"Federalismo furtivo": o fim do europeísmo

O "Brexit" lança luz particularmente crua sobre a estratégia de "federalismo furtivo" adotada pelos dirigentes europeus depois do Tratado de Maastricht e, consequentemente, sobre a ideologia europeísta que subjaz a essa estratégia. Foi em realidade essa estratégia, e seu instrumento privilegiado, o euro, que provocaram essa reação dos eleitores britânicos, empurrando-os a deixar não "a Europa" como pretendem alguns, mas uma instituição particular, a União Europeia. As escolhas dos eleitores britânicos foram longamente explicadas. O fato de personalidades do governo britânico, como o ministro da Justiça Michael Gove, tenham pregado o voto a favor de o país sair da UE é significativo.


Brexit põe em questão o que constitui hoje a coluna vertebral da política qualificada de europeísta, seja a de François Hollande ou a de Angela Merkel. O choque vai portanto muito mais longe que o da saída de um país, a Grã-Bretanha, cuja participação na dita União Europeia já era das mais frouxas. Essa crise da estratégia europeísta é um ponto de ruptura. Só nos desembaraçando da aporia europeísta poderemos realmente pensar na construção da Europa.

As bases ideológicas do federalismo furtivo

Convém, em primeiro lugar, compreender a démarche chamada "federalismo furtivo" que foi adotada a partir do Tratado de Maastricht e que se encarna no euro. Essa estratégia funda-se numa rejeição das nações, seja a rejeição associada a alguma desconfiança, seja associada a verdadeiro ódio das chamadas nações. Por isso se uniram na mesma démarche os liberais conservadores, que entendem que a Nação moderna implica a Democracia e que se mantêm fiéis a essa profunda desconfiança contra gente de pensamento conservador, sejam velhos "esquerdistas" (e Cohn-Bendit é um dos exemplos) que odeiam na Nação essa acumulação de mediações ancoradas na História, que eles veem como um obstáculo à sua visão milenarista e apocalíptica de um "fim" da História, sejam sociais-democratas que buscam transferir para nível estatal superior o que a moleza de suas políticas os impede de alcançar no quadro nacional. Essas diferentes rejeições contra a nação articulam-se entre elas de modos específicos, considerara a cultura política de cada país.

Na França, é a combinação da demissão de grande parte da elite política em 1940 que se vem associar a um sentimento brotado do traumatismo das guerras coloniais. Na Alemanha, é o peso da culpa coletiva pelo nazismo, agravada pelo traumatismo da divisão em dois de 1945 a 1990, que explicam o crescimento do europeísmo dentro das elites. A Alemanha, país objetivamente dominante da UE não se permite pensar na própria soberania e não a pode viver senão como contrabando, na medida em que toma a forma de uma soberania "europeia". Não há outro modo de compreender os erros políticos cometidos seja em relação à Grécia seja na questão dos refugiados, erros que hoje são como espectros a assombrar Angela Merkel. Na Itália, é outra vez a combinação do episódio mussoliniano e dos "anos de chumbo", que convenceram grande parte da classe política de que a União Europeia seria a única saída para a nação italiana. E podem-se multiplicar os exemplos, incluindo países que se amam mal (Espanha, Portugal) ou que se sabem irremediavelmente divididos (Bélgica).

Mas, e é uma evidência, projeto político nascido do ódio de si mesmo ou de um mal-estar não pode prosperar. Essa foi a primeira falha do europeísmo e do federalismo furtivo. Porque, engendrada por uma visão essencialmente negativa, não pode ser portadora de futuro.

O papel político do euro

Esse projeto está encarnado essencialmente no euro. A precipitação com que os políticos aceitaram a ideia de moeda única, quando ainda nem havia as condições necessárias para que acontecesse, e seria muito mais lógico criar-se uma moeda comum, uma moeda que recobriria, mas não substituiria as moedas nacionais, não tem explicação que não inclua motivos políticos e psicológicos imperiosos. Aqui, mais uma vez, os motivos foram diferentes conforme o país, mas todos convergiram para a ideia de que, feita a moeda única, os países da eurozona não teriam outras escolhas além do federalismo. 

Mas durante o processo todos descuidaram do fato de que o federalismo não é objetivo unificador. Pode haver diversas formas de federalismo. Ora, sem debate público, que contrariaria uma estratégia que impunha a dissimulação e a furtividade, não podia haver instância na qual acertar essas diferentes formas de federalismo. 

Assim, a Alemanha concebe o federalismo como um sistema que dá a ela um direito de olhar a política dos outros países, mas sem ter de pagar o preço do orçamento. É o federalismo mesquinho.

A França, por sua vez, vê nas estruturas federais a busca pela história de sua própria construção como estado e quer impor um federalismo que faça nascer um novo estado-nação. Mas é fazer pouco das especificidades da História, e do fato de que q nação e o povo construíram-se paralelamente, (e com múltiplas interações) ao longo de quase oito séculos. Desse ponto de vista, só a História da Grã-Bretanha é plenamente comparável. A ideia implícita era de fazer pelo engodo, o que o Império napoleônico não pôde fazer pela força. Essa ideia fundava-se sobre as ilusões do universalismo francês, que confunde valores, com princípios. É erro enorme, que empurrou os dirigentes franceses, de esquerda, como da direita, para um beco sem saída.

Porque o que bloqueia, na opção federalista é ao mesmo uma noção política (quem seria o "soberano") e uma questão econômica - a questão das transferências. É sabido e já dissemos várias vezes, que as transferências exigiriam cerca de 10% (entre 8% e 12% segundo estudos diferentes) do PIB alemão, para o "orçamento federal". Não chega a ser surpresa que os alemães não queiram, porque, na realidade, não podem. A recusa da Alemanha a revisar regras para permitir que a Itália fizesse frente à sua crise bancária mostra todos os limites da noção de solidariedade que é essencial numa federação. Ora, se essa solidariedade não se realizou, como convencer os povos a fundirem-se democraticamente num só grande conjunto? E aqui reencontramos a questão política do soberano.

O "federalismo" está pois condenado, seja a não ser seja a não existir exceto sob a forma do federalismo mesquinho, ou sob um direito de ver assimétrico da Alemanha sobre a política dos demais países. 

É a constatação que faz Joseph Stiglitz em seu mais recente livro, do qual sairá uma tradução francesa ainda esse verão. Ou damos fim ao euro, ou avançamos para um federalismo inclusivo, que nem alemães nem holandeses querem, ou o euro será a morte da UE, mas também, e muito mais grave, da ideia de cooperação na Europa.

A responsabilidade dos europeístas 

Hoje, os danos causados pelo euro já são importantes. Concebido para aproximar e unir a Europa, o euro fez efetivamente o contrário: depois de uma década sem crescimento, a unidade foi substituída pela dissidência e a ampliação pelo risco de secessões. A estagnação da economia europeia e as sombrias perspectivas atuais são portanto o resultado direto dos defeitos fundamentais inerentes ao projeto do euro - a integração econômica saindo à frente da integração política, com uma estrutura que favorece muito mais a divergência que a convergência.

Mas, o mais importante foram suas consequências políticas. A UE (e não só a eurozona) engajou-se num processo político pelo qual a democracia foi progressivamente retirada dos povos. Exemplar nesse sentido foi o caso do tratado "Merkozy", o "Pacto Fiscal Europeu" (oficialmente Tratado sobre a Estabilidade, a Coordenação e a Governança, TECG), votado pela França em setembro de 2012. E o levante democrático da Grã-Bretanha pode ser lido como uma reação a esse federalismo mesquinho que aos poucos vai sendo implantado, por vontade do governo alemão e com a passividade do governo francês.

É hoje portanto bem claro que é preciso liquidar o europeísmo e seus instrumentos, se não queremos nos ver, daqui a alguns anos, talvez alguns meses, numa situação na qual os conflitos entre nações, porque foram negados por tempo demais, não terão mais espaço para construir qualquer compromisso mútuo entre interesses divergentes.

Convém declarar aqui portanto a responsabilidade histórica que pesa sobre os europeístas, com sua ideologia de ódio às nações, e do instrumento deles, o euro. Na crise pela qual passamos hoje, e da qual a saída do Reino Unido é apenas um aspecto, e a crise bancária na Itália é outro, a responsabilidade dos europeístas e de todos que os deixaram operar, é central; é fundamental.

Romper com a ideologia europeísta é, portanto, medida de saneamento público, mas não basta. Rejeitar essa ideologia, dar as costas ao federalismo furtivo, reconhecer a nação como o quadro no qual a democracia vive e alimenta-se, não produzirá qualquer solução imediata. Mas tornará possível procurar por alguma solução, seja no plano da França, para nós diretamente, seja no plano europeu. É pois condição com certeza não suficiente, mas absolutamente necessária. Essa solução já foi evocada com aquela ideia de Comunidades de Nações Europeias. É ideia que sem dúvida terá de ser detalhada, talvez emendada, mas pelo menos é essa a direção na qual é preciso andar.*****


30/6/2016, Jacques Sapir, Rousseurope, HYPOTHESES

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey