É suposto que a Inteligência Artificial nos ajude, mas a falta de raciocínio que gera significa que as gerações futuras serão menos inteligentes.
Usá-lo ou perdê-lo. Isto aplica-se certamente às línguas, e a tudo o resto. A recente notícia de que a geração de amanhã será menos inteligente do que a geração dos seus pais é alarmante e coloca várias questões em jogo.
Em primeiro lugar, isto não é nada de novo. Mesmo hoje, com a nossa tecnologia moderna, não compreendemos como é que os romanos na antiguidade conseguiram algumas das suas proezas de engenharia e aqueles de nós que lêem textos antigos descobrem que, há milhares de anos, as pessoas eram muito mais avançadas do que poderíamos imaginar, construindo pontes sobre rios largos e de caudal rápido (Londres), tendo nomes para planetas que supostamente seriam descobertos nos séculos XVIII e XIX (Babilónia, 4 mil anos antes das “descobertas” ), maravilhando-se com relógios de água que marcavam a hora (Roma), por exemplo. Se examinarmos a qualidade dos mosaicos romanos do século I a.C. e os compararmos com os do século III d.C., verificamos uns passos para trás em termos de perícia e qualidade.
Em segundo lugar, apesar dos nossos avanços tecnológicos, as últimas investigações revelam tendências alarmantes em termos da capacidade intelectual dos gerações que seguem. Causas e soluções?
É óbvio que se uma criança deixar de fazer aritmética mental e chegar a uma resposta carregando num botão, não fará sentido gastar tempo a raciocinar quando pode encontrar a resposta a um problema aritmético complexo em poucos segundos. Por um lado, poupou tempo, por outro, deixou de utilizar cadeias cognitivas. O processo de raciocínio foi ultrapassado, tal como uma bola lançada por cima do meio-campo no futebol, diretamente do guarda-redes para o avançado. Passe. Golo. Quem precisa de jogadores de meio-campo que custam centenas de milhões?
Também é óbvio que, se uma criança for submetida a testes de escolha múltipla, circulando ABCD com uma caneta e não descrevendo por escrito como chegou à resposta, o mesmo processo cognitivo se perderá, já para não falar das competências ortográficas, uma vez que os correctores automáticos não só fazem esse trabalho como também sugerem o resto da linha. Ou, se usar Inteligência Artificial, o texto inteiro. Ou a tese de doutoramento, com as fontes.
Passemos agora rapidamente para o mundo da música ou das artes visuais. Quando me dedicava à escrita de canções (antes do aparecimento da Internet, escrevi cerca de 50 canções e publiquei pelo menos 40 delas), passávamos um dia inteiro num estúdio de gravação a gravar uma canção, colocando a percussão nas faixas mais baixas (1,2), depois o “bass” nas faixas 3,4 e, em seguida, os outros instrumentos nas faixas 5,6 e, finalmente, a voz nas faixas mais altas (7,8 de 8, 15,16 de 16 ou 23,24 de 24 e assim por diante). Podiamos melhorar a qualidade até certo ponto rodando botões e fazendo deslizar os cursores para cima e para baixo (contrariamente à crença popular, essa é a função do engenheiro de som, não dos autores, compositores ou intérpretes das canções e não é isso que as pessoas fazem num estúdio de gravação. Elas gravam).
Hoje em dia, é possível gravar uma canção num computador portátil. Grava-se a música e depois canta-se sobre ela, uma vez. A voz é vista como uma onda sonora e pode ser ajustada no ecrã. Podemos fazer com que uma senhora idosa soe como um robô, podemos fazer com que um soprano soe como um barítono, um baixo….. podemos polir em três minutos o que costumava levar um dia a fazer.
Mas pior ainda. Até se pode premir um botão e obter uma canção, com a letra, pedindo à IA. Escreve-me uma canção com 4 versos e um refrão/coro com o tema Blue Moon Clouds. Estilo? Hip Hop. Ritmo sugerido. Não, mais rápido. Mais forte, batida mais forte. Adiciona uma guitarra baixo. Trombone aqui. Violinos ali. É isso. Pronto.
O problema é: quem são os autores e os compositores? Como é que se calculam os direitos de autor, porque a IA foi buscar a obra a algum lado, provavelmente a muitas fontes diferentes, mas há uma cadeia de notas que foram copiadas de algures. Esta área, a da propriedade intelectual, é de grande importância para aqueles que estão a ver o seu trabalho copiado, gratuitamente (antigamente ganhava-se um dólar por disco, mas com o streaming hoje em dia isso desapareceu). Significa também que, se não utilizarmos as nossas competências para construir cadeias cognitivas, perderemos a capacidade de fazer música ou de criar artes visuais.
Em terceiro lugar, observem um(a) jovem hoje em dia e contem quantos segundos ela/ele consegue ficar sentado e concentrado. A não ser, claro, que tenha seis máquinas diferentes a piscar os seus ecrãs, para além da televisão, que, de qualquer modo, é considerada “aborrecida” e não passa de uma fonte para ter a Internet num ecrã maior. O tempo de atenção mede-se em segundos e, com isso, a capacidade de se sentar e ler um livro e de aprender a pensar e a raciocinar. O que é que acontece se a solução de pressionar o botão e chegar à resposta não estiver disponível?
Exemplo: a minha mãe foi à padaria e pediu 100 pãezinhos a, digamos, dez cêntimos cada. A calculadora não estava a funcionar. Primeira empregada: “um Euro”. Segunda empregada: “100 Euros”. O gerente: “Um Euro e vinte”. A minha mãe pôs os dez Euros no balcão, disse: “Entendam-se”, pegou no pão e saiu.
Levemos este debate um pouco mais longe. Se as pessoas perderem a capacidade de raciocínio, transformar-se-ão em imbecis crédulos. No passado, se um político afirmasse que ia dar casa a toda a gente, educação gratuita, serviços públicos gratuitos, cuidados de saúde gratuitos, pelo menos no mundo ocidental, as pessoas diriam “Sim, mas como é que vai pagar isso?”. (Nos países socialistas, conseguiram-no perfeitamente, mas isso é outra história). As pessoas argumentariam que ou se aumentam os impostos ou se pede emprestado aos mercados. De uma forma ou de outra, responsabilizavam o político através do raciocínio.
E hoje? Tudo o que é preciso para ganhar uma eleição é um soundbite sexy. “Make America Great Again” (o que quer que isso signifique). “Get Brexit Done” (aliás, fazer algo que não pode funcionar, por definição, mas o slogan funcionou). Por isso, os grupos populistas de extrema-direita estão a disparar soundbites contra as populações, cujos membros mais jovens estão a cair nessa. “Limpem a nossa política”. Ou, numa perspetiva mais xenófoba, “Os imigrantes vêm todos para cá para vos tirar o emprego”. “Os lugares nos hospitais e nas escolas estão a ser ocupados”.
No que diz respeito aos direitos de autor e aos direitos de propriedade intelectual, não pode haver uma solução legal sem um quadro jurídico, pelo que a Ciberdirectiva Universal tem de ser escrita e aplicável. Tal como acontece com o direito internacional, escrevê-lo é uma coisa, aplicá-lo é outra. Aqueles que hoje se sentam em cima de grandes cavalos morais esquecem-se do que fizeram no Iraque e na Líbia, sem qualquer contexto. No mundo da música, possivelmente, a regra dos velhos tempos de considerar como plágio seis notas consecutivas e um número finito de palavras nas letras poderia ainda aplicar-se à IA?
Num contexto mais alargado, as coisas têm de começar, mais uma vez, com um enquadramento e o enquadramento de uma sociedade começa com a educação. Primeira pergunta: as nossas salas de aula estão hoje adaptadas à socialização dos que nelas se sentam? Por outras palavras, a sala de aula é socializada para a/o aluna/o? Ou são fundamentalmente as mesmas que eram no meu tempo (nascido em 1958)?
Em seguida, o conteúdo do currículo tem de oferecer soluções. Nada de calculadoras nas salas de aula até que a construção da cadeia cognitiva tenha sido estabelecida, porque com um cérebro em desenvolvimento, ou se adquire as competências no momento certo ou nunca se consegue adquiri-las. Os especialistas podem concordar com a idade de doze anos, por exemplo. Até lá, um programa que sublinha a criação de cadeias cognitivas e o raciocínio nas aulas e nos testes.
Testes de escolha múltipla, OK, mas também espaço para o raciocínio, por escrito. Juntar a este tipo de abordagem aulas de cidadania (quando voto, e em quem, o que significa, no meu país e por exemplo nas eleições para o parlamento europeu? Como estebelecer uma firma? Como é a vida das pessoas que ganham um salário mínimo? Qual é o mínimo que uma pessoa/família precisa para uma vida digna?)
Como vemos, trata-se de fazer perguntas e raciocinar sobre as respostas, começando pelo princípio e utilizando o senso comum, algo que a IA não pode substituir e nunca substituirá. Estejam atento a este espaço. Se não tomarmos medidas, mais vale mudar o nome da espécie para Homo stultus e retirar a palavra sapiens.
Afinal de contas, começamos a saber cada vez menos.
Timothy Bancroft-Hinchey pode ser contactado em [email protected]
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