Venturas e desventuras do fenômeno político

Venturas e desventuras do fenômeno político

Iraci del Nero da Costa *

No correr da história da humanidade observou-se o crescente confinamento do político em um espaço social cada vez mais restrito. Tal processo foi acompanhado do correlato atrofiamento das funções desempenhadas pelo político e dos âmbitos por ele ocupados.

Muitas das instituições que regem a vida social representam importantes momentos de tal processo, inclusive a emergência do Estado, dos partidos políticos, dos direitos civis e da cidadania. Por sua vez, a transformação da força de trabalho em mercadoria, que tornou possível a constituição do modo de produção capitalista, significou um salto qualitativo nas relações entre o político e o econômico, pois com o nascimento do capitalismo deu-se a autonomização do econômico vis-à-vis o  político. 

Embora estejamos em face de um contínuo processo de atrofia do político, dado o fato de ser ele acompanhado de uma consequente crescente geração de novas instituições desenhadas para albergar funções e atribuições que se vão objetivando - desgarrando-se, assim, da vida social que aparece num primeiro momento como um todo mais ou menos indiferenciado -, a aparência é a de que está a ocorrer uma expansão dos fenômenos políticos. Na verdade, o político deixa de ser o elemento dominante do todo, deixa de "confundir-se" com o todo, para ocupar espaços institucionais concretos e, portanto, mais limitados e restritos, e, por isso mesmo, mais "visíveis" e facilmente identificáveis. Correlatamente, seu "antigo lugar" passa a ser ocupado por novas esferas da vida social que vão adquirindo crescente "liberdade", culminando por autonomizarem-se; isto se dá tanto com a religião como com o econômico.

Evidentemente não estamos aqui a advogar papel determinante para o político, mas, sim, papel dominante; o papel determinante cabe às condições materiais da existência social, ao econômico como explicitado por Marx em passagem das mais conhecidas: "Aprovecharé la ocasión para contestar brevemente a una objeción que se me hizo por un periódico alemán de Norteamérica al publicarse, en 1859, mi obra Contribución a la crítica de la economía política. Este periódico decía que mi tesis según la cual el régimen de producción vigente en una época dada y las relaciones de producción propias de este régimen, en una palabra 'la estructura económica de la sociedad, es la base real sobre la que se alza la supraestructura  jurídica y política y a la que corresponden determinadas formas de conciencia social' y de que 'el régimen de producción de la vida material condiciona todo el proceso de la vida social, política y espiritual', era indudablemente exacta respecto al mundo moderno, en que predominan los intereses materiales, pero no podía ser aplicada a la Edad Media, en que reinaba el catolicismo, ni a Atenas y Roma, donde imperaba la política. En primer lugar, resulta peregrino que haya todavía quien piense que todos esos tópicos vulgarísimos que corren por ahí cerca de la Edad Media y del mundo antiguo son ignorados de nadie. Es indudable que ni la Edad Media pudo vivir del catolicismo ni el mundo antiguo de la política. Lejos de ello, lo que explica por qué en una era fundamental la política y en la otra el catolicismo es precisamente el modo como una y otra se ganaban la vida. Por lo demás, no hace falta ser muy versado en la historia de la república romana para saber que su historia secreta la forma la historia de la propiedad territorial. Ya Don Quijote pagó caro el error de creer que la caballería andante era una institución compatible con todas las formas económicas de la sociedad" (MARX, 1964, p. 46, nota 36).

Em termos simples, pode-se pensar num todo mais ou menos homogêneo no qual fundiam-se o político, o econômico e o religioso; todo este que, embora de maneira harmônica, vai-se tripartir em âmbitos independentes, autônomos: o político, o econômico e o religioso. Agora, a amalgamá-los estão, além de um conjunto numeroso de instituições de variado tipo - algumas das quais absolutamente neutras -, as distintas ideologias e "visões de mundo" que permeiam toda a vida social e, em particular informam e/ou enformam, os diversos, e eventualmente antagônicos, segmentos sociais. De outra parte, caso lembremos ser impossível a vida social sem a presença de todos esses elementos, pode-se falar em uma autonomia relativa de cada um deles em face dos demais, com os quais formam, a cada momento ou quadra da história, um todo solidário, ainda que carregado de contradições.

Aqui, a analogia puramente formal com o fenômeno da concepção cabe plenamente: de um todo aparentemente uno e indiferenciado desenvolvem-se tecidos e órgãos específicos. O paralelo ora aventado tem um caráter meramente formal porque, no caso da vida social, os "resultados" não se encontram previamente "impressos" no assim chamado "todo inicial", mas sempre ver-se-ão mediados pela ação dos homens, seja ela inintencional ou plenamente consciente (Sobre tal questão leia-se MOTTA & COSTA, 2000 e MOTTA & COSTA, 2004).

Pode-se afirmar ser a questão ora focada amplamente conhecida; assim, Georg Lukács, em sua Estética, de maneira clara e elegante mostrou as relações existentes entre as práticas mágicas (o todo indiferenciado inicial) e seus desdobramentos: as artes, as religiões e as ciências. Como sabido, as práticas mágicas podem ser vistas como um forma de manipulação das forças naturais e sobrenaturais: a determinadas ações assumidas e/ou preparadas pelo mago corresponderá, necessariamente, uma resposta bem definida das divindades ou forças equivalentes. Este caráter necessário afasta a magia da religião, mas a aproxima do mundo da ciência. Na medida em que se abandona a expectativa de uma resposta infalível e é ela deixada ao arbítrio das deidades, tem-se aberto o caminho para o desenvolvimento das religiões. De outra parte, na medida em que o mundo circundante é impregnado por uma visão antropomórfica, conforme se promove sua antropologização, gera-se o caldo cultural no qual florescerão as artes. Já a desantropomorfização e racionalização da realidade levará à emergência do mundo do conhecimento científico. Eis, pois, como, de um todo inicial, vimos tornarem-se independentes três dos mais relevantes escaninhos da vida humana.

Conquanto alguns dos processos aqui descritos mostrem-se irreversíveis, tal propriedade não representa uma característica universal do relacionamento existente entre as várias instâncias e âmbitos em foco. Destarte, se não é razoável imaginar o colapso das ciências e das religiões num conjunto novo de práticas mágicas, o mesmo não se pode dizer das futuras interações do político com o econômico. Muitos esposam a ideia segundo a qual uma eventual superação do modo de produção capitalista supõe a subsunção do econômico no político. Neste último caso a vida econômica, de sua parte, perderia sua relativa autonomia enquanto, correlatamente, a ciência econômica deixaria de existir como ramo independente do conhecimento e se transformaria numa nova forma de "engenharia econômica" (Quanto a este tema recomendamos o texto MOTTA & COSTA, 1999). Estaríamos em face, pois, da "reabsorção", em nível absolutamente novo e original, do econômico pelo político.   

A esta altura parece interessante assinalar que as lutas político-ideológicas desencadeadas pela derrubada do muro de Berlim e pelo desmantelamento do "socialismo real" travaram-se, justamente, em torno do espaço a ser ocupado pela ação política. Apoiados na desarticulação das forças de esquerda, os ideólogos conservadores, respaldados nas teses e práticas neoliberais, procuraram executar um  movimento com duas facetas inter-relacionadas. O momento ideológico, de cunho positivista, viu-se representado pela "naturalização" do econômico, ou seja, a vida econômica passou a ser definida como um fato natural imediatamente determinado pelas "forças de mercado"; o mercado viu-se, assim, erigido em ente natural ao qual cumpre a solução de todos os problemas econômicos. Em face disso impõe-se o momento empírico, qual seja: a subordinação da vida política aos ditames naturalmente emanados do funcionamento automático dos mercados. Aos agentes políticos cumpriria, neste quadro, desempenhar, tão somente, duas tarefas básicas: de um lado afastar da vida econômica a intervenção Estatal, vista como algo artificial e distorcedor do curso normal da "natureza", incluindo-se aí, qualquer veleidade de implementação das assim chamadas "políticas compensatórias" e/ou daquelas desenhadas para proteger os menos privilegiados ou destinadas a corrigir inconcebíveis desvirtuamentos impostos pela ação dos mercados; por outro lado, adotar  medidas que correspondam, estritamente, à plena operacionalidade dos mercados. A esse respeito parecem-me paradigmáticas as declarações de Philip Bobbitt - professor da Universidade do Texas e do King's College de Londres; ex-membro da direção do Conselho de Segurança Nacional nos governos de George Bush e Bill Clinton; autor do livro editado pela editora Campus e intitulado A guerra e a paz na história moderna: o impacto dos grandes conflitos e da política na formação das nações - publicadas no Caderno Mais! da Folha de S. Paulo (16/11/2003, p. 3): "É ainda muito cedo para dizer, mas, na minha opinião, o Estado-mercado está começando a se desenvolver e os Estados-nação serão totalmente substituídos por ele. O Estado-mercado tem prioridades diferentes do Estado-nação a que estamos acostumados. Em vez de promover o bem-estar da sua população em troca de impostos e ordem, o Estado-mercado será o menos invasivo possível, e seu objetivo será o de promover as maiores oportunidades para os indivíduos se desenvolverem - e a liberdade comercial será apenas uma dessas oportunidades."Ao eleitor caberia, tão só, escolher os mais capazes de executarem essas duas funções de mordomos do capital.

Como sabido, os defensores mais ferrenhos do neoliberalismo, em face dos fracassos alcançados pelos que se abalançaram a implementar suas políticas, viram-se obrigados a recuo estratégico. Alguns mostram-se desenxavidos e albergam-se em estratégico silêncio, outros procuram o reconfortante aconchego da tese segundo a qual é preciso reconsiderar a validade das velhas políticas compensatórias. 

Segundo parece, o fenômeno político está fadado a enfrentar um grande número de percalços. No século XX não faltaram ditadores totalitários da esquerda e da direita desejosos de eliminá-lo; neste início do XXI, enquanto os esquerdistas recém-convertidos à democracia lutam por mantê-lo vivo, os neoliberais da direita procuraram, sem êxito, sufocá-lo. A nós, aferrados que nos sentimos às utopias humanistas e igualitárias, resta-nos desejar à política uma rica, perene e vitoriosa existência.

NOTAS

  

LUKÁCS, Georg. Estética. Barcelona, Ed. Grijalbo, 1966, vol. 1, passim.

MARX, Carlos. El Capital: crítica de la Economia Política. México-Buenos Aires, Fondo de Cultura Econômica, volume I, 1964.

MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. Da ciência econômica à engenharia econômica. Informações FIPE. São Paulo, FIPE, n. 227, p. 24-27, 1999.

MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. Hegel e o fim da história: algumas especulações sobre o futuro da sociabilidade humana. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro, Sette Letras, número 7, dez. 2000, p. 33-54.

MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. A mercadoria força de trabalho, o capitalismo e a emergência de uma nova forma de sociabilidade humana. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro, Editora 7 Letras, número 14, jun. 2004, p. 32-47.

ORNAGHI, Tiago. O charme discreto do novo modelo. São Paulo, Caderno Mais! da Folha de S. Paulo, 16 de nov. de 2003, p. 3.  

  

(*) Professor Livre-docente aposentado.

 

By Koyos - Own work, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=5459884

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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