Com sua morte, na noite do dia 21 de junho de 2004, um dirigente político histórico desaparece. Nascido em 1922, no Rio Grande do Sul, acumulou uma longa experiência de mais de cinco décadas na vida pública. Com 82 anos, era o Presidente nacional do PDT e ainda um dos políticos mais polêmicos do país. Despertou amor e ódio; conheceu, em algumas conjunturas, a oposição de setores operários e populares, e sempre, por décadas, a repulsa de parcelas importantes da própria classe dominante, que hoje, depois de sua morte, lhe rende homenagens. Acima de tudo, porém, conquistou respeito.
Tivemos com ele sérias divergências políticas. Nosso respeito, portanto, não foi por um motivo qualquer. Deputado Constituinte do Rio Grande do Sul em 1947, foi eleito deputado estadual gaúcho com a maior votação em 1950. Em 1954, foi eleito deputado federal; logo depois, prefeito de Porto Alegre e, em seguida, em 1958, eleito governador do Rio Grande. Em 1962, novamente foi deputado federal, desta vez pelo Rio de Janeiro. Após o exílio, conquistou por duas vezes o posto de governador do Rio de Janeiro, eleito pelo voto popular; da segunda vez já no primeiro turno. Mas não foram meramente as funções assumidas a razão de sua força política. Muitos outros tiveram as mesmas funções e nem por isso encontraram um lugar na história. O feito mais importante da vida política de Leonel Brizola foi, sem dúvida, ter encabeçado a rebelião popular que, em agosto-setembro de 1961, impôs, pela primeira vez na história latino-americana, a derrota de um golpe militar reacionário e pró-imperialista. Este foi seu fato histórico e a razão fundamental de nosso respeito por sua trajetória.
Naqueles dias, quando a junta militar, depois da renúncia de Jânio Quadros, impedia a posse de João Goulart, então vice-presidente, em viagem a China, Leonel Brizola, diferentemente da maioria dos governadores, parte importante da UDN, na condição de governador gaúcho convocou a resistência contra a junta golpista que assumia o poder em Brasília. Sua foto, fumando e carregando uma metralhadora no momento em que convocava o povo às armas, é uma das mais belas da política brasileira recente, um registro de seu desprendimento, de sua coragem e audácia. A cadeia da legalidade saiu vitoriosa e com esta vitória Brizola adquiriu um patrimônio político enorme. Infelizmente, em 1964, João Goulart se recusou a seguir a orientação defendida por Brizola e aceitou pacificamente a vitória do golpe entreguista que mergulhou o país por 20 anos na ditadura militar. De qualquer forma, a lição não foi apagada. Não são poucos os militantes políticos de fora do Rio Grande do Sul que admitem uma maior politização da sociedade gaúcha. Uma parte desta realidade deve ser atribuída ao papel de Brizola.
Outra característica importante, vinculada com sua resistência democrática, foi a de ter assumido posições antiimperialistas. Quando no governo do Rio Grande do Sul encampou a companhia de telecomunicação de propriedade norte- americana, deu um exemplo a ser defendido. Nunca fez a autocrítica desta medida e por manter esta posição foi hostilizado não apenas pelos capitalistas-imperialistas, mas também por representantes do capital nacional associados aos interesses dos capitalistas norte americanos. No Brasil, foi evidente ao longo dos anos a tentativa de enfraquecê-lo; iniciativa impulsionada pela Rede Globo e suas associadas, esta que sempre atuou como um porta voz das frações hegemônicas da classe dominante brasileira nos últimos 30 anos. Na hora de sua morte, não deixamos de dar os nomes de seus maiores detratores. Cremos que é nossa obrigação para lhe fazer justiça. Apontamos, sem diplomacia, os que se esforçaram tanto tempo para matar suas idéias mais generosas e vinculadas aos interesses nacionais.
De nossa parte, divergências políticas relacionadas com distintas posições de classe nos puseram em campos partidários separados deste líder do chamado trabalhismo. Brizola sempre se reivindicou herdeiro de Getúlio Vargas, principal expressão do nacionalismo burguês-populista brasileiro. Em nosso caso, reivindicamos a tradição do socialismo revolucionário, corrente histórica do movimento operário. Não nos cabe aqui fazer um balanço exaustivo da experiência do nacionalismo burguês. Salta à vista, contudo, que à medida que o capital nacional reforçava sua opção pela associação com o imperialismo - nos anos da ditadura militar e do advento do neoliberalismo - Brizola não podia deixar de ser considerado pela chamada elite empresarial como um político fora de época. A classe dominante, com a agenda do desmonte dos serviços e das empresas públicas, não queria nem ouvir falar do líder mais expressivo do nacionalismo burguês vivo.
Fernando Henrique, um dos principais dirigentes desta chamada modernização capitalista - cuja essência verdadeira é destravar qualquer obstáculo para a acumulação privada capitalista - apontou claramente a necessidade de superação da era Vargas. Brizola era justamente seu principal defensor. A grande mídia, ao relatar o enfraquecimento do peso político de Brizola, porém, não assinala a opção das classes dominantes de marginalizar os setores da burguesia nacional defensores de um desenvolvimento industrial burguês com forte participação estatal. Querem evitar expor mais uma demonstração da incapacidade da classe dominante de levar adiante sequer uma industrialização independente, para não falar de reformas sociais progressivas. Nas últimas duas décadas, no desdobramento da herança getulista, a atuação política de Brizola concretizou alianças muitas vezes rejeitadas por simpatizantes de sua própria causa. Alianças com partidos burgueses não apenas inimigos abertos do povo, mas até mesmo dos interesses soberanos do país. Foi o caso, em 1986, da aliança do PDT com o PDS - partido que havia sustentado até o final o regime militar. Depois desta aliança - cuja concretização na época provocou surpresa - o PDT, dirigido por Brizola, já não surpreendia tanto: realizou governos antipopulares, criticou a CPI que investigava o esquema de PC Farias, sendo um dos últimos a defender o impeachment de Collor, coligou-se com os mais variados partidos, chegando no Rio Grande do Sul a apoiar Antônio Britto, ex-PMDB, e agora, depois da posse de Lula, a selar uma aliança com o arqui-reacionário PFL. Assim, enfrentou interesses dos trabalhadores e do povo e debilitou a própria luta pela independência nacional, que tanto reivindicou ao longo de sua vida.
Estes acordos com partidos burgueses correspondiam à própria natureza do PDT. Também como partido representativo de setores da classe dominante, o PDT teve sempre um forte peso dos latifundiários em seu interior. Atualmente, por exemplo, é do PDT um dos mais antidemocráticos prefeitos do Rio Grande do Sul, Rossano Gonçalves, da cidade de São Gabriel. Inimigo do MST e líder dos latifundiários gaúchos que atacam homens e mulheres do campo. Apesar disso, não há nenhum setor que tente desautorizá-lo. Onde passa um boi, passa uma boiada. O próprio Brizola, na condição de proprietário rural, nunca poupou críticas ao MST e aos seus legítimos métodos de luta.
Estes fatos da vida nacional protagonizados pelo PDT comandado por Brizola não anulam a importância de suas ações na história do país no sentido de defender as liberdades democráticas, quando foram ameaçadas, e sustentar medidas contrárias aos interesses do capital financeiro. Foram estas posições democráticas e antiimperialistas que lhe deram força na história. Sem a mesma repercussão de antes, até o final as manteve. Antes de sua morte, por exemplo, estava numa cruzada de denúncias contra a privatização branca da Petrobrás, cuja entrega da refinaria Alberto Pasqualini no Rio Grande do Sul para a Repsol - empresa espanhola, ou laranja de uma das sete irmãs poderosas multinacionais do petróleo - tem sido uma entre tantas expressões. Uma entrega que tem ocorrido no governo do PT.
Ao mencionar o PT, tampouco podemos esquecer de que Brizola fez alianças à direita e à esquerda. Apoiou Lula no segundo turno em 1989, assumiu a posição de vice de Lula em 1998 e em 2002, novamente no segundo turno, chamou o voto no PT. Com a vitória de Lula, logo iniciou o rompimento definitivo com o PT. Desta vez, Brizola tinha razão. Sua denúncia da reforma da previdência e do entreguismo do país ao Fundo Monetário foi parte do início da resistência contra o governo petista, convertido em defensor intransigente dos interesses do capital financeiro. Na condição de presidente do PDT, não hesitou em definir Lula como traidor. Talvez imaginasse que, pelo menos, Lula garantiria um governo mais independente dos interesses dos EUA e aceitasse o desafio de defender uma industrialização com o papel mais ativo do Estado, não um Estado cuja função principal segue sendo garantir o superávit fiscal para pagar a dívida pública com os bancos daqui e de fora, igualzinho ao projeto defendido por FHC, pelo PSDB e o PFL. Era a mesma definição que milhares de petistas começavam a fazer e que logo daria lastro social para a construção do P-SOL. Um punhado de dirigentes, com os parlamentares de nosso partido na primeira linha (Heloísa Helena, Babá, João Fontes e Luciana Genro), encabeçaram a resistência no PT. Os brilhantes textos de Brizola foram úteis nestas jornadas. Deram munição para a esquerda socialista e democrática.
Agora, na semana da morte de Brizola, o governo e a maioria dos partidos e políticos do Congresso Nacional não se cansam de elogiá-lo. Mas nem mesmo neste momento de tristeza para seus amigos, companheiros, familiares e para muitos homens e mulheres do povo, o governo federal deixa de insistir em aprovar o salário mínimo de 260 reais. Com uma mão, prestam a homenagem e, com a outra, apunhalam os interesses populares. Foi para denunciar esta vergonha de salário mínimo que Brizola escreveu seu último texto. Nele dizia: "O povo brasileiro não merecia tamanha frustração. Que aqueles que traíram o voto e as esperanças da nação brasileira não se iludam: logo mais cedo do que pensam, a população irá mostrar o quanto despreza os que agem desta forma".
Temos orgulho de ter denunciado junto com Brizola esta traição. Suas denúncias nos carregaram com respaldo e força. Provocaram surpresas em muitos militantes e simpatizantes da base histórica do PT que viram, no ano de 2003, uma inversão rápida, clara, ou, para os que não enxergam uma inversão, uma definição mais realista acerca das posições de Lula e de Brizola. Lula ficou claramente à direita, aliado com ACM, Sarney e com a Rede Globo. Brizola acabou sendo identificado na posição crítica como os chamados radicais do PT de então, hoje os parlamentares do P-SOL. Não foi à toa que Heloísa Helena foi recebida com carinho no velório do líder trabalhista. Seus simpatizantes a receberam como uma das suas. Enquanto isso, horas antes, no mesmo local, Lula era vaiado e chamado de traidor. Assim, lembraremos de Brizola, antes de mais nada, como o governador da legalidade.
Dora Kramer, jornalista do Estado de São Paulo, contou as últimas horas de Brizola. Disse que o líder trabalhista, mesmo doente, estava animado. "Falou, gesticulou, brincou, avaliou, analisou o cenário político para concluir que lhe cabia ainda a tarefa de construir ao eleitorado brasileiro uma alternativa ao P-SOL pela esquerda, ao PFL, PSDB pela direita e ao PT pelo centro, campo onde, na avaliação de Brizola, Lula vai estacionar". (ESP, 23 de junho, pág A6).
Da parte do P-SOL, diante da conversão do PT em agente direto dos interesses dos grandes capitalistas e do capital financeiro em particular, nosso partido chama, desde já, a mobilização dos trabalhadores e do povo pobre por suas reivindicações como a melhor resposta. Ao mesmo tempo, no momento em que deixa a vida um político cuja trajetória esteve associada ao nacionalismo, não podemos deixar de dizer claramente que as tarefas da independência nacional - cuja conquista animou centenas de milhares de militantes do trabalhismo - apenas podem ser realizadas rompendo com os capitalistas. Que o diga a Venezuela, cuja oposição burguesa encabeça as sucessivas tentativas de golpe contra um governo legitimamente eleito, pelo simples fato deste governo tratar de garantir o controle nacional sobre suas riquezas minerais e sobre a produção do petróleo. Somente com a organização independente dos de baixo, poderemos encontrar uma saída para a catástrofe que nos ameaça. Somente com a luta, se pode conquistar salário, emprego, terra, garantir educação e saúde pública, gratuita e de qualidade. Somente com o povo confiando na sua própria força, se pode conquistar um verdadeiro governo dos trabalhadores, que enfrente os interesses do capital financeiro, dos grandes monopólios capitalistas nacionais e os latifundiários. Um governo, sem participação da burguesia, que, de verdade, represente a independência nacional e a luta pela dignidade de nosso povo.
* Membro da Executiva Nacional do Partido Socialista e Liberdade /P-SOL
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