'Brasil trai seus próprios interesses ao se alinhar com Israel e EUA contra palestinos'

'Brasil trai seus próprios interesses ao se alinhar com Israel e EUA contra palestinos'

Ualid Rabah: "O Brasil está fazendo uma aposta contra todos os seus interesses". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Por Marco Weissheimer, no Sul21

O Brasil só tem a perder com o alinhamento direto e unilateral com os Estados Unidos e Israel no tratamento da questão palestina. Essas perdas se darão nos campos econômico, político, diplomático e moral. O governo Jair Bolsonaro está cometendo um grave equívoco com essa postura, traindo os interesses do país. A avaliação é de Ualid Rabah, novo presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (FEPAL), que realizou a décima edição de seu congresso nacional, dias 26, 27 e 28 de abril, no Hotel Embaixador, em Porto Alegre. O evento homenageou os 125 anos de imigração palestina no Brasil e os 40 anos do movimento que deu origem à Federação, ocorrido em 1979, em Brasília. Advogado de 52 anos, natural de Toledo e vivendo hoje em Curitiba, Ualid Rabah foi eleito para presidir a FEAPL no período 2019-2023.

"Só o mercado árabe tem uma população de quase 400 milhões de habitantes. Considerando o mercado muçulmano no mundo, estamos falando de algo em torno de um bilhão e meio de habitantes. Abrir mão disso a troco de quê? Para manter comércio com Israel, com quem o Brasil tem uma balança comercial deficitária, e que jamais vai se expandir?", diz Rabah, em entrevista ao Sul21.

Desde a resolução 181 da Assembleia Geral da ONU, que recomendou a partilha da Palestina, destaca o diretor da FEPAL, o Brasil manteve-se apoiando a ideia de criação de um Estado da Palestina soberano, independente, seguro e contíguo. Ualid Rabah chama a atenção para o significado da mudança protagonizada pelo governo Bolsonaro:

"Essa tradição pautou a conduta do Brasil de estabelecer relações de amizade com os dois povos, uma condição que permitiria (e sempre defendemos isso) ao país atuar como eventual mediador e contribuinte para a paz. A se afirmar esse caminho da política externa estadunidense adotada pelo Trump e o alinhamento do Brasil, isso significará o abandono dessa percepção para adotar uma conduta muito ruim que é a de ser amigo de um lado, acriticamente, e inimigo do outro povo.  Ao fazer esse alinhamento com Estados Unidos e Israel, o Brasil está fazendo uma aposta contra todos os seus interesses, onde só tem a ganhar, escolhendo um caminho onde só tem a perder".

Sul21: A Federação Árabe Palestina do Brasil realizou seu 10° Congresso, em Porto Alegre, em um cenário de crescente preocupação sobre a situação do povo palestino e também sobre o novo posicionamento adotado pelo país a partir do governo de Jair Bolsonaro. Como avalia esse novo contexto que cerca a questão palestina?

Ualid Rabah: O primeiro evento palestino no Brasil foi realizado há 40 anos, em um momento em que as liberdades democráticas no país sofriam restrições. A sua realização foi admitida, desde que não fosse muito publicizado. O evento acabou sendo realizado quase em sigilo, em 1979, em Brasília. O primeiro congresso, propriamente dito, só foi realizado em janeiro de 1980, aqui em Porto Alegre, no mesmo hotel que sediou agora o 10° Congresso. Estamos falando de 40 anos do movimento palestino organizado no Brasil e de 125 anos da imigração palestina para o Brasil.

Os palestinos foram saindo de suas terras de diáspora em diáspora provocadas por diferentes situações de opressão que viveram. No final do século XIX, quando começou a imigração para o Brasil, foi a opressão otomana. Essa diáspora continua após a Primeira Guerra Mundial, quando os britânicos se tornaram a potência dominante na região. E prosseguiu, em um tom extremamente mais dramático, a partir de 1948, com a criação do Estado de Israel e com a prática (que já é reconhecida em documentos da ONU) da limpeza étnica da Palestina. Perto de 65% da população originária é morta ou expulsa de suas terras, fazendo com que sejamos hoje a maior população refugiada do mundo.

Embora representemos apenas 0,2% da população mundial, integramos cerca de 9% da população refugiada mundial. Somos aproximadamente 13 milhões de palestinos no mundo hoje, sendo que quase seis milhões são refugiados, segundo os últimos dados da ONU. Então, esses 125 anos de imigração palestina para o Brasil não representam uma imigração qualquer. É uma imigração inteiramente baseada na opressão, na ocupação estrangeira e na limpeza étnica.

Sul21Qual a estimativa de população palestina ou de origem palestina vivendo hoje no Brasil?

 Ualid Rabah: Nós estimamos que há cerca de 70 mil palestinos vivendo no Brasil. Esse dado não é muito preciso, pois não existe censo para isso. No processo de construção do 10° Congresso da FEPAL nós temos andado muito e é possível ver que há muita população de origem palestina espalhada pelo país. Sempre se imaginou, por exemplo, que em Curitiba viviam não mais do que cem palestinos e descendentes. Na verdade, temos pelo menos 293 palestinos vivendo na cidade, um número que ainda não está consolidado. Ou seja, é três vezes mais do que era estimado. A população palestina que chegou ao Brasil entre o final do século XIX e o início do século XX nunca foi bem estimada. Então, achamos que somos em torno de 70 mil palestinos e descendentes no Brasil atualmente. Cerca de metade deles está concentrada no Estado do Rio Grande do Sul.

Sul21Quais os principais temas que orientaram os debates do 10° Congresso da FEPAL?

Ualid Rabah: O Congresso se orientou pelos quarenta anos de história da Federação e pelos 125 da imigração palestina para o Brasil dentro do atual contexto político nacional e internacional. O quadro atual no mundo é muito adverso à questão palestina. Os Estados Unidos sempre tiveram uma postura pró-Israel e, a partir de 1967, tornam-se seu patrocinador quase que único. Agora, porém, os Estados Unidos adotaram uma postura do tipo "solução final" para a questão palestina, de liquidação da questão palestina.

O atual governo dos EUA já disse que não reconhecerá mais o status dos refugiados palestinos, senão daqueles que tiveram que fugir da Palestina em 1948 e estão vivos ainda. Isso envolve cerca de 5% dos palestinos. Essa decisão destoa totalmente do status de refugiados definido pela ONU e da resolução 194 que diz que todos os refugiados e seus descendentes têm o direito ao retorno e às compensações. Essa resolução foi cláusula condicionante para que Israel fosse admitida na ONU.

Os Estados Unidos também já disseram que vão reconhecer os blocos de assentamentos ilegais, especialmente na Cisjordânia, como parte integrante de Israel, o que significa que não haverá possibilidade de contiguidade territorial no futuro Estado palestino. Portanto, a solução dos dois estados e os chamados acordos de Oslo de 1993 - que foram resolvidos no Conselho de Segurança da ONU e, portanto, são vinculantes - ficam inviabilizados. Os Estados Unidos afirmaram ainda que não haverá soberania plena palestina e que Jerusalém é capital de Israel na sua integralidade. Isso significa dizer que os Estados Unidos tomam uma posição unilateral de liquidação da questão palestina e da possibilidade de um Estado palestino, sem a resolução dos temas centrais de acordo com as resoluções da ONU e do direito internacional. Tudo isso combinado, obviamente, combinado com a extrema-direita israelense que está no poder há muito tempo.

Os Estados Unidos pressionam outros países para que acompanhem essa política. Na nossa opinião, o Brasil está cometendo um equívoco político, diplomático, humanitário e econômico, traindo seus próprios interesses, ao se aliar aos Estados Unidos nesta questão. Esse contexto interno é inédito. Desde a resolução 181 da Assembleia Geral da ONU, que recomendou a partilha da Palestina, o Brasil manteve-se apoiando a ideia de criação de um Estado da Palestina soberano, independente, seguro e contíguo. Essa tradição pautou a conduta do Brasil de estabelecer relações de amizade com os dois povos, uma condição que permitiria (e sempre defendemos isso) ao país atuar como eventual mediador e contribuinte para a paz.

Neste momento, a se afirmar esse caminho da política externa estadunidense adotada pelo Trump e o alinhamento do Brasil, isso significará o abandono dessa percepção para adotar uma conduta muito ruim que é a de ser amigo de um lado, acriticamente, e inimigo do outro povo. O Brasil nunca adotou essa postura. Nós continuamos defendendo que o Brasil deve ser amigo de todos os povos, especialmente quando há conflito entre um e outro, adotando uma postura de equilíbrio e de resolução desse conflito pelo diálogo e pela implementação das resoluções da ONU e obediência ao direito internacional. Isso faz justiça para os palestinos e faz justiça para os israelenses. O país só tem a ganhar com isso, diplomática, política, econômica e moralmente. Seguir a legalidade e a justiça significa também um ganho moral. Em resumo, o Brasil só tem a ganhar mantendo a sua tradição diplomática e só tem a perder, desalinhando-se dela.

Sul21E já há alguns sinais claros, especialmente no campo da economia, de quanto diversos setores produtivos do Brasil podem perder com esse alinhamento unilateral com os Estados Unidos e Israel...

Ualid Rabah: Sim. Perdas do que já está conquistado e do que poderia ser conquistado. O patamar que o Brasil ocupa hoje na cena internacional ainda é pequeno. O Brasil é um dos poucos países que têm um grande potencial de crescimento, muito mal explorado ainda. Outros países, como Inglaterra e França, por exemplo, já esgotaram a sua possibilidade de crescer no mundo. Tanto é que, desde que seus impérios coloniais deixaram de existir, eles só decresceram. Os próprios Estados Unidos perdem capacidade. Eles terminaram a Segunda Guerra Mundial donos de mais da metade do PIB mundial e de cerca de três quartos de todas as transações comerciais do mundo. Hoje, isso tudo é menos da metade do que era.

O Brasil é um país gigantesco, uma potência populacional, territorial, hídrica, florestal e alimentar. Também já provou que pode ser uma potência diplomática, quando teve política externa proativa, uma potência política e uma potência democrática. E é também uma potência militar, energética e nuclear. A potência nuclear do Brasil no mundo, por exemplo, está adequadamente explorada para fornecer urânio enriquecido a 20%, o que pode fazer pelas reservas e pelo parque industrial que possui?

Só o mercado árabe tem uma população de quase 400 milhões de habitantes. Considerando o mercado muçulmano no mundo, estamos falando de algo em torno de um bilhão e meio de habitantes. Abrir mão disso a troco de quê? Para manter comércio com Israel, com quem o Brasil tem uma balança comercial deficitária, e que jamais vai se expandir? E não há como desequilibrar essa balança a favor do Brasil no comércio com Israel, por uma razão muito simples: o Brasil não exporta produtos com forte valor tecnológico agregado. Pelo contrário, importa. Inclusive equipamentos caros, que poderiam ser produzidos aqui. Há vários mitos a respeito como é o caso de dessalinização. O Brasil tem alguns dos processos mais modernos e baratos de dessalinização do mundo, não precisando importar isso de outros países.

Então, ao fazer esse alinhamento com Estados Unidos e Israel, o Brasil está fazendo uma aposta contra todos os seus interesses, onde só tem a ganhar, escolhendo um caminho onde só tem a perder. Além disso, descumpre a legislação internacional e resoluções da ONU, partindo para uma atitude que jamais tomou e que somente estados que cometem ilegalidades, correndo o risco de virar párias, adotam. E do ponto de vista moral, estamos falando de apoiar violações de direitos humanos, limpeza étnica e práticas de apartheid pelas quais Israel está sendo denunciado internacionalmente. Isso tudo é muito ruim para o Brasil, que não tem nada a ganhar seguindo esse caminho.

Eu sou brasileiro, sou nascido aqui no Brasil, como a quase totalidade da comunidade palestina no país. Somos brasileiros de origem palestina e defendemos os interesses do Brasil, sob uma ótica que nos faz vinculados à questão palestina. Nós estamos a favor do Brasil. A nossa defesa em favor de um equilíbrio no tratamento da questão palestina é uma visão brasileira também. Queremos que o Brasil continue ganhando bilhões de dólares, mantendo um superávit na balança comercial que pode ser ainda maior se o país adotar uma política externa assertiva e equilibrada.

Sul21Há algum nível de negociação hoje entre israelenses e palestinos ou elas estão completamente congeladas?

Ualid Rabah: Está no seu mais baixo nível nas últimas duas décadas, pelo menos, por responsabilidade unilateral de Israel que abandonou todas as mesas de negociação possíveis e passou a descumprir inclusive o pouco que havia acordado, desconfigurando a possibilidade da solução baseada na ideia dos dois estados. Mais do que isso, está deixando de reconhecer diversas resoluções internacionais e direitos do povo palestino, não admitindo assim qualquer solução para a questão palestina. Essa é a situação atual. Além disso, Israel permanece com uma postura expansionista, como é o caso do anúncio da anexação das colinas de Golan. Isso significa que estamos lidando com um Estado, apoiado pelos Estados Unidos, que acredita que é possível, lícito e moral adquirir territórios pela força e pela guerra.

Ao assumir tal postura, Israel continua sendo um elemento de desestabilização regional e de insegurança para os povos da região, capaz de reproduzir o que já promoveu na Palestina em outras regiões: conquista pela guerra, com limpeza étnica. Não devemos descartar essa hipótese, já que é isso que Israel anuncia quando anexa as colinas de Golan e diz que vai anexar outros territórios palestinos, já sob ocupação ilegal por colonatos ilegais de extremistas recém chegados especialmente da Europa. Estamos falando de uma política que pode levar a situações - e já temos sinais disso - envolvendo judeus extremistas armados promovendo verdadeiros "progroms" (perseguição deliberada de um grupo étnico ou religioso, com ataques violentos e destruição do seu ambiente de vida) contra populações palestinas camponesas desarmadas.

 

Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter

Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey