O Rio é santo. Suas águas saciam a sede dos bichos e dos homens, da terra ávida de vida e luz. Nasce em Minas, entre montanhas, cresce e segue sua triste sina até desaguar no mar. Como na canção-oração; é: Lá vai São Francisco, pelo caminho, de pés descalços, tão pobrezinho ... Dormindo a noite junto ao moinho, bebendo a água do ribeirãozinho.
Cumprindo a sua sina, dá o que tem de melhor para quem lhe entrega o que tem de pior. Recebe as águas de todos os rios que o matam, o envenenam, o sacrificam. Ainda assim, segue o seu destino rompendo o sertão infindo, varando o sertão mineiro, abençoando o sertão baiano, margeando o sertão pernambucano, aguando o sertão sergipano até encontrar a liberdade no litoral entre Alagoas e Sergipe.
Da nascente à sua foz, cumpre a via-sacra de percorrer 2.800 km, por cinco estados, abrigando em suas margens 7% do país, sempre levando vida para milhões de barranqueiros, espalhados em 97 cidades que vivem às suas margens, e 420 municípios que são tocados por ele. Como São Francisco ensinou, ele vive. Humildemente. Onde existe a seca, ele leva a vida. Onde existe pobreza, ele leva riqueza, onde existe escuridão, ele leva a luz da vida refletida em suas águas. Nasce rico e morre pobre.
Poderia ter escolhido, ao nascer, descer para o litoral mais próximo, na região sudeste ou no sul do Brasil, tão mais ricos e mais prósperos. Mas não, escolheu servir ao homem, ao povo, fazer a integração de um país que agora pensa em apenas desintegrá-lo, dilapidá-lo, roubar-lhe o último fio de vida. Ainda assim é incompreendido, ignorado por muitos, tratado com desrespeito e desdém por aqueles que querem lhe tirar o pouco que tem, do muito que lhe falta.
Como se buscasse a liberdade, o caminho da paz, o Rio escreve a sua história no chão triste e pobre de um país, dentro do coração de um povo...
Agora, pelo Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias do Nordeste Setentrional, querem forçá-lo a deixar de servir aos pobres para servir aos ricos, aos latifundiários, aos empreiteiros, aos lobistas, desviando as suas águas ricas de lágrimas para as banheiras e seus banhos de ofurô, de relaxamento, dos que não o querem para viver, mas para o seu vil prazer.
Querem tirar dos pobres o direito de ter o Rio benzendo, diariamente, as suas vidas, as suas lavouras, as suas pescas. Querem roubar do Rio a sua vocação originária de servir ao próximo, ao pobre, ao sertanejo. Querem matar o Rio em sua santidade. Querem imputar ao Rio todos os seus pecados, lhe corrompendo, lhe confiscando o princípio originário de doar vida.
Os peixes já lhe são poucos. Às suas margens, os tantos que têm água e nenhuma política de desenvolvimento, compartilham a sua pobreza desde sempre. Não é água que falta ao nordestino, ao sertanejo, mas sim interesse político, econômico e social no desenvolvimento do país como um todo.
Por que não pensar na transposição social e econômica dos milionários acionistas da eterna indústria da seca, aqueles que sempre lucraram com a pobreza do sertanejo? Por que não fazer a transposição real aos que estão morrendo à mingua, por culpa do poder público, ao longo do São Francisco, com seus milhões de litros de água e dezenas de injustiças sociais? Por que não revitalizar o Rio para que muitos possam ter comida e vida em suas mesas, sem sair de suas margens? A questão não é a água do Rio ou a sua vida, mas o que elas podem render a meia dúzia de fariseus.
O São Francisco sabe: ninguém pode servir ao mesmo tempo a dois senhores... O seu destino foi traçado por gente que nunca molhou os pés em suas águas, que nunca viu o sol se pôr em suas margens, que nunca escutou o vento fazendo ondas de felicidade em seu leito corredeira acima. Prova disso é que não há, junto ao Projeto de Lei, estudo algum sobre a fauna e a flora locais e o impacto que pode gerar um projeto como esse naquela região. A falta de estudos detalhados só caminha o nosso pensamento em um único sentido, aquele que é contrário à vida do Rio.
O São Francisco já perdeu 95% das matas siliares. 75% da vegetação regional já foram devastados. Ainda assim, o Rio vive, cansado, martirizado, empobrecido. Apesar de toda omissão, de toda desídia, o São Francisco segue, contra muitos, por todos. É santo e quer apenas ter vida para poder doar um pouco de esperança àqueles que crêem e vivem dele. Logo ele, que já nos deu tanto...
Navegando pela foz de um Rio
Em sua foz, no município de Piaçabuçu, do lado de Alagoas, o barquinho vai subindo o Rio lentamente, enquanto se descortina o cenário paradisíaco de sua foz, sem a pujança e a força de outrora. Navegamos o Rio que por volta do meio-dia ainda é empurrado pelo mar, enquanto o velho barqueiro nos diz que a força da maré invade mais o Rio hoje que em outros tempos. São treze quilômetros de barco Rio abaixo.
No barquinho, como um bom acompanhamento ao passeio turístico, as delícias servidas da região: peixes em postas, carne de sol, farofa e algumas outras iguarias da região acompanhadas por bebidas enlatadas. A minha maior sede e de belezas e a minha fome, de saber mais sobre o Rio que traz em suas águas, um pouco de mim, do meu povo, da minha história, da minha verdade; um pouco de Minas.
Ali ele é o testemunho de tudo que viu e viveu, um recorte do Brasil, e é por isso que ele está adoecido. Passou por lugares doentes e chega à sua foz cansado de tantas batalhas. Bem a sua margem, alguns casebres, não palafitas, que revelam que a água ali não é tudo, talvez, o menos. Eles vivem pior que os índios primeiros, pois já não tem o que caçar, o que pescar. A doença do Rio também os empobreceu.
Já no encontro com o mar, a liberdade, o todo. Do lado de Sergipe, apenas o velho farol do povoado que o mar bebeu. Ah , é tudo tão verdadeiro, tão bonito, que fico a imaginar como era tudo aquilo ali antes dos homens e da ganância do homens. O cenário ainda é lindo e eles querem acabar com tudo aquilo, com o muito do pouco que restou. O Rio vai alegre, como uma criança que procura o mar, os braços de Deus.
Tomo um banho nele como uma benção, um batizado, um ungüento, debaixo do sol forte do nordeste. Paro um pouco e me pego imaginando coisas, remoendo tristezas, enquanto o São Francisco vem carinhosamente acariciar os meus pés.
Pensei em tudo, até que minha lágrima rolou e se misturou com as águas do Rio, se juntando às lágrimas de todos os ribeirinhos, os sertanejos, os pobres brasileiros. O que tinha em mim de mais verdadeiro, naquele momento, lhe dei, lhe doei a minha dor. E ele foi, como um santo que caminha pelas ruas de um grande país fazendo suas orações, rezando pelas famílias, pelos homens, pelas crianças, enquanto todos dormem; enquanto todos dormem, plenamente...
Petrônio Souza Gonçalves
jornalista e escritor
http ://petroniosouzagoncalves. blogspot .com
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