Um homem que conheci já morto
Clóvis Campêlo
Quando Graciliano Ramos morreu aos 60 anos, no Rio de Janeiro, em 20 de março de 1953, eu tinha pouco mais de um ano de idade. Ainda tentava sobreviver aos problemas respiratórios que me infernizaram a primeira infância e à poluição da Fábrica de Papel Portela, em Jaboatão dos Guararapes. Meus pais moravam bem próximo à fábrica de papel e eu, ainda bebê, era obrigado a respirar o ar poluído pelas chaminés da Portela. A nossa ida para o Pina, em 1954, passa por aí: um ar melhor para os filhos alérgicos respirarem, banhos de mar de manhã cedinho (o banho do iodo) para melhorar a saúde dos meninos. De vez em quando, os médicos sabem o que fazem.
Anos depois, já consolidado no Pina, quando descobri os livros do escritor alagoano na estante do meu pai, Graciliano já era um defunto consumado e consumido. Antropofagicamente, devorei-o. Depois dos livros infantis de Monteiro Lobato, aliás, Graciliano Ramos se encaixava como uma luva nessa escala evolutiva. Enquanto Monteiro, um nacionalista convicto mas capitalista, compôs as bases da minha incipiente síntese ideológica, Graciliano, com a secura do materialismo histórico, ajudou-me a levantar as paredes sólidas da minha utopia socialista. O Jubrapi, depois, mantido sob a guarda segura dos padres oblatos americanos de Brasília Teimosa, consolidou essa ideia de ser gauche e torto na vida. A minha salvação seria a democracia da praia do Pina, onde cabiam todas as ideologias e todos os prazeres. Por via das dúvidas, também nunca me furtou de apreciar os ópios capitalistas do povo: amava o futebol, nem tanto o carnaval e gostava de dançar o iê-iê-iê. Afinal, também era humano e filho de Deus (além de Marx, é claro).
Com Graciliano, atravessei incólume várias tardes bucólicas do Pina. E embora, naquela época, talvez não tivesse os elementos adequados para lhe fazer a tradução, simpatizava com aquilo, com aquela escrita seca e cheia de subversões e memorialismos. Mas, interpretar Graciliano Ramos pelas lentes rígidas do academicismo nunca fez a minha cabeça. Gostava de gostar daquela escrita, e pronto. Li todos os seus livros disponíveis e ainda fiquem querendo mais. Fui atrás dos filhos, que, aliás, nem sempre puxam aos pais. Ainda me interessei um pouco por Ricardo Ramos, com seus contos que tentavam ser diferenciados. Lembro de um conto por ele escrito sem a utilização dos verbos. Embora achasse aquilo interessante, sabia que a experiência se esgotava ali. Repeti-la, seria cultivar a redundância. Ramos, o filho, aliás, também morreria num dia 20 de março, em 1992, numa coincidência quase literária e irônica. Deixei-o para lá. Afinal, cultivar dois mortos de uma mesma família não é um bom negócio. Ainda mais quando o pai é grande o suficiente para nos ocupar todos os espaços disponíveis.
Hoje, portanto, faz 62 anos que o escritor de Quebrangulo (um nome bonito) se foi. Quase a minha idade. Mesmo assim, ainda podemos nos considerar contemporâneos. Não só por termos vivido alguns sonhos idênticos, como também por termos sidos testemunhas de algumas das mudanças importantes que o mundo sofreu nesse período.
Recife, março 2015
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