Análise: Geopolítica Soviética frente aos EUA, e Desafios da Rússia Hoje

Análise: Geopolítica Soviética frente aos EUA, e Desafios da Rússia Hoje

Há 100 anos da Revolução Russa de outubro de 1917 que influencia o mundo até hoje, Vítor Schincariol, historiador da Universidade Federal do ABC (UFABC-SP), analisa na entrevista a seguir a Guerra Fria sob a perspectiva soviética, e as tensas relações entre Federação Russa e EUA. atualmente.

Edu Montesanti: Em 1947, o presidente norte-americano Harry Truman reconheceu oficialmente , em discurso no Congresso de seu país, que os Estados Unidos travavam luta global contra o comunismo, afirmando uma "politica de contenção": até que ponto a retórica norte-americana de dominio soviético, uma "conpsiração totalitaria" mundial que ameaçava o mundo "livre e democrático" procedia, e o quanto foi produtiva a resposta soviética no sentido de se preservar do ponto de vista político e econômico?

Vítor Schincariol: A retórica 'anti-totalitária' estadunidense não procedia. Os Estados Unidos, depois de 1945, aplicaram uma política implacável contra direitos civis, sociais e democráticos na periferia do mundo capitalista, e inclusive no centro, como mostra a campanha que a CIA organizou contra o Partido Comunista Italiano. 

Os EUA promoveram invasões militares e golpes de Estado para derrubar governos comprometidos com reformas sociais e econômicas, como mostra toda a história da América Latina. Sua política na Coreia e no Vietnã só pode ser descrita como genocida; seu embargo contra a Cuba socialista, totalmente ilegítimo, também mostra o enviesamento dos governos dos EUA no sentido de promover o que havia de pior nas periferias do sistema capitalista, inviabilizando suas políticas sociais, econômicas e industrializantes, no sentido de manutenção da dependência dessas áreas. 

Deve-se mencionar também que até os anos 1960, os negros não votavam em vários estados sulinos nos próprios EUA. Alguns, como Nelson Werneck Sodré, argumentam inclusive que o assassinato de Kennedy pela extrema-direita teve como motivo a promulgação, por este presidente, dos direitos civis da população negra.

A URSS, seguindo a linha de Stálin e depois Kruschev, adotou uma política exterior de cautela, depois de 1945, face aos EUA. Evitou o confronto direto, não estimulou as revoluções na área ocidental. Isto devido à disparidade do poder militar e econômico com o Ocidente, respeitando-se os tratados de Yalta por mera impossibilidade de levar à frente novos confrontos. 

Esta condição invalida a hipótese 'trotskista' de 'revolução traída'. A URSS, por exemplo, não apoiou diretamente a revolução cubana, buscando direcionar os eventos apenas em sua área de influência. Esta área de influência foi forçada a adotar a linha leninista de Moscou, de um partido único no poder, e assim não podia ser definida como 'democrática', mas isto na verdade não importava para as elites soviéticas. O que elas buscaram era evitar um novo confronto direto, uma nova guerra, a Terceira Guerra que, certamente, levaria ao caos.

Por outro lado, a URSS apoiou os vários movimentos de libertação nacional na África e na Ásia, mas de forma a evitar que estes conflitos se transformassem em conflitos entre as forças do pacto de Varsóvia e a OTAN. Neste sentido, houve certo esforço em evitar uma guerra direta, conjugado com meios preventivos, como o desenvolvimento de armas nucleares e intensa militarização. Isto foi conjugado com a manutenção do sistema de partido único, e de socialização dos meios de produção. 

Neste sentido, a URSS não fez muito para agradar o Ocidente - o que seria absurdo em sua visão -, mas buscou, sim, evitar um confronto direto e preparar-se para uma guerra que entendiam que seria provocada pelos EUA, por motivos econômicos: utilizar seus estoques de recursos militares inativos.


Qual a influência das bombas atômicas lançadas por Truman sobre Hiroshima e Nagasaki, sobre a estratégia soviética internacional?

Houve uma percepção de que a bomba representava vantagem estratégica qualitativa para o imperialismo. Houve, então, mobilização intensa a fim de se buscar a tecnologia da bomba, ligada a uma pressão política sobre aqueles que se julgava estar cooperando com o imperialismo. 

Isto, como se sabe, levou aos excessos e tremendas injustiças que sabemos quais foram, explicando parte da paranoia que, assim, tinha razões muito concretas para existir. Porém, de 1945 a meados de 1950, a URSS e o bloco socialista estavam enfraquecidos demais para colocar a questão de um enfrentamento direto. A ideia de uma Guerra Fria é totalmente ocidental, cinicamente buscando acirrar um conflito do mais poderoso, os EUA, contra aqueles que buscavam apenas a reconstrução. 

Stálin, como dito, agiu com cautela, inclusive sacrificando eventuais revoluções no Ocidente para manter um mínimo de entendimento com os ocidentais nos anos que sucederam o pós-Guerra. Era dar um passo para trás a fim de assegurar o que a URSS havia conquistado a duras penas, com seus milhões de mortos e feridos, e destruição física. 

Geopoliticamente, porém, esta discrepância não mudou por tantos anos a geopolítica soviética, pois em 1952 sua própria bomba foi criada com sucesso. Isto representou uma enorme frustração nos meios políticos e militares ocidentais, dada a extensão das forças soviéticas e a proximidade com aliados ocidentais. 

A geopolítica soviética, e mundial, tornou-se assim, ironicamente, mais segura com a equiparação do poder nuclear, que assegurava uma destruição mútua de todos ao frear parcialmente os impulsos militaristas, além de forçar as potências ocidentais a transferir o conflito militar e o uso de seus estoques de guerra para a periferia: Coreia, Vietnã etc.


O que significou o Pacto de Varsóvia, e a própria criação e atuação da OTAN para a União Soviética como um todo?

A OTAN pode ser entendida como um novo arranjo militar dos países imperialistas do Ocidente, liderados pelos EUA, ordenando os países capitalistas agora satélites dos EUA em nível europeu, depois de 1945. 

Seu objetivo foi unificar forças, afastando a possibilidade de um novo conflito intraeuropeu, e ao mesmo tempo unificar forças diante de um bloco socialista em crescimento, inclusive na periferia do sistema, como África e Ásia. Foi uma força de reorganização militar, de pressão sobre o socialismo e eventualmente de aplicação literal de força bruta nos interesses do imperialismo norte-americano e em menor escala europeu, nas periferias. 

O Pacto de Varsóvia pode ser entendido similarmente como uma organização similar, mas num ambiente não capitalista, não imperialista, e dotada de força e coesão muito menores, com sentido defensivo, prioritariamente. 

Porém, uma diferença importante é o fato de que a coesão entre o bloco socialista era muito menor, com a URSS sendo obrigada a intervir militarmente na Hungria em 1956 e Tchecoslováquia em 1968, para conter movimentos reformistas ou contra-revolucionários que puseram em jogo o funcionamento do socialismo, tal como este era entendido.


A Europa, nos primeiros anos subsequentes à Segunda Guerra Mundial, esteve a um passo de se torrar comunista: o que impediu aquele processo?

O que impediu aquele processo foi um misto da: 

(1) Postura dos EUA, que mesclou ajuda econômica conjugada com uma intensa pressão nos níveis diplomáticos, políticos, militares e de 'micro-política', praticando inclusive o terrorismo para aplacar a força dos partidos comunistas, como na Itália e Grécia;

(2) Por outro lado, também do respeito de Stálin e depois de Kruschev aos acordos do pós-guerra, que delimitavam claramente a zona de influência soviética. Este acordo não tinha um sentido de 'traição', como na mística errada da visão da IV Internacional de Trotsky, mas sim o reconhecimento do fato da impossibilidade material de um novo enfrentamento com o Ocidente, caso a URSS apoiasse novas revoluções. 

A URSS perderia tal disputa, dadas as perdas humanas, 20 milhões de pessoas, decorrentes da Segunda Guerra. Stalin podia ter muitos defeitos, mas a nível diplomático era um ator prudente e mesmo inteligente, e não estava disposto a uma política 'ultra-esquerdista' à laZinoviev, de 'aventuras' no Ocidente em condições de disparidade tão grande com os EUA. 

A URSS buscava, simplesmente, sobreviver. Mesmo porque a conversão da Europa Oriental já tinha representado uma enorme vitória estratégica para o socialismo soviético. Inclusive a URSS já estava tendo muito trabalho para converter a Europa Oriental ao socialismo, lidando com disputas internas e resistências dos recalcitrantes.


A estratégia soviética de subordinar a Moscou os partidos comunistas internacionais, atrasou o processo revolucionário mundial?

Não diria que a URSS atuou para atrasar deliberadamente a 'revolução mundial'. As pessoas e em especial os trotskistas tendem a achar que a URSS, por ter vencido a guerra, era capaz de tudo, e não o fez porque Stálin e a suposta 'burocracia' teriam 'traído' a revolução. Mas a destruição da Segunda Guerra foi enorme, e levou muitos anos para ser diluída. 

Não era possível exportar revolução nenhuma com facilidade sem recursos, e a OTAN dispunha de muito mais recursos para enfrentamento militar e propaganda, pois os EUA passaram praticamente ilesos pela guerra. Mesmo assim, a URSS auxiliou os processos de independência de vários países africanos e asiáticos, e de Cuba, com recursos materiais, armas e dinheiro. O Vietnã é um dos melhores exemplos. 

Assim, não se pode atribuir à URSS um papel contra-revolucionário nas condições dadas dos pós-1945, até os anos 1970, pois a descolonização foi um processo revolucionário; nominalmente a URSS estava comprometida com a descolonização, e ajudou as forças locais. 

A URSS se moveu dentro dos limites dos acordos do pós-guerra, e dentro dos limites das disparidades com os EUA particularmente na Europa Ocidental. É verdade que a seguda geração que viveu depois da revolução de 1917 não tinha interesses tão revolucionários - se é que os tinha - e isso poderia ser discutido, sob este ponto de vista generacional. 

Mas fazer um julgamento de uma suposta posição 'anti-revolucionária' da URSS em termos abstratos e essencialistas, é totalmente anti-histórico, e assim errôneo. Tal ignora as dificuldades práticas de organizar revoluções no exterior quando não há movimentos revolucionários locais, em condições da reconstrução do pós-guerra e de enormes disparidades militares com o Ocidente. 

A tese de uma URSS contra-revolucionária cabe bem no misticismo dos movimentos trotskistas e de acadêmicos com pouco conhecimento de como funciona o mundo da política de fato, mas não pode ser assumido de forma simples pelos historiadores.


Dizia-se muito que a economia soviética era mais concentrada sobre a produção de armas e tecnologia militar que a norte-americana, enquanto era exatamente o inverso, não? Tal mito não teria sido criado pelo fato de a economia soviética ser mais lenta em aplicar os ganhos nestas áreas à sociedade civil, exatamente pela burocracia moscovita?

Isto não era um mito. A economia soviética gastava em termos relativos mais em saúde e educação pública que os EUA, ainda que isto fosse difícil de auferir em termos de um padrão unificado de contabilidade nacional. Mas ao mesmo tempo, para manter certa paridade militar com os EUA, os soviéticos mantinham mais investimentos em termos relativos do PIB na área militar que os EUA, ainda que a diferença absoluta fosse ainda 'favorável' aos EUA. 

A deficiência principal da economia planificada era a ausência da concorrência nos setores, especialmente de bens de consumo, com impactos negativos sobre produtividade e concorrência. Isto foi muito discutido pelos economistas socialistas tais como Kantorovich [Leonid Vitaliyevich Kantorovich] e Lange [Oskar Ryszard Lange], e algumas medidas foram introduzidas mas, de forma geral, sem grande sucesso. 

A ausência da concorrência e de uma pressão de mercado por melhorias de qualidade, conjugada com uma falta de liberdades econômicas no nível microeconômico foram as responsáveis por uma disparidade tecnológica crescente. Isto se intensificou depois da crise do petróleo em 1973 quando a URSS passou a exportar ainda mais petróleo, enquanto o Ocidente esforçou-se por substituí-lo levando à chamada Terceira Revolução Industrial, e a um aumento da disparidade tecnológica. 

De forma geral, a resistência soviética em conceder que um socialismo de mercado era viável e podia ser politicamente mantido sob controle, ocasionou tais deficiências.


Falando em mitos, qual sua avaliação do quanto os soviéticos foram capazes de superar a forte propaganda midiática ocidental, fomentada pela norte-americana? Em cima disso, poderia ainda fazer uma síntese da mídia soviética, particularmente?

A mídia soviética em essência era controlada pelo Estado, sob censura. Ela não podia veicular 'livremente' informações que politicamente fossem consideradas inoportunas em termos políticos. As autoridades julgavam ser de direito fazer propaganda anti-ocidental e passar suas versões dos fatos, da mesma forma como ocorria no ocidente. 

Porém, os EUA esforçaram-se por fazer penetrar na zona soviética suas estações de rádio anti-soviéticas, e depois seus sinais de satélites de TV, o que furava em parte o bloqueio interno e escancarava disparidades entre os dois estilos de vida, socialista e ocidentais, crescentes no início dos anos 1980. 

Em todo caso, a mídia nos EUA era só formalmente livre, com os meios de comunicação de forma geral seguindo uma linha unificada pró-ocidente e pró-capital, controlada pelos oligopólios e sob influência dos órgãos de governo. 

No caso europeu, sob influência da social-democracia, isto foi em parte matizado com o controle parcial dos governos social-democratas sobre os canais de TV.


Retornando ao tema militar, como o senhor avalia a corrida armamentista sob a perspectiva soviética e o quanto isso influenciou, negativa e positivamente, a União Soviética como um todo?

Positivamente, vivemos ainda sob as consequências de uma URSS que construiu bombas atômicas e técnica para levá-las a qualquer canto do mundo. Isso evitou que o 'complexo industrial-militar' dos EUA permanecesse sem freio nenhum, e garantiu a viabilidade territorial da URSS e depois da China. Quer dizer, eliminou um enfrentamento direto entre as potências. 

Negativamente, foi sempre muito custoso manter uma corrida militar, em termos de consumo e bem-estar. Ao mesmo tempo, vivemos até hoje sob a sombra de que tais armas venham a ser utilizadas. Assim, é difícil traçar um panorama absoluto sobre a história, vendo nela apenas o bom ou o ruim.

Particularmente, nenhum de nós gostaria de viver num mundo sob a ameaça de guerra nuclear como o presidente dos EUA está talvez buscando hoje, em sua patologia racista e imperialista. Porém, nenhum de nós gostaria de viver num mundo em que só um punhado de potências ocidentais tivesse a bomba. Isto é o cúmulo da hipocrisia. 

Assim, é legítimo que cada nação que tem um projeto nacional a tenha e a saiba levar para longe, para efeitos de proteção de seus recursos, de segurança doméstica e de distensão. Infelizmente, no Brasil apontaram como inimigos do país aqueles que buscavam dar ao País um pouco mais de autonomia e soberania, vendo o imperialismo como algo natural e bom. Desta maneira, judicialmente romperam as poucas empresas nacionais poderosas e o projeto do submarino nuclear, em nome do combate à 'corrupção'.


Os Estados Unidos incorporavam rapidamente os benefícios da indústria armamentista no setor civil, ao contrário da URSS. Quais os empecilhos no sistema soviético que a impediam de traduzir em ganhos econômicos a indústria bélica? Burocracia foi único fator? E o quanto ela realmente pesou neste sentido? Quais foram os grandes entraves para que a URSS, que se industrializou de maneira meteórica pós-Revolução de 1917, traduzisse essas conquistas em melhora significativa da sociedade?

Como mencionei, a expressão 'burocracia' tornou-se uma expressão vazia, que busca explicar tudo e que assim perde poder heurístico. Como mencionei anteriormente, tais dificuldades de difundir na indústria civil as técnicas militares vêm da própria obviedade de que, se você quer desenvolver a indústria civil, é melhor invistar nela e não esperar que algo de outro lugar seja a ela adaptado depois. 

A questão da baixa incorporação da tecnologia civil vem parcialmente do sistema de planificação central, que no caso soviético conferiu pouco espaço ao 'mercado' privado, à concorrência mínima, e à autonomia das firmas. Os soviéticos foram os pioneiros e sua economia cresceu muito em termos extensivos com este modelo, e isto explica sua resistência à introdução de reformas parciais do sistema, como a Iugoslávia ou a Hungria estavam buscando com certo sucesso, já que não tinham 'compromisso histórico' com este modelo pioneiro. Há uma abundante literatura sobre isto no Leste europeu e na Rússia, a começar com o brilhante economista soviético Kantorovich. 

Em segundo lugar, é necessário entender que se você está levantando seu país da guerra, não tem tempo nem recursos, nem mesmo disposição para intensificar melhorias técnicas que o rico Ocidente estava, em condições muito mais vantajosas, desenvolvendo. Isto não seria um problema tão grande se a questão do socialismo não estivesse, a todo tempo, colocando a questão da competição e se, absurdamente, as autoridades não estivessem mesmo dizendo que o socialismo iria ganhar, como Kruschev. 

Ainda, o monopólio político dos Partidos Comunistas levava a uma dificuldade óbvia no sentido da difusão de informações e melhoriais. Sabe-se, por exemplo, que não se podia portar um mimeógrafo sem autorização oficial na URSS. Veja, estas proibições não eram necessariamente um sintoma de obscurantismo, mas tinham razões históricas poderosas para existir: a enorme resistência que a burguesia interna e o imperialismo puseram à revolução, que por muitos anos permaneceu frágil diante da disputa e da resistência dos dissidentes. A censura foi um resultado prático lógico deste estado de coisas. Mas teve um impacto na economia, do ponto de vista do fluxo de informações.

Em tese, não haveria nenhum problema intrínseco a uma economia socialista autônoma que aplicasse as técnicas atualmente existentes e as combinasse com um planejamento que concedesse uma autonomia mínima às firmas, ao lado de um poderoso Estado de bem-estar, tipo iugoslavo, sem buscar ultrapassar quem não pode ser ultrapassado, porque chegou antes na Revolução Industrial. 

O problema é assumir que a economia socialista tem que crescer e dar mais lucro que a dos Estados Unidos. A chinesa o faz, mas não é mais socialista. A economia socialista, isto é, de propriedade coletiva dos meios de produção principais, não o fará, porque as prioridades de uma economia socialista são eliminar o desemprego e a fome, e universalizar serviços públicos, e isto consome recursos que as capitalistas avançadas têm, inclusive sendo aplicados amiúde independentemente de suas consequências sociais. 

Assim, estou convicto de que qualquer projeto socialista digno deste nome no futuro não pode assumir uma concorrência com o capital global; deve isolar-se dele, autonomizar-se, e introjetar as técnicas vindas de fora com muita autonomia e cautela, buscando melhorar os níveis de vida mas no sentido da pobreza com dignidade, para também não se deparar com a catástrofe ambiental. 

A literatura sobre um socialismo de mercado deve ser revisitada, porque contém muitas intuições interessantes que sequer chegaram a ser implementadas. O difícil balanço entre um sistema de regulação social e planificado, com certa autonomia das firmas que deve haver, em algum grau maior do que o soviético, e a independência nacional, ainda é o projeto do socialismo futuro. 

Neste sentido, note-se como o problema da universalização da técnica pode tornar-se secundário, ainda que não devesse ser ignorado. A falha soviética era justamente competir com o capitalismo sem ter as condições para tal; isto é, estar destituída de condições políticas e econômicas para massificar tecnologias crescentemente melhores a todas as firmas, e massificar a tecnologia a qualquer custo social. 

A conclusão é que o socialismo futuro seria, assim, eminentemente um projeto nacional, interno, que menospreza a competição com o exterior, e reconhece dignamente seu atraso histórico em termos de história econômica, valorizando inclusive uma volta ao campo. Deveria ser assim um projeto menos cosmopolita, menos confiante na industrialização, mais sóbrio e ecologicamente ordenado, cauteloso com o uso da tecnologia e dos recursos limitados. 

Nestes sentidos todos a experiência soviética tem lições a dar, em termos positivos e negativos.


Quais os méritos e fracassos de Krushcev na Crise dos Mísseis que evitou uma catástrofe mas, por outro lado, desagradou Havana ao menos parcialmente?

Kruschev teve o mérito de evitar que os EUA voltassem a invadir Cuba. Isto é, teve o mérito de jogar com o peso das armas militares soviéticas, para evitar um novo ataque dos EUA sobre a ilha. De quebra, barganhou a retirada de armas estratégicas dos EUA da Turquia. 

Porém, aos olhos de Fidel Castro, Kruschev atuou sem consultar as autoridades cubanas, ficando elas enfurecidas com sua decisão de retirar os mísseis de Cuba. Kruschev argumentava que sua posição, porém, evitara uma nova guerra e uma nova invasão de Cuba. Isto provocou certo atrito entre cubanos e russos, mas a história parece ter mostrado que a posição soviética foi a mais correta e prudente. 

Não creio que ele tenha sido irresponsável, mas sim audacioso, mostrando determinação da URSS em proteger uma revolução que ela sequer tinha se esforçado para que ocorresse, ao mesmo tempo em que reconhecia que escalar o conflito significava uma guerra nuclear. 

Kruschev andou na corda bamba, mas soube equilibrar-se, arrancando dos EUA um compromisso de deixar os cubanos, ao menos formalmente, em paz ainda que sob o bloqueio, agora intensificado.


Até que ponto Guerra Fria estrangulou economia soviética?

A Guerra Fria foi ruim para a URSS, devido à disparidade acima mencionada. Equiparar-se aos EUA era gastar mais em recursos militares em termos relativos; o impacto sobre o consumo era enorme. 

Em meados dos anos 1980, mais de metade dos investimentos em máquinas soviéticas era destinada ao complexo industrial-militar. Há uma grande dose de verdade nisto, ainda que os problemas da economia soviética não se referissem, como eu já disse, somente a este aspecto.


Quais os prós e os contra da Perestroika?

A política de Ronald Reagan acelerou a crise soviética, como Gorbachev sabia; por isso ela buscou tanto a paz, atuando para, por exemplo, finalizar a guerra no Afeganistão. O erro de Gorbachev foi atacar a ideologia oficial do sistema, e conceder muita liberdade de forma rápida, o que minou seus planos de reforma social-democrata, dando espaço à volta da burguesia e dos nacionalismos. 

Perestroika liberou muito rapidamente as liberdades econômicas, junto da liberação política da Glasnost. Gorbachev frustrou-se inicialmente com a lentidão das reformas que queria aplicar para dinamizar a economia e a sociedade, mas, diante destra frustração, passou a adotar uma postura cada vez mais liberal, ao invés de retroceder e defender parcialmente o sistema. Quando sua posição, que era a mais importante entre todos os cargos, foi sentida como uma sinalização positiva ao capitalismo em si, ela capitalizou todas as forças internas que queriam a volta do capitalismo, com enorme ajuda da CIA e outros aparatos ocidentais atuando ali. 

Neste sentido, havia algo de verdade na necessidade de reformar parcialmente o sistema soviético, mas o erro de Gorbachev foi liberar rapidamente, e depositar cada vez menos fé na força e na pressão vindas de cima, julgando de forma errônea que as novas opiniões agora livremente expressas iriam conduzir o país a uma social-democracia, e não a um capitalismo neoliberal selvagem e rentista. Foi uma catástrofe, e Gorbachev não, é popular na Rússia hoje.


Qual o principal fator que influenciou na dissolução da URSS?

O fim da União Soviética só é simples se adotada uma visão religiosa ou moralizante, a de que a revolução tornou-se 'burocratizante' e de que Stálin e outros bolcheviques 'traíram' a revolução. Assim, o socialismo soviético estava 'a priori' fadado a desaparecer. Evidentemente, isso é absolutamente simplista e, em muitos aspectos, mesmo estúpido. Particularmente, porque ninguém 'previu' isso até meados dos anos oitenta. 

No Brasil tornou-se muito comum adotar uma visão sobre a URSS e seu fim que é, no limite, conveniente à política externa norte-americana, à CIA, à União Europeia etc.. Esta visão diz que a URSS não passou de um 'capitalismo de Estado', que levou a uma 'burocratização' da sociedade, e que seu industrialiamo não eliminou a 'alienação do homem'. 

Esta é a visão do chamado marxismo ocidental, que vem curiosamente da segunda fase do trabalho do teórico húngaro George Lukács. Digo curiosamente, porque ele fora anteriormente um dos filósofos do leninismo mas abandonou tal perspectiva depois que Kruschev passou a criticar Stálin no XX Congresso do Partido Comunista, criando a ideia de um 'marxismo humanista' que, como chamou atenção Althusser [Louis Althusser, filósofo francês de origem argelina], desconsidera totalmente a questão do poder. 

De qualquer forma, o desaparecimento da URSS é um misto de fatores: começa com a desaceleração da economia soviética e do bloco socialista europeu em meados dos anos 70, devido a fatores estruturais como a desaceleração do crescimento extensivo/horizontal vindo da reconstrução do pós-Guerra, mesclado com uma queda da taxa de êxodo rural e de nascimentos. 

Há também o problema de gerações. A terceira geração no poder depois da revolução, como se pode imaginar, não possuía os mesmos ideais socialistas do que a primeira, deixando de lado a mobilização constante e o combate aos inimigos do socialismo que, deve-se dizer, a URSS nunca eliminara totalmente, mediante a transformação ideológica ou o exílio. Isto mostra a ficção da tese de Arendt [Johanna Arendt, filósofa política alemã] de um 'totalitarismo'; tivesse ele existido, a URSS não teria sido enterrada pelos seus próprios cidadãos anti-socialistas, pois eles não teriam mais existido como chamou atenção o ativista belga Ludo Martens. 

A geração no poder de Breznev, é uma geração que baixa a guarda, que dá continuidade e aprofunda a hipótese, já de Kruschev, de um suposto Estado soviético de 'todo o povo', de um 'comunismo' consolidado, ignorando a luta de classes subterrânea que ainda existia, e o desejo de monarquistas, proto-fascistas, e descendentes de capitalistas e grandes proprietários rurais expropriados de girar para trás as rodas da história, reinstaurando o capitalismo e até mesmo a monarquia.

Esta inversão foi intensificada por uma crescente dependência da URSS do petróleo, cujo preço elevou-se em 1973 e 1979 e criou uma 'doença holandesa' da qual a economia não se recuperaria nos anos vindouros. A economia se tornaria menos produtiva, menos moderna, face ao ocidente. A URSS não universalizou os avanços da microeletrônica, que visavam poupar energia no Ocidente, porque, justamente, estava exportando cada vez mais petróleo. E sua economia baseada no comando central, e na censura política explícita, também não era propensa a estender os avanços tecnológicos que somente a concorrência intra-firmas poderia gerar. 

A tragédia do socialismo é que ele não podia competir com o capitalismo, mas sim apenas superá-lo como já apontava Marx. O enorme erro avaliativo, porém, de trotskistas e 'lukacsianos' era, justamente, levar esta percepção até o limite do absurdo e ignorar os avanços, as vitórias e as conquistas da URSS, dentre as quais a derrota de um regime social anti-humano, a monarquia dos Romanov, e a do nazi-fascismo. Lutaram, apoiaram ou pelo menos contribuíram para destruir a URSS, apoiando figuras como Boris Yeltsin. 

Voltando às causas, a situação tornou-se pior quando Reagan, verdadeiro inimigo da humanidade, assumiu o poder nos EUA intensificando a militarização e a disputa com a URSS, explicitamente visando eliminar o socialismo - ainda que o 'realmente existente'. As autoridades russas, pelo menos até 1985, reagiram como podiam diante das regras da Guerra Fria: buscaram diminuir a brecha, com consequências ruins para a economia. 

Tudo isto gerou insatisfação popular, como se pode imaginar, com aumento da discrepância dos níveis de vida com relação ao Ocidente, com o qual as 'classes médias' soviéticas sempre se compararam. Gorbachev estava parcialmente correto quando argumentava que a guerra não era do interesse soviético, buscando retirar o país do Afeganistão, distender a relação com os EUA e combater o alcoolismo, que se espalhava. 

Mas seu problema foi iniciar uma crítica do socialismo realmente existente em si mesmo, sinalizando uma abertura cada vez maior da política e da economia, rumando à postura liberal e completamente inocente, e irresponsável, que terminou renunciando ao uso das forças de estado. Ele deixou voltar à cena política todos os descendentes dos derrotados de 1917-1923, todos os liberais que não queriam sequer uma economia social-democrata, e todos os nacionalistas que odiavam pertencer à União Soviética, querendo para si seus poderezinhos locais às custas de um caos social. 

Assim, o nacionalismo também foi um empecilho. Ou seja, há aqui também o papel do indivíduo na história, da casualidade tão importante nos processos históricos também. O indivíduo Gorbachev, que concentrava boa parte do poder até então, adotou o liberalismo e o discurso dos 'direitos humanos', como se estivesse dialogando não com Reagan e Margaret Thatcher, mas sim com Franklin Delano Roosevelt ou alguém assim. 

Deste modo, perdeu-se totalmente o controle de uma virtual transição ordenada a uma economia 'social-democrata'm como muitos esperavam e desejavam, deixando espaço para todos os inimigos da URSS e de seus mecanismos de administração econômica e social que tinham, sim, muito de socialistas. 

Em suma, o fim da URSS é processo complexo. À luz de hoje, anos desinteressantes em que nada de bom em geral tem ocorrido, com exceção talvez de algumas experiências latino-americanas, chega a ser impressionante como uma união de repúblicas socialistas nascida após a consolidação do capitalismo e que com ele teve que competir, e que reuniu tantos povos diferentes como a URSS, tivesse durado tantos anos. 

Foi uma experiência difícil, com suas contradições mas, tendo vencido uma monarquia assassina e o nazismo, e universalizando o emprego, o planejamento econômico e os serviços sociais gratuitos, pode ser considerada um grande avanço para a humanidade como um todo. Não deve ser considerada um modelo acabado a repetir-se, mas deve ser estudada e compreendida em suas vitórias que servirão, num futuro próximo, como lições na luta por uma sociedade sem fome e desemprego. 

Aqueles que apenas criticam a experiência soviética são inocentes, ou estão a serviço das potências capitalistas que lucraram com o fim daquela experiência.


Quais os grandes desafios militares, políticos e econômicos da Rússia hoje?

Havia a esperança de que o fim do socialismo real levasse a uma distensão permanente nas relações internacionais. Gorbachev e liberais argumentavam inocentemente que estavam criando um 'mundo mais seguro'. Haveria o 'fim da história' e a 'paz perpétua' de Immanuel Kant... Porém, viu-se o oposto. 

Os EUA e a OTAN ganharam liberdade plena para o emprego de suas táticas de choque, de ocupação, de guerra, de mentiras etc. Desapareceu o contra-poder soviético que regulava, em parte, a pulsão do imperialismo por destruir os governos de países não-alinhados, e tomar seu petróleo, mercados e recursos naturais. E assim foi. 

A OTAN contribuiu para a destruição da Iugoslávia, do Iraque, da Líbia, com suas políticas de invasão e dominação baseadas nas mentiras mais cínicas, para controle de economias locais e internacionalização das riquezas locais, em benefício de seus capitais. Sempre dividindo para governar. 

A URSS, como aliada econômica, desapareceu também, complicando a vida da República Popular da Coreia, de Cuba, de Moçambique etc. Ou seja, o desaparecimento do socialismo real levou ao fim de um campo externo que auxiliasse economias não-alinhadas com imperialismo e que detinham um mínimo controle sobre suas riquezas internas, como faz hoje o Zimbábue. 

Anos depois, diante da reorganização parcial da Rússia e do fortalecimento da China, as forças imperialistas ocidentais estão novamente exercendo pressão sobre estas duas nações. A Rússia e a China, por mais capitalistas que sejam, ainda têm elites nacionais, e projetos nacionais, agora dentro dos marcos do capital nacional. Têm complexos industrial-militares, têm interesses geopolíticos, querem mercados e acesso a recursos. São, assim, grandes e autônomas demais para ser 'toleradas'. 

Daí a remilitarização crescente, inclusive da Alemanha. Daí a pressão da OTAN sobre a Europa Oriental e o Pacífico, com alocação cada vez maior de forças estratégicas, 'cercando' a China e a Rússia. Os supostos 'inimigos do Ocidente', Rússia, China e Coreia, são usadas crescentemente para mascarar as crescentes contradições internas dos países ocidentais. 

Há, assim, uma enorme pressão do velho imperialismo sobre Rússia e China, independentemente do que pensam os povos em todos os lugares, que não querem guerra. Rússia e China não têm opção, senão preparar-se para o pior, também remilitarizando-se e preparando para o pior. 

Quanto aos desafios políticos, a Rússia teria que controlar e derrotar internamente as forças políticas que querem uma maior internacionalização de suas economias, uma maior perda de controle nacional, e enterrar as vitórias sociais remanescentes da revolução. Eles têm também que internalizar aos poucos em seus processos produtivos o que pode ser considerada como a Quarta Revolução industrial, para evitar novas disparidades com o ocidente e diminuir o peso dos investimentos militares. 

Não está claro como e se isto será feito sem uma força aglutinadora e mobilizadora tal como a ideologia socialista, que deu lugar a um nacionalismo que permitiu a criação de uma burguesia que, em muitos aspectos, é tão ruim quanto as latino-americanas.

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Vítor Eduardo Schincariol é professor adjunto da Universidade Federal do ABC desde 2012. Membro do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da UFABC. Pesquisador na área de história econômica, teoria econômica e desenvolvimento econômico. Publicou as seguintes obras: "Crescimento econômico no Brasil, 2003-2010: uma análise da política econômica e do padrão acumulativo"; "O Brasil sob a crise do fordismo"; "Ensaios sobre a economia dos Estados Unidos"; "Economia e Sustentabilidade", todos pela Editora LCTE (São Paulo).

 

Edu Montesanti é jornalista, escritor, professor e tradutor / www.edumontesanti.skyrock.com 

 

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