Escritores gaúchos de origem italiana

A literatura produzida pelos povos europeus que imigraram ao final do século XIX e já no século XX e, principalmente, por seus descendentes, ainda está por ser levantada em quase todas as partes a que essa diáspora chegou. Em língua portuguesa, pouco se sabe ou se discute o que os imigrantes lusos e seus descendentes produziram (e produzem) nos EUA, Canadá, França, Inglaterra, Luxemburgo, Alemanha e África do Sul em termos de poesia, conto ou romance, ficando essas produções reduzidas a um restrito círculo de amigos e conhecidos, sem acesso aos grandes meios de comunicação do mundo lusófono.

Logo, entre os brasileiros e (seus filhos) que imigraram nas últimas décadas para EUA, Canadá, Japão e Portugal, fugindo primeiro da tragédia que foi a ditadura militar (1964-1985) e, depois, da ameaça de fome e miséria que os recentes governos democráticos não só foram incapazes de combater como agravaram, haverá produção para que se faça pelo menos um levantamento do que se poderá chamar de literatura brasileira do exílio.

Por iniciativa do professor Brunello Natale De Cusatis, responsável pelas cátedras de Literaturas Portuguesa e Brasileira e de Língua e Tradução: Línguas Portuguesa e Brasileira da Faculdade de Letras da Universidade de Perúgia, os italianos já começaram a fazer esse levantamento com a publicação de Da Outra Margem (Dall´Altra Sponda): Três Escritores Ítalo-Brasileiros (Tre Scrittori Italo-Brasiliani), que reúne poemas de Armindo Trevisan, uma novela de José Clemente Pozenato e contos de Sérgio Faraco, com ilustrações de Danúbio Gonçalves, todos gaúchos de origem italiana.

Em edição bilíngüe, o livro tem por objetivo difundir na Itália a literatura produzida no Brasil meridional em português por descendentes de imigrantes italianos, especialmente da região do Vêneto. Segundo Carlo Alberto Bicchieri, presidente da Câmara de Comércio Italiana do Rio Grande do Sul, autor da apresentação, a escolha dos três escritores e do ilustrador ocorreu de modo quase casual, levando-se em conta o grande número de escritores ítalo-gaúchos. Por isso, segundo Bicchieri, a intenção é publicar todos os autores gaúchos que tenham suas raízes naquela região da Itália.

Para colocar em prática esse projeto, a Câmara de Comércio Italiana do Rio Grande do Sul conta com o apoio do Governo Regional do Vêneto, da Secretaria de Políticas para a Cultura e a Identidade Vêneta e da Secretaria Regional da Cultura e Instrução, de Veneza, instituições que patrocinaram a publicação de Da Outra Margem.

Dos três escritores selecionados, Sérgio Faraco, nascido em 1940 em Alegrete, cidade próxima às fronteiras com Argentina e Uruguai, é o mais conhecido nacionalmente não só pelos prêmios que obteve com livros de contos, mas também por seu trabalho como tradutor de obras de autores hispano-americanos e organizador de antologias literárias. Além disso, é um dos autores brasileiros mais traduzidos no exterior, com livros publicados na Alemanha, Argentina, Bulgária, Chile, Colômbia, Cuba, EUA, Paraguai, Portugal, Uruguai e Venezuela.

Dos dez contos de Faraco reunidos nesta antologia, o mais bem logrado é “Guerras Greco-Pérsicas”, que motivou a ilustração de Danúbio Gonçalves escolhida para a capa do livro. Nele, a aparente ingenuidade interiorana é descrita com mestria por quem sabe como preparar um final de apelo sexual, sem desbancar para a grosseria.

Outro conto de Faraco em que a ingenuidade do homem do interior transforma-se em sagacidade é “Uma casa ao pé do rio” que narra a primeira noite de um adolescente com uma cabocla mais velha, que se dispunha a atender aos mais necessitados de amor em troca de qualquer oferta, “uma réstia de cebolas, ovos ou até com menos”. O estilo do autor é límpido, de frases curtas, e caminha sem esforço para um desfecho quase sempre enigmático, causando no leitor um estranhamento, que, aliás, é a marca registrada dos grandes mestres do conto.

Embora esteja radicado em Porto Alegre há muito tempo, Faraco mantém-se fiel às origens interioranas, descrevendo cenas e situações próprias de uma pequena comunidade rural em que a influência italiana no linguajar já se perdeu, substituída pelo sotaque típico gaúcho em que o tu é acompanhado pelo verbo na terceira pessoa do singular: “Assim tu não fica com vergonha”, diz a cabocla ao adolescente de “Uma casa ao pé do rio”, convidando-o a esconder a nudez debaixo do lençol.

Nascido em 1938, José Clemente Pozenato é de Santa Teresa, localidade da cidade de São Francisco de Paula, a São Chico, como é conhecida no Rio Grande do Sul, famosa pelas suas belas paisagens em campos no meio da Serra gaúcha. Radicado desde 1966 em Caxias do Sul, onde é professor de Literatura Brasileira na universidade local, Pozenato, ao contrário de Faraco, deixa mais explícita a influência que recebeu dos ascendentes italianos. Na novela “O caso do martelo”, até reproduz na fala de seus personagens algumas expressões do Vêneto.

Filiada à tradição do romance negro, “O caso do martelo’ conta as peripécias de um delegado provinciano para chegar à autoria do assassinato de Nâne Tamànca, solteirão de mais de 60 anos, que vivia sozinho num lugarejo perto de Caxias. Quem matou Nâne Tamànca? — a resposta para essa questão leva o detetive Pasúbio a duvidar de tudo e de todos, até chegar a um final surpreendente, como em toda boa história policial que é capaz de prender a atenção do leitor até a última linha.

Armindo Trevisan, nascido em Santa Maria, em 1933, é hoje um dos mais importantes poetas do Brasil. Doutorado em Filosofia em 1963 pela Universidade de Fribourg, Suíça, foi bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa, de 1969 a 1970 e mestre de gerações de arquitetos e de artistas plásticos rio-grandenses.

Foi ainda professor de História da Arte e Estética na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. E é autor de vários livros de poemas, como A surpresa do ser (1964), A dança do fogo (1997), Os olhos da noite (1997), O canto das criaturas (1998), Orações para um novo milênio (1999), O rosto de Cristo (2003) e O sonho das mãos (2004), entre outros.

Sua poesia é marcadamente influenciada por temas bíblicos e nada tem de regionalismo. Sua religiosidade faz lembrar a do poeta português José Régio (1901-1969), ao verbalizar conflitos dentre Deus e o homem, o espírito e a carne, o homem e a multidão. Eis o que diz em “A mulher de Lot”:

A mulher de Lot acompanha cada mulher.

Tornar-se, ou não, estátua de sal.

é uma questão de tempo. A maioria das mulheres

adia essa hora após cálculos acurados.(...)

(...) Difícil encontrar uma mulher que se salinize

na hora exata, no momento em que o amor ficou frio,

deixando que o fogo desabe à vontade sobre Sodoma

e Gomorra. Deixando que Lot siga o seu caminho.

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DA OUTRA MARGEM (DALL´ALTRA SPONDA): TRÊS ESCRITORES ÍTALO-BRASILEIROS (TRE SCRITTORI ITALO-BRASILIANI), de Armindo Trevisan, José Clemente Pozenato e Sérgio Faraco; traduções de Brunello Natale De Cusatis; ilustrações de Danúbio Gonçalves. Porto Alegre, Câmara de Comércio Italiana do Rio Grande do Sul; Veneza, Regione del Veneto – Giunta Regionale/Segreteria Regionale Cultura e Istruzione, 304 págs, 2004. E-mail: [email protected]

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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]

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