A natureza da crise sistêmica global: às vésperas do choque das placas tectônicas do capital

A natureza da crise sistêmica global: às vésperas do choque das placas tectônicas do capital

Um fantasma ronda a economia mundial: há mais de oito anos a crise sistêmica global vem castigando os países capitalistas e não há perspectivas de retomada da economia no curto prazo. Isso porque esta crise é muito diferente das crises cíclicas  que atingem periodicamente o capitalismo desde os seus primórdios.

Edmilson Costa

Um fantasma ronda a economia mundial: há mais de oito anos a crise sistêmica global vem castigando os países capitalistas e não há perspectivas de retomada da economia no curto prazo. Isso porque esta crise é muito diferente das crises cíclicas  que atingem periodicamente o capitalismo desde os seus primórdios. Essas crises recorrentes, de tanta regularidade, já são administradas com êxito pelos gestores capitalistas desde a metade dos anos 40, mediante as políticas keynesianas.  No entanto, as crises sistêmicas são de outra natureza: elas colocam em questionamento o conjunto do sistema e representam o esgotamento de um longo ciclo do capital.

(Uma explicação mais completa sobre a diferença entre crises cíclicas e crise sistêmica pode ser encontra em: Costa, Edmilson. A crise econômica mundial, a globalização e o Brasil. São Paulo: Edições ICP, 2013.)

Ou seja, a crise sistêmica global demonstra que as velhas relações de produção do mundo atual não comportam mais a estrutura material construída e desenvolvida ao longo do ciclo que está se esgotando e, por isso mesmo, a base material está se rebelando contra o conjunto do sistema e exigindo mudanças quantitativas e qualitativas, como ocorreu nas crises sistêmicas anteriores.

Por isso, as fórmulas e receitas que se tornaram bem sucedidas nas crises cíclicas, a partir da intervenção do Estado no sistema econômico, são inadequadas para esta crise. Prova disso é que os governos dos países centrais já injetaram mais de U$ 20 trilhões na economia, mas a estagnação econômica e o desemprego continuam sendo um dado da realidade nesses países. A bem da verdade esse grande volume de recursos tem servido apenas para salvar os banqueiros e especuladores em geral, evitar o colapso do sistema financeiro, bem como também para criar bolhas especulativas nas bolsas de valores e em outros setores da economia. Como esses recursos não têm base na economia real, em algum momento esse dinheiro fictício, criado a partir de ordens burocráticas dos Bancos Centrais, poderá se transformar em combustível para crises ainda maiores ou gerar uma escalada inflacionária com efeito profundamente desestabilizadores paras as economias. 

Em outros termos, a  economia dos países centrais continua tão ou mais doente do que no período da explosão da crise em 2008 com a queda do Lehman Brothers, com o agravante de que até os chamados países emergentes, que não foram atingidos nas mesmas proporções que as economias centrais, agora também estão em crise.  Apesar dos meios de comunicação diariamente procurarem encobrir a gravidade da crise, informando que determinados países estão se recuperando, que as Bolsas de Valores estão prósperas, que logo haverá perspectivas de retomada do crescimento econômico e do emprego, essas informações servem apenas para confundir e desorientar os trabalhadores, retardando assim sua compreensão da gravidade da crise e reduzindo a possibilidade de se colocarem em movimento em defesa dos seus direitos e, inclusive,  contra o próprio sistema.

Se analisarmos a conjuntura no coração do sistema - os países centrais em geral e os Estados Unidos e a União Europeia em particular - poderemos observar um panorama com enormes dificuldades para o capital. Se por um lado, os trilhões de dólares e euros colocados nas economias desenvolvidas estão retardando o colapso do sistema, por outro essa orgia monetária está criando economias autistas, no qual os agentes econômicos se comportam como zumbis a caminho do precipício, muito embora nessa trajetória m momentos de euforia, para logo depois se transformarem em perplexidade e mesmo de  pânico. Essa situação é pouco compreensível para as mentes acostumadas com a velha ordem construída após a Segunda Guerra Mundial, pois normalmente as pessoas têm dificuldades para se adaptar a uma nova ordem, onde as mudanças são velozes e radicais, e geralmente continuam raciocinando como no passado e buscando resolver os problemas com as mesmas fórmulas de conjunturas anteriores.  Qual é a situação real hoje do mundo capitalista, especialmente de sua parta mais desenvolvida?

A economia europeia vive uma estagnação prolongada a caminho da depressão, apesar das políticas de flexibilização quantitativa efetuadas pelo Banco Central Europeu. Trata-se de um continente em queda livre, com recessão, aumento do desemprego e uma crise social de vastas proporções, cuja ponta do iceberg é a tragédia grega, onde o desemprego atinge mais de 25% da população economicamente ativa, percentual que ultrapassa 50% quando se trata dos jovens. A isso se junta a crise humanitária da imigração de centenas de milhares de refugiados de regiões desestabilizadas pelo imperialismo europeu e norte-americano.

Nos Estados Unidos, a situação não é muito diferente, apesar do esforço diuturno da mídia para construir uma conjuntura favorável. A dívida externa norte-americana já ultrapassa 100% do PIB e a cada período trava-se no Congresso uma dura batalha sobre o aumento do teto do débito com repercussões desestabilizadoras em todo o mundo. A indústria da transformação e seu contraponto, o consumo das famílias, permanecem estagnados e o que o establishment denomina de crescimento é resultado das bolhas artificiais na órbita da circulação, especialmente na Bolsa de Valores e especulação financeira. Quando a crise aprofundar e as bolhas especulativas murcharem aí então se poderá observar a profundidade a crise, com a desvantagem de que o governo já não terá condições para socorrer o sistema financeiro como aconteceu no início da crise sistêmica atual.

A questão do aumento do emprego merece um comentário à parte. A redução do desemprego, nos níveis anunciados pelo governo, é apenas uma miragem, fruto da precarização do trabalho e da desistência de milhares de trabalhadores que deixaram de procurar emprego. O indicador que melhor pode aferir a situação real é a relação entre a população do País e o conjunto das pessoas empregadas. Por esses dados, pode-se verificar que a relação continua muito semelhante ao período da crise de 2008, o que significa que o aumento do emprego é muito mais um contorcionismo estatístico do que aquilo que ocorre efetivamente na realidade. Para completar o quadro, mais de 40 milhões de norte-americanos estão vivendo abaixo da linha de pobreza, sobrevivendo em função dos cartões de alimentação (food stamps) distribuídos pelo governo. Para a maior economia do mundo, esse não é um quadro nada alvissareiro.

Uma crise complexa, um sistema na encruzilhada

A crise sistêmica global ocorre num momento em que o capitalismo se transformou num sistema mundial completo,  com a internacionalização da produção e das finanças, profunda reconfiguração de seu sistema de produção, com a emergência das tecnologias da informação, internet, da microeletrônica, biotecnologia, automação industrial, nanotecnologia, entre outros, e uma superacumulação de capitais em escala global, o que levou o sistema a buscar saída na financeirização da riqueza e na especulação financeira global. Esse conjunto de novos fenômenos que foram amadurecendo ao longo dos últimos 70 anos, - quando começou efetivamente o longo ciclo iniciado com o fim da Segunda Guerra Mundial e que agora está se encerrando -, alteraram de maneira profunda as bases materiais do sistema produtivo mundial, as relações econômicas entre o centro e a periferia capitalista, o processo tradicional de apropriação do valor, a reconfiguração do sistema financeiro internacional e a possibilidade de valorização fictícia de um mesmo capital na órbita financeira ao longo das 24 horas do dia, em função da interconexão das praças financeiras, viabilizada pela internet, satélites  e fibras óticas.

Para compreendermos essas mudanças,  seu impacto no conjunto do sistema capitalista, além da relação com a crise sistêmica global, é fundamental avaliarmos separadamente cada um desses fenômenos, apenas para efeito analítico, uma vez que as esferas produtivas e financeiras e o conjunto de outras mudanças que ocorrem no sistema são parte constitutivas do capitalismo monopolista atual. Mas antes é necessário enfatizar que, ao contrário das duas grandes transformações produtivas anteriores (a primeira e a segunda revolução industrial), quando ocorreu um extraordinário desenvolvimento das forças produtivas, o sistema capitalista atual se encontra numa grave encruzilhada, pois está cada vez mais impossibilitado de desenvolver todo o potencial dessas novas forças produtivas em função de suas limitações estruturais, que podem ser expressas na insuficiência de demanda efetiva tanto de consumo produtivo quanto de consumo das famílias e na superacumulação de capitais, cuja expressão é a fuga para a frente da financeirização da riqueza e do frenesi especulativo global, elementos que foram os principais detonadores da crise sistêmica global. Vejamos cada um desses fenômenos para compreendermos a dinâmica da crise.

a) A internacionalização da produção

O sistema capitalista, desde seus primórdios, sempre teve vocação internacional, pois a própria natureza da concorrência leva à renovação constante das forças produtivas e à necessidade de ampliação da demanda e ocupação de novos espaços geográficos

 

(No Manifesto Comunista Marx já identificava essa tendência: "A necessidade de um mercado em constante expansão para os seus produtos impele a burguesia a conquistar todo o globo terrestre ... A burguesia, por sua exploração do mercado mundial, deu uma forma cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países. Para grande pesar dos reacionários, roubou da indústria a base nacional em que se assentava. As primitivas indústrias nacionais foram aniquiladas ... São ultrapassadas por novas indústrias ... Essas indústrias já não trabalham matérias primas nacionais, mas matérias primas oriundas das zonas mais afastadas e cujos produtos são consumidos no próprio País, mas em todos os continentes ao mesmo tempo")

 No entanto, a dimensão internacional do capitalismo só pode ser considerada plena após o processo de internacionalização da produção e das finanças. Se avaliarmos toda a história do desenvolvimento desse sistema de produção, poderemos observar que esse sistema conquistou o mundo de uma maneira muito peculiar: primeiro, eliminou a ordem feudal e instituiu as relações capitalistas na produção; depois,  a indústria hegemonizou as relações de produção na época concorrencial, levando à mecanização das fábricas e a primeira revolução industrial. Posteriormente, deu um salto de qualidade com  a união dos capitais bancário e industrial, a  reorganização do sistema produtivo e a constituição dos monopólios, período em que as grandes empresas passaram a dominar a vida econômica e ocupar as nações periféricas em busca de matérias primas. Emergia assim desse processo a segunda revolução industrial. Mas a plenitude da internacionalização capitalista só pode ser  considerada completa quando  as grandes corporações transnacionais passaram a produzir diretamente no interior dos países periféricos, através de milhares de filiais instaladas em todos os continentes, e extrair o valor, de maneira generalizada, fora de suas antigas fronteiras nacionais.

 

(Um dos estudos pioneiros do processo de internacionalização da produção pode ser encontrado em; Michalet, Charles-Albert. Capitalismo mundial. São Paulo: Paz e Terra, 1984).

Ao contrário do que muitos imaginam, o processo de globalização da produção é um fenômeno típico do capitalismo contemporâneo, fruto do próprio desenvolvimento das forças produtivas capitalistas e da busca de novas oportunidades de valorização do capital, em função da mão de obra e matérias-primas baratas, além de vantagens creditícias e fiscais nos países hospedeiros. A partir de meados da década de 50 pode-se verificar um movimento contínuo das transnacionais no sentido de produzir para além das fronteiras nacionais. Esse movimento foi se consolidando em todos os continentes, especialmente naquelas regiões em que existia certa estabilidade política, uma mão de obra mais organizada e com certo grau de estudo, sem problemas tribais, guerras ou disputas territoriais, além de fontes de matérias primas abundantes. O movimento das transnacionais não ocorreu apenas no eixo centro periferia: entre os  próprios países centrais verificou-se também  uma grande interpenetração de capitais transnacionais, configurando-se um processo próximo a uma remonopolização global do capital e consolidação de esferas de influência dos países centrais a partir dos grandes blocos econômicos e tratados comerciais.

Pode-se dizer que duas décadas depois, o processo de internacionalização da produção já estava maduro, com as corporações transnacionais presentes em todo o planeta mediante a instalação de centenas de milhares de filiais nos mais variados ramos de produção. Essa nova performance colocou o processo de industrialização mundial num novo patamar, de forma a que as empresas transnacionais passaram a ter a possibilidade de produzir de acordo com as melhores disponibilidades de matérias primas e mão de obra cada País e também para mercados específicos, sempre objetivando alcançar as maiores taxas de lucro. Com a produção padronizada e flexibilizada, cada unidade empresarial passou a ter condições de produzir as peças de acordo com o planejamento da empresa matriz, racionalizando de maneira extraordinária o processo produtivo mundial. Estavam assim construídas as bases para as mudanças profundas que viriam a ocorrer no sistema produtivo com a introdução das tecnologias da informação, da internet, da microeletrônica, robótica e novos materiais.

Mas antes é necessário enfatizar que a internacionalização da produção produziu um conjunto de novos fenômenos na economia capitalista. Pela primeira vez na história, a burguesia dos países centrais passa a extrair, de maneira generalizada, o valor fora de suas fronteiras nacionais, tornando assim uma classe exploradora direta tanto dos trabalhadores da periferia quanto dos países tradicionais industrializados. Anteriormente, o valor era capturado através do comércio internacional e da exportação de capitais. No primeiro caso, os países periféricos vendiam matérias-primas para os países centrais e compravam destes os produtos industrializados, gerando assim o que Samir Amin denominou de troca desigual, pois a produtividade dos produtos manufaturados é maior que a dos produtos de origem agropecuária ou mineral.

No segundo, os países centrais se apropriavam dos juros e das remessas de lucro em função dos capitais investidos ou dos financiamentos realizados na periferia. A partir da década de 80 o sistema passa por uma nova transformação industrial que vai revolucionar completamente o modo de produção capitalista e produzir um conjunto de novos fenômenos em todas as esferas da economia e da vida social. As tecnologias da informação, a generalização dos computadores, a internet, a engenharia genética e a biotecnologia, a nanotecnologia, os robôs inteligentes comandando as máquinas ferramentas alteraram de maneira radical o chão das fábricas e empresas em geral, além do perfil do proletariado - temas que iremos abordar em outra seção.

b) A internacionalização das finanças

O processo de internacionalização das finanças ocorre no mesmo período da internacionalização da produção, até mesmo porque os grandes bancos dos países centrais já estavam umbilicalmente ligados aos monopólios produtivos. A internacionalização financeira cresceu rapidamente porque absorveu um conjunto de novas tecnologias, como os satélites, a generalização dos computadores, as fibras óticas e, especialmente, a internet. Além disso, contou ainda com uma série de mudanças econômicas e políticas que ocorreram nos países centrais, como o enfraquecimento do Estado do Bem Estar Social, a emergência política de Ronald Reagan e Margareth Tatcher, respectivamente nos Estados Unidos e na Inglaterra, e a posterior desregulamentação da economia, cujo elemento mais fundamental para a órbita financeira foi a instituição do rentismo em praticamente quase todos os países  e a livre mobilidade dos capitais. Esse conjunto de fenômenos possibilitou às finanças não só um extraordinário desenvolvimento, mas principalmente certa hegemonia nos negócios do grande capital e relativa autonomia em relação à órbita produtiva.

Vale destacar que a ordem financeira construída em Bretton Woods começou a desmoronar a partir dos crescentes deficit no balanço de pagamentos dos Estados Unidos, o que levou o governo do presidente Richard Nixon a decretar o fim da paridade entre o dólar em 1971. Diante do fato consumado, o sistema financeiro internacional, após algum período de hesitação, passou a ser administrado através do cambio flutuante, prática que foi legalizada a partir de 1976 pelo Fundo Monetário Internacional. Ainda na primeira metade da década de 70 o sistema financeiro internacional passou por um grande processo de mudanças, impulsionado pela privatização da liquidez internacional e pela emergência do mercado de eurodólares, especialmente após a crise do petróleo do final de 1973. Este mercado foi o principal responsável pela reciclagem dos petrodólares e pela dinamização do crédito internacional privado, especialmente para os países da periferia, cujo principal resultado foi o extraordinário endividamento desses países e, posteriormente, a primeira grande crise financeira do pós-guerra. (Moffit)

Mas a mudança de qualidade de atuação do sistema financeiro internacional ocorreu a partir de 1979, com a administração de Paul Volcker no comando do Federal Reserve (FED) dos Estados Unidos. Diante de uma inflação crescente, Volcker implementou uma política de aumento das taxas de juros buscando atingir dois objetivos estratégicos: deter o processo inflacionário e a desvalorização do dólar.  (Moffit) Com a reorientação neoclássica da política monetária, o presidente do FED atingiu os objetivos a que se propôs, ou seja, reduziu a inflação e restaurou a hegemonia do dólar, uma vez que, em função das elevadas taxas de juros, os capitais voltaram a migrar em profusão para os Estados Unidos.  O exemplo da política monetarista norte-americana foi posteriormente sendo assimilado pelas economias dos países centrais. Abandonaram as políticas keynesianas de estímulo ao crescimento econômico e do emprego para eleger o combate à inflação como estratégia geral da política econômica.(Phihon)

Essa nova estratégia se transformou em política geral do grande capital internacional com a eleição de Tatcher e Reagan. A eleição de Reagan e Tatcher representou uma mudança profunda na correlação de forças   entre os vários segmentos do grande capital: a elite parasitária, mais ligada ao capital especulativo, passou a hegemonizar o poder nos Estados Unidos e nos países centrais. Subordinou todos os outros setores à lógica das finanças, resultando numa hegemonia que durou cerca de três décadas. Nesse processo, o sistema capitalista em geral, desde os países centrais até os mais distantes rincões da periferia,  passaram por um intenso processo de desregulamentação da economia, com uma ofensiva geral contra direitos e garantias dos trabalhadores, liberalização financeira, fim do controle dos preços e livre mobilidade dos capitais e privatização das empresas públicas. Essa política era combinada com a retirada do Estado da economia que, para os monetaristas, era a causa central de todos os problemas econômicos, além da privatização das empresas públicas. 

A nova conjuntura proporcionou ao polo financeiro do grande capital um enorme poder sobre o conjunto da política econômica e os banqueiros em geral sentiram-se de mãos livres para criar novos "produtos financeiros" cada vez mais sofisticados, num frenesi especulativo que  culminou num descolamento cada vez maior entre a órbita produtiva e a esfera das finanças. Especulação com moedas, taxas de juro, metais, produtos agrícolas e um conjunto infinito de novas variáveis, a partir da criação dos derivativos, além da securitização de dívidas públicas e privadas tornaram-se as fontes privilegiadas dos negócios na órbita financeira. A criatividade da oligarquia financeira  parecia não ter limites: para se ter uma ideia, antes da crise de 2008, o volume de recursos que circulava na esfera das finanças era cerca de 12 vezes maior que o PIB mundial, (Banco de Compensações Internacionais) fato que por si só já prenunciava um ambiente em que o resultado não poderia ser outro que uma grande crise global, uma vez que o processo especulativo contaminou praticamente todas as economias ligadas à economia líder.

Mas a crise não deteve o processo de especulação financeira. Para salvar os bancos do colapso, os governos dos países centrais, especialmente o norte-americano, injetaram cerca de U$ 15 trilhões de dólares no sistema financeiro, processo que foi ampliado com as chamadas políticas de flexibilidade quantitativa (quantitative easy). Esses recursos contribuíram para evitar o colapso bancário e, ao mesmo tempo, serviram para criar bolhas especulativas em vários mercados, nas bolsas de valores e tumultuar o mercado de moedas dos países periféricos. Todavia,  o mais surpreendente desse processo é o fato de que, enquanto toda a economia mundial está em crise, os bancos continuam obtendo lucros extraordinários. Isso porque os recursos em circulação na economia foram colocados pelos Bancos Centrais a taxas de juros praticamente negativas. Os bancos captam esse dinheiro a custo zero e posteriormente vão especular nas bolsas e nos mercados dos países periféricos, onde as taxas de juros são bastante elevadas, resultando daí os altos lucros do sistema financeiro.

Novas tecnologias e impactos na base produtiva

Esse conjunto de fenômenos novos vão se combinar com mudanças tecnológicas profundas que ocorreram no interior do sistema capitalista, tais como as tecnologias da informação (telecomunicações, satélites, universalização dos computadores, internet e plataformas digitais, telefonia móvel), a microeletrônica, a robótica, a engenharia genética, a biotecnologia, nanotecnologia, além de elementos de inteligência artificial.  Essas mudanças alteraram radicalmente a estrutura produtiva capitalismo, relegando a um segundo plano os ramos industriais típicos da segunda revolução industrial, como a metal-mecânica, a química fina e os plásticos. Da mesma forma que a energia elétrica, o telégrafo e o telefone e os motores a combustão revolucionaram o sistema capitalista e contribuíram decisivamente para a emergência do capitalismo monopolista e do domínio das grandes empresas em cada ramo de produção, esses novos ramos industriais, especialmente as tecnologias da informação, a engenharia genética e a biotecnologia, cumprem o mesmo papel nessa fase do capitalismo.

(Para compreender melhor as mudanças profundas provocadas pelas tecnologias da informação e, especialmente, pela internet, consultar: Castells, Manual. A galáxia da internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.)

Se analisarmos o capitalismo hoje, do ponto de vista da inovação, poderemos observar que as tecnologias da informação fazem parte de todos os processos da atividade econômica, quer na área produtiva, comercial, financeira e de serviços em geral. O planejamento industrial, o desenho do produto, a produção, as relações com os fornecedores, a administração e as vendas são todos permeados pelas tecnologias da informação. Os robôs programáveis estão presentes no chão da fábrica e cumprem um papel cada vez mais determinante nos processos produtivos das grandes empresas. Nos circuitos comerciais, os estoques, a distribuição, a estrutura de vendas e a reposição cotidiana dos produtos gerais são feitos a partir de softwares sofisticados que possibilitam à administração central controlar o fluxo de mercadorias, o volume de vendas e os lucros em tempo real. Além disso, o comércio eletrônico vem revolucionando o comércio mundial e ocupando cada vez mais os espaços do comércio tradicional. Muitos analistas acreditam que num espaço de tempo não muito distante o comércio eletrônico deverá superar as vendas em lojas e supermercados.

Na área financeira, o processo de automatização bancária, alavancado pelas tecnologias da informação, possibilitou a interconexão entre matrizes, agências bancárias e clientes, de forma que, de qualquer parte do mundo, se pode sacar dinheiro, pagar contas, fazer depósitos e realizar aplicações financeiras. As tecnologias da informação possibilitaram a interconexão entre as diversas praças financeiras mundiais, o que possibilitou a que os negócios nas bolsas de valores e nos diversos mercados se convertessem numa arena especulativa global, nos quais comprar ou vender ações de qualquer empresa, especular com moedas, câmbio, ouro, produtos agrícolas transformou de maneira radical a configuração dos mercados financeiros internacionais, especialmente com a emergência dos derivativos, cujos títulos ganharam uma dimensão tão extraordinária que passaram a hegemonizar os negócios na órbita das finanças.

A revolução das tecnologias da informação não afetou apenas os setores produtivos, comerciais e financeiros, mas atingiu toda a vida social da humanidade. Os meios de comunicações e as transmissões por satélites, a generalização dos computadores e a emergência da internet e da telefonia móvel transformaram efetivamente o mundo naquilo que Marshall McLuhan denominou nos anos 60 de aldeia global. A internet permitiu uma democratização do conhecimento tão elevada que só não envolve toda a humanidade em função das limitações de classe o sistema capitalista. Hoje, a maior parte do conhecimento produzido pela humanidade está disponível na internet. Com um computador, um tablet ou smarth fone as pessoas podem acessar vários trilhões de informações em todos os ramos do conhecimento, desde as plataformas científicas das universidades até os principais museus do mundo, realizar compras e interagir com qualquer pessoa em qualquer parte do planeta em tempo real mediante mensagem de texto ou de voz. As tecnologias da informação  têm hoje um impacto muito maior do que a descoberta da imprensa por Gutemberg no século XVI.

A engenharia genética e a biotecnologia também causaram profundas alterações na base produtiva do capitalismo. Se observarmos todo o setor agrícola e de pecuária,  poderemos constatar que esses ramos produtivos fundamentais para a sobrevivência da humanidade estão profundamente marcados pelas inovações tecnológicas oriundas  dos desenvolvimentos genéticos e biotecnológicos. Quase toda a produção mundial de grãos, legumes e verduras é resultado de melhoramentos e ensaios realizados por pesquisadores, tanto nas universidades, institutos de pesquisa e empresas públicas e privadas, fato que resultou no aumento extraordinário da produção e da produtividade agrícolas, muito embora os monopólios tenham se apropriados não só do saber milenar dos povos originários, mas do próprio processo de produção de sementes, adubos, defensivos agrícolas e do comércio em escala mundial. Além disso, a produção biotecnológica dos fármacos está bastante desenvolvida e tem produzido impactos fundamentais na indústria farmacêutica e pode, no médio prazo, hegemonizar a produção farmacêutica mundial.

De forma semelhante, os melhoramentos genéticos alteraram profundamente a produção de proteína animal,  tanto bovina, como de aves e peixes. Hoje se produz frangos de corte em menos de 40 dias, quando no passado se levava cerca de seis meses para que uma ave estivesse pronta para o abate. A carne bovina está hoje muito mais disponível em função da redução do tempo de abate do gado, que foi diminuído de quatro para dois anos. Há ainda uma crescente indústria de pescado com a produção realizada em tanques artificiais, que mais parecem uma linha de produção, e que já vem respondendo por parcela significativa do consumo de peixes e crustáceos. Em função dessas transformações ocorridas a partir dos melhoramentos genéticos, pode-se dizer que a produção de proteína animal mais que quintuplicou nas últimas cinco décadas.

A microeletrônica também teve um papel fundamental para alavancar o processo de mudanças que ocorreu no interior do sistema produtivo, mediante a redução do tamanho dos bens de consumo e miniaturização das peças, cujo exemplo mais significativa são os chips não só dos computadores, mas de uso generalizado em praticamente todos os bens duráveis. A robótica também está generalizadamente instituída tanto no chão das fábricas, quanto nos setores comerciais, financeiros e de serviços em geral, ressaltando-se o fato de que na área comercial a leitura ótica agilizou de maneira expressiva o fluxo de vendas no comércio. Outro dos elementos que ainda não está plenamente integrado, mas que já vem sendo utilizado em larga escala pelas indústrias e vários setores econômicos é a nanotecnologia. Quanto sua utilização estiver plena na atividade econômica poderemos ter mudanças tão significativas na base produtiva quanto as tecnologias da informação neste momento.

O significado das transformações

Esse conjunto de fenômenos novos produziu também uma plêiade de modificações  tanto objetivas quanto subjetivas nas relações econômicas, sociais, políticas e culturais no sistema capitalista. As mudanças no interior do sistema econômico, comandadas pelas tecnologias da informação, biotecnologia e engenharia genética e a microeletrônica alteraram de maneira radical a base produtiva do capitalismo, de forma semelhante às duas revoluções industriais anteriores. Vale ressaltar que a primeira revolução industrial fez emergir a mecanização das fábricas e a produção em massa, deslocando os homens práticos para simples apêndices do sistema produtivo. A segunda revolução indústria e a emergência do capitalismo monopolista,  possibilitou a formação das grandes empresas e a construção das linhas de produção. Esse processo consolidou novos ramos industriais como a metal-mecânica, da química  e os plásticos, resultando na produção generalizada dos bens de consumo duráveis e num impulso gigantesco para o desenvolvimento das forças produtivas.

 A internacionalização da produção produziu um conjunto de novos fenômenos na economia capitalista. Pela primeira vez na história, a burguesia dos países centrais passou a extrair, de maneira generalizada, o valor fora de suas fronteiras nacionais(O primeiro autor a se referir à produção do valor fora das fronteiras nacionais foi Michalet: Charles-Albert. Capitalismo mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.), tornando assim uma classe exploradora direta tanto dos trabalhadores da periferia quanto dos países tradicionais industrializados. Anteriormente, o valor era capturado através do comércio internacional e da exportação de capitais. No primeiro caso, os países periféricos vendiam matérias-primas para os países centrais e compravam destes os produtos industrializados, gerando assim o que Samir Amin denominou de troca desigual, pois a produtividade dos produtos manufaturados é maior que a dos produtos de origem agropecuária ou mineral. No segundo caso, os países centrais se apropriavam dos juros e das remessas de lucro em função dos capitais investidos ou dos financiamentos realizados na periferia. Dessa forma, somente com a internacionalização da produção, o capitalismo se transformou efetivamente num sistema mundial completo.

Essa nova configuração do sistema internacional do capitalismo, com a interconexão orgânica de sua base produtiva, onde o mundo se transformou numa imensa fonte de matérias-primas e mão de obra à sua disposição, possibilitou a padronização das peças e a produção descentralizada dos bens e transformou os velhos monopólios em corporações transnacionais, que passaram a operar diretamente no interior de cada País. Na prática, tornaram-se destacamentos avançados do grande capital, com influência direta na formulação e operação de políticas econômicas década País, especialmente na periferia.

(Costa, Edmilson. Para onde vai o capitalismo. Notas sobre a globalização neoliberal e a nova fase do capitalismo. In São Paulo: Aduaneiras, 2004.)

Além disso, a internacionalização da produção possibilitou o surgimento de mais um fenômeno novo na dinâmica macroeconômica da economia mundial: a emergência de um ciclo único mundial, tornando as crises que antes eram localizadas em países ou regiões em crises mundiais e cortando assim as rotas de fuga do capital para áreas sem crises.

Outro dado a se constatar é o fato de que as extraordinárias forças produtivas nas últimas sete décadas, especialmente no último meio século, criaram uma capacidade potencial de produção tão extraordinária que torna o sistema com reduzidas possibilidades de desenvolver todo o potencial dessas forças produtiva, fato que o   aproxima de seu limite de reprodução, dada à superacumulação de capitais  e insuficiência de demanda por bens de produção e bens de consumo. Essa debilidade explica, em boa parte,  o fenômeno da financeirização da riqueza ou a fuga para a frente do capital  buscando valorizar artificialmente esses recursos na órbita financeira através do frenesi especulativo. Sem condições de aterrisagem no chão das fábricas, uma vez que isso levaria a uma gigantesca crise de superprodução de mercadorias, o capital empreendeu essa aventura desesperada para a órbita da circulação, mas isso apenas adiou a crise sistêmica global, que viria a se manifestar em 2007-2008.

Em outras palavras, a financeirização é uma espécie  de contraponto funcional da incapacidade do sistema de desenvolver plenamente toda sua capacidade de produção em função dos novos e sofisticados ramos produtivos. (As referências dessa seção estão baseadas em nossa tese de pós-doutorado realizada no Instituto de Filosofia e Ciência Humanas da Unicamp, entregue em 2002,que depois foi publicada em livro com o título A globalização e o capitalismo contemporâneo (Expressão Popular, 2008).   Essas modificações também obrigaram o grande capital a realizar uma espécie de remonopolização burguesa, cujos exemplos mais significativos são as fusões e aquisições que ocorreram em escala global e modificaram completamente o perfil societário do grande capital. Se avaliarmos o capitalismo hoje, poderemos constatar que os velhos monopólios do final do século XIX, inicio do século XX ,foram substituídos por novos monopólios, mais sofisticados e mais ávidos por lucros que os anteriores.

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey