva de fabricar bonecas Barbie por poucos centavos por hora. Eles se tornaram mais conscientes de seus direitos, mais cônscios do que querem, e menos dispostos a fazer sacrifícios para consegui-lo (ver Alexandra Harney, O Preço China: O Verdadeiro Custo da Vantagem Competitiva Chinesa, Penguin 2008).
Portanto, o politburo só poderá dar-se uns poucos momentos para comemorar os "mais bem-sucedidos jogos de todos os tempos". Precisará, em seguida, movimentar-se para tratar das questões mais prementes de para onde dirigir a economia nos meses e anos à frente. Sua estratégia de investimento estrangeiro está num momento crítico (ver "China torna-se global", 2 de agosto de 2007). Os bancos chineses cada vez mais estão procurando expandir-se no exterior. Por sua vez, há sinais de que a Coca-Cola e outras multinacionais querem adquirir - com garantias totais - haveres e companhias na China.
As cinquenta e uma medalhas de ouro que os esportistas chineses de ambos os sexos ganharam foram um feito extraordinário; o impacto dos jogos na consciência popular chinesa é menos mensurável embora talvez mais importante (ver "China modifica-se: um relato dos Jogos Olímpicos", 20 de agosto de 2008). A liderança chinesa, entretanto, precisará de cada partícula de engenho e inteligência de que dispõe para gerir a confusão em potencial que poderá espreitar a apenas alguns passos adiante. Algo que a enche de horror está para acontecer: ela está começando a viver em tempos muito interessantes, dos quais as gigantescas convulsões dos mercados financeiros do mundo são apenas um aspecto. Hu Jintao e seus colegas poderão um dia olhar para trás com saudade do período quando a única coisa com que tinham que se preocupar era o sucesso dos Jogos Olímpicos. A partir de agora, eles estão em território não mapeado.
Autor da publicação: Murilo Otávio Rodrigues Paes Leme
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