A cidadania é um espaço a conquistar

Cidadania: origem etimológica. Componentes lexicais do latim: – civitas = cidade ou povo; – anus = pertencente; – ia = qualidade. Portanto, cidadania pode ser etimologicamente entendida como pertencente a uma cidade ou povo.

A liberdade custa muito caro e temos que nos resignar a viver sem ela, ou decidir pagar seu preço
José Martí


Conceito. Evoluindo ao longo da história desde a Grécia Antiga, o termo cidadania é polissêmico, ou seja, possui hoje diversas conotações. Um ponto em que a maioria dos autores contemporâneos coincide diz respeito à responsabilidade social, aos direitos e deveres do cidadão e seu compromisso com o bem comum que se desvincula de nacionalidade, cor de pele, religião, gênero, classe social, nível educativo, e qualquer outra diferença que possa induzir à exclusão social.
O escritor e crítico cultural americano-canadense Henry Giroux observa:

A cidadania é um processo de diálogo e compromisso no qual os cidadãos constróem uma linguagem pública de emancipação  e crítica ao poder do Estado. (…) A cidadania, desta maneira, está ligada às relações de poder e à formação dos significados.
Estas observações trazem uma ideia que tem sido bastante considerada por diversos analistas atualmente, indo além de meros direitos e obrigações a ser cumpridos pelo cidadão para torná-lo protagonista da história, ator ativo na vida política de seu país em contraposição ao individualismo: a responsabilidade cidadã diante de sua comunidade, a conscientização através da troca de argumentos e o bem-estar coletivo, o que tem relação com a solidariedade, e com as decisões a ser tomadas e a fiscalização direta ao poder estabelecido. 

Assim, cidadania relaciona-se a direitos civis, políticos e socio-econômicos, e culturais, sendo inseparável da justiça e da ordem pública ainda que, em casos extremos, esta deva ser rompida para restaurá-la pela paz social. Processo apenas possível em um Estado laico.

Quando a liberdade é retirada à força, pode ser recuperada à força;
se abandonada voluntariamente, pela omissão, jamais poderá ser restaurada
Dorothy Thompson
 
Exercício. Jogar lixo no cesto, ajudar a senhora a atravessar a rua, o senhor a carregar a sacola, abrir a porta dando passagem prioritária a mulheres e idosos, intervir quando animais ou seres humanos mais frágeis estiverem sendo mal-tratados, socorrer um acidentado, respeitar o professor, fazer valer direitos de cidadão, dialogar especialmente com as diferenças, participar dos assuntos de interesse do bairro e cobrar, através das ferramentas que estiver ao alcance, políticos e pessoas em posição de poder para que atendam necessidades da sociedade, ou ecoar sua voz quando seus direitos forem violados. Manter-se bem informado e integrado à sociedade onde se vive, obviamente é básico.
 
Este é o grau de “cidadania crítica” ou “cidadania ativa-social” que coloca os cidadãos, não importando onde estejam nem nenhuma outra diferença como já observado, como protagonistas da vida política desde suas respectivas comunidades ou mesmo na condição de estrangeiros para muito além de cidadão limitado a direitos e deveres inseridos em um plano mais restrito, ou do “cidadão consumidor” segundo a lógica do mercado, afastado das implicações sociais e políticas.

Pluralidade de pensamentos, conviver com as diferenças contra o sistema corrupto, discriminador e excludente
Edu Montesanti

Como visto, o direito é base da cidadania com destaque aos direitos indisponíveis, ou seja, inalienáveis: considerados inerentes a todas as pessoas em todos os lugares, são base dos direitos humanos. Os direitos indisponíveis formam parte das classificações do direito subjetivo, ou facultas agendi em latim: o direito que o cidadão tem de exigir direitos garantidos por lei. Outro ponto do direito que merece saliência quando se trata de cidadania é o garantismo, modelo baseado na subordinação de todos os poderes, públicos e privados, e nos vínculos que lhes são impostos para garantir os direitos fundamentais reconhecidos nas constituições, segundo definição do jurista italiano Luigi Ferrajoli. Para o renomado especialista florentino em leis, garantismo jurídico é a garantia de que os direitos subjetivos serão cumpridos.

A consciência é criadora de significados
Martha Stout

Consciência. “Coloca as pessoas (e por vezes os animais) acima dos códigos de conduta e das expectativas institucionais. Preza mais os ideais humanísticos que as leis. A consciência protege os privilégios da intimidade, faz com que os amigos cumpram as suas promessas, evita que o cônjuge irritado revide. Denuncia instituições quando vidas estão em perigo. A consciência genuína muda o mundo”, assim define a consciência, de maneira prática, a psicanalista americana Martha Stout no livro The Sociopath Next Door. Mas o que e a consciência? Segundo a própria Martha Stout, a consciência é algo que sentimos, nada tendo de comportamental nem cognitiva. “Comportamento agradável, ação prudente, pensamentos sobre como as outras pessoas reagirão a nós, conduta honrosa no interesse da nossa consciência de auto-estima, tudo isso tem um efeito positivo no mundo; nada pode ser definido como a consciência do indivíduo”, afirma a psicanalista, apontando ainda que estes aspectos são baseados em regras trazidas ao individuo pela sociedade e pelos pais na infância, o que Freud denominou “superego”. Neste sentido, Stout afirma que o indivíduo consciente vai às últimas consequências ao defender a vida enfrentando, se necessário, o poder estabelecido: “a consciência pode até ir prisão; o superego jamais faria isso”. E acrescenta: “a consciência existe principalmente no domínio do ‘afeto’, mais conhecido como emoção. A consciência é um senso de obrigação baseado, em última análise, em um apego emocional a outra criatura viva. Não existe sem um vínculo emocional com alguém ou alguma coisa”. Stout observa que, por outro lado, na ausência do “setimo sentido” do ser humano, a consciência, “a vida é reduzida a uma competição”. Portanto, o exercício da cidadania tem tudo a ver com o sentimento, e apenas com ele, provedor da consciência. Tudo isso nos faz recordar as palavras do apóstolo Paulo na I Carta aos Coríntios, passagem tão pouco ou mesmo nada lida nas igrejas ditas cristãs das mais diversas vertentes, especialmente nas estudiosas “protestantes”: “Se eu doasse todos os bens aos pobres, se eu fizesse o que fosse sem amor, de nada valeria”. Não por mera coincidência, essas mesmas confrarias são as que vivem mais distantes da cidadania, possuindo verdadeira e aberta ojeriza à mera menção deste assunto.

A cidadania é um espaço a conquistar
Washington Uranga
 
Consequências. Observa Noam Chomsky:

David Hume intrigou-se com ‘a facilidade com que muitos são governados por poucos, a submissão implícita na qual os homens renunciam’ seu destino aos governantes. Ele surpreendeu-se com ‘a força sempre ao lado dos governados’. Se as pessoas percebessem isso, levantar-se-iam e derrubariam os chefes. Ele concluiu que o governo baseia-se no controle da opinião, o que ‘se estende aos governos mais despóticos e principalmente militares, assim como aos mais livres e populares’ (Consent Without Consent).
Exercer cidadania ativa-social empodera o cidadão, naturalmente tirando-o da condição submissa diante dos governantes. Outra consequência é a aproximação ao estado de paz social, uma responsabilidade coletiva.

Uma diferença fundamental entre as ditaduras modernas e todas as outras tiranias do passado, é que o terror não é mais usado como meio para exterminar e amedrontar opositores, mas como instrumento para governar massas perfeitamente obedientes
Hannah Arendt

Felix qui potuit rerum cognoscere causas: Feliz de quem pode conhecer as causas das coisas
Vergilius em Georgiche (latim, 29 a.C.)

Luta Cidadã pelo Mundo. O povo berbere, nativo da região do Magrebe ao norte da África, autodenomina-se amazigh (homem livre), ou imazighen no plural. O termo berbere, aplicado pelos romanos na antiguidade, deriva do latim barbarus: referia-se a todos os estrangeiros, não possuindo conotação negativa no Império Romano ao contrário do equivalente em grego βάρβάρος, que na Grécia Antiga tratava dos “povos https://minorityrights.org/minorities/imazighen/incivilizados” (no conceito grego, qualquer um que não fosse romano, cristão ou grego, propriamente: “a grande civilização”). Colonizados pelos fenícios, romanos e bizantinos no passado, os berberes possuem cultura impressionantemente ampla. Ramificações de línguas afroasiáticas, as linguas berberes, faladas atualmente por cerca de 40 milhões de pessoas especialmente na Líbia, Argélia e no Marrocos (em menor medida em Burkina Faso, na Tunísia, Mauritânia, no Mali, Egito e Níger), possuem escrita própria cujo alfabeto denomina-se tifinague, ou líbico-berbere nas versões originais. Porém, os alfabetos árabe e latim têm sido mais utilizados pelos berberes atualmente. As línguas berberes, com tradição linguistica de mais de 2 mil anos, possuem cerca de 40 variações: o tamazight, (Marrocos, cerca de 3 milhões de falantes) e a Cabila (Argélia, cerca de 8 milhões de falantes), são os mais falados atualmente; na Tunísia prevalece o berbere tunisiano, e na Líbia o Nafusi. Derivadas dessas dezenas de variações genéricas, contam-se cerca de 300 subvariações linguisticas espalhadas pelas comunidades berberes. Adeptas majoritariamente do islamismo sunita hoje, com predomínio de cristãos antes do dominio árabe, as sociedades berberes concedem importante status às mulheres: mesmo após a invasão árabe no século VII, as mulheres desempenham papel fundamental não apenas dentro das famílias berberes como tambem nas artes, e até na resistência a forças estrangeiras opressoras. “As mulheres são valorizadas como guardiãs da língua e cultura berbere, elementos centrais para a construção da identidade. A construção e preservação da identidade por meio da arte também estão no centro da atividade religiosa e espiritual das mulheres berberes” (Women in Berber Culture). O imperialismo sobre as sociedades berberes faz-se sentir ainda nos dias de hoje, através da arabização linguística e cultural como um todo na região: apenas em 2003 o berbere foi considerado língua oficial na Argélia, e em 2011 no Marrocos. No Mali e Níger, as línguas tuaregues (pertencentes à família linguística berbere) são reconhecidas nacionalmente, parte do currículo escolar desde os anos de 1960. Contudo, a repressão contra os berberes continua particuarmente forte no Marrocos, na Argélia e na Líbia, onde vivem excluídos da vida política e sofrem até agressões físicas por forças estatais, além de demonizados pelas partes preponderantes das sociedades locais.

ⴰⵔ ⵝⵓⴼⴰⵜ (até breve em berbere; ar thufat, transliterado).

 

A liberdade política do cidadão é a tranqulidade de espírito que provém da confiança que cada um tem em sua segurança; para que esta liberdade exista é necessário que, em um governo como tal, nenhum cidadão tema outro
Montesquieu

Você sabia que…

… o “efeito borboleta” é um conceito usado na matemática e na física, popular pela explicação de que
o bater de asas de uma borboleta pode ser capaz de causar uma tempestade na outra parte do globo?
Edu Montesanti: jornalista, escritor, professor e tradutor
edumontesanti.wordpress.com

  felices quibus vivere est libere
 
 
 

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Author`s name Edu Montesanti
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