O que significa a Crimeia para a Rússia?
A Crimeia não é um território estrangeiro para a Rússia, que de repente decidiu se juntar a ela. Ela é um elemento essencial da sua história, sem a qual a Rússia hoje não poderia existir. Oriental Review lança uma luz sobre a ligação física que os une.
Rede Voltaire | Moscovo (Rússia) | 29 de Março de 2014
Em 18 de março de 2014, o presidente russo Vladimir Putin fez um discurso histórico sobre a reunificação da Crimeia e da Rússia. Um referendo realizado na Crimeia dois dias antes, em plena conformidade com os procedimentos democráticos e as regras do direito internacional, chocou a muitos por seus resultados: houve 82% de participação, com quase 97% das pessoas lançando seus votos a favor da reunificação com a Rússia. Esses números foram tão surpreendentes que ainda parece haver muitas pessoas no Ocidente que não conseguem acreditar no quanto os crimeanos verdadeiramente desejavam 'voltar para casa'. E, de fato, sem a consciência da história heróica de nesta terra que tem sido tão liberalmente lavada no sangue Russo, esse entusiasmo público pode parecer irracional, ou mesmo artificial.
Entender por que eles fizeram essa escolha requer um olhar cuidadoso sobre o que a Rússia sempre significou para a Crimeia, e vice-versa. Essa história e orgulho comuns emanam literalmente de cada lugar e objeto na Crimeia. A antiga cidade grega de Quersoneso, onde em 988 AD São Vladimir, o Grande Príncipe de Kiev, foi batizado, foi fundada aqui. Seria difícil exagerar a importância que essa lendária região detém para a Rússia. A colônia foi criada na península da Crimeia pelos antigos gregos, 500 anos antes do nascimento de Cristo. Os passos de Santo André, um dos discípulos originais de Jesus, que é conhecido como 'o apóstolo da costa sul, leste e norte do mar Negro', encontram-se aqui. Crimeia é o lugar onde o sangue do apóstolo São Clemente, discípulo de Pedro, foi derramado para Cristo, consagrando a logo-a-ser-criada Rus' cristã [Rus' é uma abreviação comum de Rússia] , e aqui os apóstolos eslovenos São Cyril e São Methodius pregaram o evangelho. A conversão do Príncipe Vladimir ao cristianismo na cidade de Quersoneso na Crimeia pavimentou o caminho para a civilização russa e constituiu-se numa contribuição inestimável para a cultura e a história do mundo.
No décimo século, príncipes russos fundaram o Principado de Tmutarakan, nas margens dos mares Negro e Azov, na costa da Crimeia, na Península de Kerch, juntamente com a cidade de Korchev (agora conhecida como Kerch). Este foi o período histórico durante o qual os eslavos da Rus' Kievana [nome dado à federação de tribos eslávicas do este europeu, de fins do século IX a meados do século XIII; Rus' é o nome da região ethno-cultural do este europeu habitada por eslavos do este - historicamente, compreende a parte norte da Ucrânia, o noroeste da Russia, Belarus e algums partes dos países vizinhos: Finlândia, estados Bálticos, Polônia e Eslováquia. - NT] gradualmente fincaram raízes em toda a Crimeia. Foi na velha Crimeia, em Sudak, Mangup e Quersoneso que os eslavos constituíram-se na parte mais significativa da população.
Tmutarakan rapidamente tornou-se o segundo porto mais importante do mundo, depois de Constantinopla, através do qual passaram quase todas as rotas de comércio dos séculos XI-XII que cruzaram o mar ou a estepe. O filho do Grande Príncipe Vladimir, Mstislav, que governou o Principado até 1036, consolidou e expandiu suas fronteiras. No final do século X, os remanescentes do restaurado Reino Bizantino de Bósforo foram incorporados ao Principado. Mais tarde, uma laje de mármore foi encontrada na Península de Taman, com uma inscrição datando de 1068:
"No verão de 6576 [desde a criação do mundo, o que corresponde ao ano de 1068 - NR], o Príncipe Gleb mediu, através do mar congelado, de Tmutarakan a Korcheva, 14.000 sazhen [que é de cerca de 28 km - NR]".
Como o povo de Cuman cada vez mais invadia a Rus' no final do século XI, Tmutarakan praticamente foi cortada da Rus' Kievana e perdeu sua independência, em cêrca de 1094, encontrando-se sob o domínio dos cumanos, de Bizâncio, da Horda Dourada, Gênova e Turquia.
No final do século XVIII, a Imperatriz Catarina, a Grande, lutou para ver a Crimeia retornar à Rússia. Foi o domínio do Império Russo sobre a Crimeia que resgatou as ruínas de Quersoneso, tão sagrada para a história da Rússia, do completo esquecimento. A Imperatriz, com a disposta assistência do Príncipe Grigory Potemkin, é lembrada por ter fundado uma base naval, que foi nomeada de Sebastopol, no porto de Musa (agora conhecido como Baía de Sebastopol). A história de Sebastopol conta a notável história da bravura militar e da coragem russas.
Sebastopol, Balaclava, Kerch, Malakhov Hill e Sapun Ridge são marcos que encarnam glória militar russa e verdadeiro heroísmo. Cada um deles tem sido banhado no sangue de soldados que lutaram corajosamente para defender um futuro de paz. Os 349 dias da heróica defesa de Sebastopol, durante a guerra da Crimeia, serão para sempre comemorados nas histórias da Rússia e destes dois povos afins, como será a defesa de 250-dias da cidade durante a Segunda Grande Guerra.
Os exércitos da Grã-Bretanha, França, Turquia e Sardenha (Itália) invadiram a península da Crimeia em 1854. No dia 13 de setembro, essa cidade, que nunca antes havia enfrentado agressão de qualquer outra direção mas do mar, encontrou-se sob cerco. Fortificações e baterias de armas foram construídas sob o fogo dos inimigos que detinham uma vantagem esmagadora em tropas e canhões. A defesa da cidade foi dirigida pelo comandante da frota do mar Negro, Almirante Vladimir Kornilov e seus subordinado, Vice-Almirante Pavel Nakhimov. Cinco navios de guerra foram afundados para impedir que o inimigo entrasse no porto de Sebastopol, e tripulações e canhões navais chegaram para se juntar aos defensores. A tenacidade e o fervor patriótico dos soldados russos, marinheiros e habitantes da cidade surpreendeu o mundo. No dia 5 de outubro, os invasores começaram o primeiro bombardeio de Sebastopol, durante a qual as defesas da cidade não sofreram grandes perdas, mas o Almirante Kornilov foi ferido mortalmente. O centro da defesa foi então deslocado para Malakhov Hill. Em 28 de março de 1855, os invasores começaram um segundo ataque. Embora à custa de um grande número de baixas, eles conseguiram pressionar as nossas posições. O terceiro e o quarto assaltos terminaram da mesma forma que os ataques anteriores; mas, em 28 de junho, o Vice-Almirante Nakhimov morreu durante uma troca de tiros. O General francês Jean-Jacques Pélissier, o comandante das forças aliadas, foi ordenado por Napoleão III a capturar a fortaleza, independentemente do custo. Depois do quinto (!) e igualmente mal sucedido (!) ataque, as forças aliadas começaram a se preparar para um ataque decisivo sobre as fortificações russas já meio-destruídas. O sexto e último assalto em Sebastopol começou em 27 de agosto. A barragem envolveu oito divisões francêsas e cinco britânicas, além de uma brigada da Sardenha - um total de 60.000 combatentes - que lutou contra 40.000 russos, muitos dos quais haviam sido desviados para a linha de fundo da defesa. O destino da batalha ia de um lado para o outro. Os franceses foram capazes de capturar e manter Malakhov Hill. Por ordem do comandante geral, Mikhail Gorchakov, os defensores recuaram para o lado sul de Sebastopol, explodindo os paióis de pólvora e afundando os restantes navios. Esta aparente derrota em Sebastopol minou a força das tropas dos invasores, e eles foram obrigados a concordar com as negociações de paz em condições que eram muito diferentes daquelas que haviam esperado no início da guerra. A defesa de Sebastopol - a página mais brilhante da história da guerra da Crimeia - mais uma vez demonstrou o espírito incansável do soldado russo e sua capacidade de lutar, mesmo nas condições mais difíceis de cêrco, quando parecia não haver nenhuma chance de escape.
Depois de 87 anos, um novo cêrco e novamente uma defesa heróica e espírito incansável aguardavam Sebastopol. Tropas nazistas invadiram a Crimeia em 20 de outubro de 1941 e, em 10 dias, atingiram a periferia de Sebastopol. A cidade não havia sido preparada com antecedência para defender-se de uma abordagem por terra, mas a tentativa de tomá-la imediatamente, pelos alemães e romenos, não teve êxito. A obstinada defesa de Sebastopol começara. Fortificações de campo foram construídas enquanto os combates ocorriam, e o fornecimento de suprimentos e reforços, e a evacuação de feridos e civis podiam ser feitos exclusivamente pelo mar, muitas vezes sob ataques inimigos. No dia 4 de novembro, todas as forças soviéticas uniram-se no interior da zona defensiva da cidade. Em 11 de novembro, com significativa superioridade de tropas e artilharia, o inimigo lançou uma ofensiva. Após batalhas ferozes e sofrendo pesadas baixas, os alemães deixaram seus ataques frontais em 21 de novembro e passaram a cercar a cidade. No dia 17 de dezembro, sete divisões de infantaria alemãs e duas brigadas romenas, ultrapassando de longe em número as forças russas, lançaram uma nova ofensiva com o apoio de tanques. Os ataques foram repelidos com o apoio da artilharia naval, e outras incursões foram frustradas quando as tropas russas desembarcaram em Kerch e Feodosia. Além disso, ao forçar os alemães a desviar o 11º Exército de Wehrmacht para Feodosia, que estava sitiando a cidade sob o comando do General Erich von Manstein, os batalhões de defesa regional de Sebastopol começaram uma ofensiva parcial, melhorando sua posição em março de 1942.
A partir de 27 de maio, Sebastopol foi submetida a bombardeio incessante e ataques aéreos. Na manhã de 7 de junho, o inimigo lançou um ataque punitivo contra todo o perímetro da zona defensiva. Após uma feroz batalha, as tropas russas abandonaram Malakhov Hill em 30 de junho. Mas, a resistência continuou na periferia da cidade devastada. A batalha prosseguiu até 4 de julho, e até 9 de julho em algumas áreas. A maioria dos defensores da cidade foi morta ou feita prisioneira, com apenas alguns conseguindo chegar às montanhas para se juntar aos partidários. A defesa de 250 dias de Sebastopol, apesar de seu trágico fim, mostrou ao mundo que os soldados russos e marinheiros eram capazes de sacrifícios incríveis.
Nos corações e mentes do povo, a Crimeia sempre foi parte integrante da Rússia. Essa crença, baseada na verdade e na justiça, tem sido inabalável. E tem sido transmitida de geração a geração sem consideração de tempo ou circunstância. Mesmo as mudanças dramáticas vividas pela Rússia durante o século XX foram impotentes para alterar essa convicção. Teria sido impossível para qualquer um imaginar como a Ucrânia e a Rússia poderiam ser dois Estados diferentes. Mas, então, a União Soviética se dissolveu. Os eventos progrediram tão rapidamente que poucos na época compreenderam todo o drama do desenrolar dos acontecimentos e suas consequências. E quando, de repente, a Crimeia se tornou parte de outro país, a Rússia sentiu que não só tinha sido roubada, mas saqueada. Milhões de russos foram para a cama em um país e acordaram no dia seguinte em outro, transformados em minorias dentro das ex-repúblicas soviéticas. Assim, a nação russa se tornou uma das maiores, se não a maior nação dividida do mundo. Mas a população foi incapaz de digerir esta flagrante injustiça histórica. Durante anos, as pessoas comuns, bem como muitas figuras públicas, frequentemente, levantaram essa questão, alegando que a Crimeia era terra russa e Sebastopol era uma cidade russa. Há 23 anos, a Crimeia manteve sua alma russa e cada crimeano passou esse tempo a esperar ansioso que a península 'voltasse para casa', para a Rússia. E agora aconteceu - para euforia geral, lágrimas de felicidade e alegria tão esperada -: um triunfo da justiça histórica!
http://www.voltairenet.org/article183026.html
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