De amigos e inimigos dos EUA

De amigos e inimigos dos EUA

No mundo do ca­pital, do­mi­nado pelo im­pério es­ta­du­ni­dense, as no­tí­cias que passam nos jor­nais de TV ou que saem nos im­pressos são apenas aquelas que in­te­ressam ao poder. Vejam o caso do po­li­cial Óscar Pérez, aba­tido em com­bate com as forças ve­ne­zu­e­lanas.


Iêmen: mais de 400 mil cri­anças em avan­çada des­nu­trição

No mundo do ca­pital, do­mi­nado pelo im­pério es­ta­du­ni­dense, as no­tí­cias que passam nos jor­nais de TV ou que saem nos im­pressos são apenas aquelas que in­te­ressam ao poder. Vejam o caso do po­li­cial Óscar Pérez, aba­tido em com­bate com as forças ve­ne­zu­e­lanas. Du­rante as gua­rimbas (pro­testos vi­o­lentos pro­mo­vidos pela opo­sição ve­ne­zu­e­lana, que dei­xaram mais de 100 mortos), ele se amo­tinou e roubou um he­li­cóp­tero da força po­li­cial onde atuava, jo­gando gra­nadas no prédio do Tri­bunal Su­pe­rior de Jus­tiça. Por pura sorte não causou ví­timas fa­tais.

Por Elaine Tavares, no Correio da Cidadania

Gravou ví­deos contra o go­verno e atuava como uma es­pécie de "rambo", re­a­li­zando ações ou­sadas e cha­mando o povo para se re­belar. Não con­se­guiu mais do que um pe­queno grupo que o acom­pa­nhava. Por sua ação cri­mi­nosa de bom­bar­deio do TSJ foi dado como fo­ra­gido e es­tava sendo pro­cu­rado pela po­lícia. Ele se­guia ame­a­çando o go­verno, pro­me­tendo novas ações vi­o­lentas. Morreu num en­fren­ta­mento com a po­lícia, a qual foi re­ce­bida à bala. Dois ou­tros po­li­ciais mor­reram também no mesmo epi­sódio que cul­minou com a morte de Pérez.
  
Na mídia mun­dial a in­for­mação que cir­cula é de que Pérez foi as­sas­si­nado fri­a­mente. Há até quem fale em um mas­sacre, de mu­lheres e cri­anças. As men­tiras se avo­lumam e se pro­pagam sem parar. Cada um au­menta um ponto. Poucos falam da ação cri­mi­nosa de Pérez ou de suas cons­tantes ame­aças, in­clu­sive de matar o pre­si­dente. A Ve­ne­zuela é um país que vive uma dura luta de classes desde que Hugo Chávez se elegeu em 1998, com um grupo opo­sitor - a velha elite - vi­o­lento e capaz de tudo para re­tomar o con­trole do país.

Jus­ta­mente com esse ob­je­tivo, esse pe­queno, mas po­de­roso grupo, tem apli­cado um guerra econô­mica, es­con­dendo pro­dutos, le­vando a fome para o povo ve­ne­zu­e­lano, ten­tando de­ses­ta­bi­lizar o go­verno ata­cando a po­pu­lação. Foi assim com as gua­rimbas, que le­varam a morte a mais de 100 fa­mí­lias. Ainda assim, a mídia con­si­dera que a culpa de tudo o que acon­tece é do go­verno. Claro, o go­verno de Ma­duro é ini­migo dos Es­tados Unidos. Por­tanto, contra ele vale tudo. 

Já os amigos dos Es­tados Unidos podem co­meter todas as atro­ci­dades que isso não apa­rece em des­taque em ne­nhum jornal. Is­rael contra a Pa­les­tina é um exemplo bem an­tigo. O Es­tado si­o­nista, que é amigo dos EUA, in­vade ter­ri­tó­rios, ex­pulsa fa­mí­lias, prende cri­anças, mata gente a granel e ainda apa­rece como ví­tima nas pá­ginas dos jor­nais e nas telas da TV. 

E agora, vejam o caso do Iêmen, um pe­queno e em­po­bre­cido país do Ori­ente Médio, onde um grupo re­belde luta para ga­rantir a li­ber­dade do país que é do­mi­nando por grupos ali­ados da Arábia Sau­dita, amiga dos Es­tados Unidos. Lá, também há um blo­queio de pro­dutos contra a po­pu­lação, que tem le­vado fome a mi­lhões de pes­soas. Quem fala disso? Se­gundo in­for­ma­ções di­vul­gadas ti­mi­da­mente pela BBC de Lon­dres, es­tima-se que mais de 20 mi­lhões de pes­soas es­tejam im­pe­didas pelas forças go­ver­na­men­tais de re­ceber ajuda que chega de ou­tras partes do mundo. 

O con­flito no Iêmen é tra­tado pela mídia como um caso de guerra civil, in­terna, que teve seu início na cha­mada Pri­ma­vera Árabe, quando o pre­si­dente que go­ver­nava havia 33 anos foi de­posto. De­pois, o seu subs­ti­tuto foi se ali­ando aos in­te­resses da Arábia Sau­dita e foi con­si­de­rado traidor. Isso mo­tivou o se­gui­mento da re­be­lião. Mas, em um de­ter­mi­nado ponto do con­flito, co­me­çaram a surgir in­for­ma­ções de que os re­beldes es­tavam sendo fi­nan­ci­ados pelo Irã, que é ini­migo dos EUA. 

Por­tanto, para com­bater o "eixo do mal", a Arábia Sau­dita, que é amiga dos EUA, pro­vi­den­ciou "ajuda" ao go­verno. Assim, os re­beldes que lutam pela for­mação da Re­pú­blica Po­pular do Iêmen são de­mo­ni­zados, en­quanto as forças go­ver­na­men­tais, ali­adas dos sau­ditas, amigos dos EUA, são mos­tradas como as forças do "bem". A re­gião tem suas com­ple­xi­dades, e nada é assim tão sim­ples. 

Mas é assim que a coisa é tra­tada. Na ver­dade, a des­truição cau­sada pela guerra e a in­ter­fe­rência ex­terna nos con­flitos in­ternos entre grupos, além de trazer pro­fundo so­fri­mento ao povo, ajuda a criar um novo caldo de fun­da­men­ta­lismo, com a ação de grupos ex­tre­mistas di­versos, al­guns cri­mi­nosos, que crescem em meio ao caos, pro­vo­cando mais des­truição e morte. 

Por conta dessa guerra, em dois anos já mor­reram mais de 10 mil pes­soas, sendo que cinco mil eram cri­anças, con­forme dados da Or­ga­ni­zação das Na­ções Unidas. Ou seja, me­tade das ví­timas são cri­anças. E onde está essa in­for­mação? Porque nin­guém se im­porta com essas cri­anças? A res­posta é sim­ples. Elas fazem parte de um povo que é ini­migo dos EUA. 

Da mesma forma que a Ve­ne­zuela sofre com a falta de co­mida por conta de um blo­queio im­posto pelos EUA, o Iêmen também sofre. Mas, não im­porta. Para a mídia, se são ini­migos dos EUA, são todos ban­didos e devem morrer. A Unicef di­vulgou na úl­tima se­mana que mais de 400 mil cri­anças estão em pro­cesso grave de des­nu­trição no Iêmen, por conta do blo­queio. Mas, para a mídia co­mer­cial, não im­porta. São árabes "do mal", logo, se mor­rerem, me­lhor. 

Cuba já viveu todo esse terror e sabe muito bem o que sig­ni­fica viver em per­ma­nente blo­queio co­mer­cial. Du­rante o cha­mado "pe­ríodo es­pe­cial", quando a União So­vié­tica acabou, e era o único bloco que vendia pro­dutos a Cuba, a pe­quena ilha viveu duros tempos, de muita fome e so­fri­mentos in­di­zí­veis. Mas, as gentes so­bre­vi­veram, sabe-se lá como. E se­guem en­fren­tando um blo­queio cri­mi­noso. E a cada baque que sofre o povo, re­go­zija-se a mídia co­mer­cial in­ter­na­ci­onal, sau­dando o fim do re­gime so­ci­a­lista. Não im­porta se morrem as gentes, se há fome, se há dor.  

Da mesma forma a Ve­ne­zuela, que hoje está en­fren­tando essa ter­rível tor­tura im­posta pelos EUA que é a de matar pela fome. E quando se de­fende, vê-se re­tra­tada como uma di­ta­dura.  

O Iêmen, lá longe, per­dido entre os mi­li­o­ná­rios do pe­tróleo que querem seu ter­ri­tório para ga­rantir a pas­sagem dos na­vios pe­tro­leiros pelo es­treito de Bab-el-Mandeb, li­gando o ori­ente com a África, está sendo ata­cado por uma di­ta­dura, a da Arábia Sau­dita. Mas, essa não é cha­mada de di­ta­dura. Porque é apoiada pelos EUA. E aqueles ho­mens, mu­lheres e cri­anças que se re­belam, são con­si­de­rados ini­migos do ca­pital, ini­migos dos EUA. 

Por­tanto, nada se no­ticia sobre eles. Nada se diz de sua com­plexa e dura re­a­li­dade. E en­quanto se formam cor­rentes de dor e pesar pela morte do sol­dado ve­ne­zu­e­lano que caiu em com­bate, lu­tando para der­rubar um go­verno eleito de­mo­cra­ti­ca­mente pela mai­oria da po­pu­lação, ne­nhuma lá­grima cai pelas 400 mil cri­anças que morrem len­ta­mente, de fome, no Iêmen.

São os dois pesos, duas me­didas de um mundo vi­o­lento, no qual os in­te­resses fi­nan­ceiros de um pe­queno grupo se so­bre­põem aos de­sejos de li­ber­dade e de vida bo­nita de uma mai­oria que é avas­sa­la­dora, mas ainda sem poder. É a ex­pressão con­creta da luta de classes. Co­nhecer a re­a­li­dade, por­tanto, é fun­da­mental, para que cada um possa saber onde se po­si­ci­onar.

Elaine Ta­vares é jor­na­lista e co­la­bo­ra­dora do Ins­ti­tuto de Es­tudos La­tino-Ame­ri­canos da UFSC.

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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